O que o Nobel de Han Kang significa para a expansão da literatura sul-coreana no mundo


A Coreia do Sul colhe frutos do investimento massivo na exportação cultural, vista também no cinema, na música e na dramaturgia. Tradutoras da obra de Han Kang no Brasil e livreira da Aigo Livros comentam a vitória da autora e como ela pode contribuir para esse momento

Por Gabriela Caputo

O reconhecimento da autora sul-coreana Han Kang, de 53 anos, pelo Nobel de Literatura, anunciado recentemente, pode ter sido surpreendente – mas não completamente inesperado. A vitória da escritora vem na esteira da expansão, muito bem planejada, da cultura do país asiático pelo mundo; um fenômeno que populariza a música pop, o cinema, a dramaturgia e, claro, a literatura da Coreia do Sul. É o tal do soft power do país, do qual tanto se fala, patrocinado por uma política pública eficaz.

Primeira sul-coreana a vencer o mais prestigioso prêmio literário do mundo e apenas a segunda pessoa do país laureada pela instituição europeia (em 2000, o ex-presidente Kim Dae-jung ganhou o Nobel da Paz), Han Kang não estava entre os nomes mais cotados para este ano. Uma forte aposta era a chinesa Can Xue, de 71 anos.

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A autora sul-coreana Han Kang, laureada com o Prêmio Nobel de Literatura 2024. Foto: Divulgação/via Editora Todavia

O palpite considerava, além da qualidade da produção da autora, duas questões. Em primeiro lugar, que nos últimos anos a Academia Sueca vem alternando os premiados entre homens e mulheres. Outro ponto é que o Nobel é criticado por privilegiar autores europeus e norte-americanos. Em 2017, Kazuo Ishiguro venceu o prêmio - mas o autor, nascido no Japão, cresceu na Inglaterra e compôs sua obra em inglês, a partir do contexto europeu. O último autor asiático laureado ao escrever sobre experiências locais foi o chinês Mo Yan, em 2012.

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Han Kang não só preenchia ambos os requisitos – ser mulher e viver fora do mundo eurocêntrico – como é representante ilustre da expansão da literatura sul-coreana: A Vegetariana, seu romance mais famoso, foi peça indispensável na popularização dessas obras. Publicado em 2007, o livro foi traduzido para o inglês em 2015 e, no ano seguinte, venceu o influente Booker Prize.

O Nobel de Han Kang está, portanto, intimamente relacionado ao movimento de exportação cultural que a Coreia do Sul vem empenhando, com excelência, desde a década de 1990 – com força ainda maior na última década. É a chamada Hallyu, a onda sul-coreana.

“Nos sentimos vistos, reconhecidos”, diz Paulina Cho ao Estadão, falando de Seul, capital sul-coreana. “É como se validassem a nossa voz, a nossa narrativa, o nosso jeito de contar; porque apesar de Han Kang ter seu estilo próprio, ela acaba carregando traços culturais de toda uma geração”, acrescenta Paulina.

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Ela é filha de imigrantes coreanos, como também são Agatha Kim e Yara Hwang. As três são sócias da Aigo Livros, livraria no Bom Retiro, em São Paulo, com curadoria valoriza as comunidades imigrantes presentes na cidade.

'Vidas Passadas', de Celine Song, concorreu ao Oscar em 2024. Foto: Jon Pack/Twenty Years Rights/California Filmes/Divulgação
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Durante a conversa, que aconteceu pouco depois do anúncio do Nobel, a livreira lembrou do filme Vidas Passadas, da diretora sul-coreana Celine Song, concorrente ao Oscar deste ano. Em uma cena, o rapaz Hae Sung (Teo Yoo) diz para a amiga imigrada que ela deveria ter ficado na Coreia do Sul, no que Nora Moon (Greta Lee), aspirante a escritora, responde: coreanos não ganham o Prêmio Nobel. “Por muito tempo a sensação foi essa. Para podermos ser reconhecidos, não podemos ‘ser coreanos’”, desabafa Paulina.

Para ela, o prêmio é emocionante, mas, ao mesmo tempo, um resultado muito esperado. “Não aconteceu em um passe de mágica. A Coreia do Sul vem investindo muito nessa influência cultural, uma estratégia encontrada depois da crise financeira asiática de 1997, para ampliar o seu mercado consumidor”, explica a livreira.

Os quatro prêmios Oscar vencidos por Parasita (2019), de Bong Joon-ho, incluindo o de melhor filme; o sucesso estrondoso da série Round 6 na Netflix, bem como a aposta nas produções de k-drama, onipresentes nos catálogos dos streamings; e o sucesso global de grupos de k-pop como BTS, Blackpink, EXO e TWICE. Todos esses fenômenos fazem parte do esforço que tornou o país asiático uma verdadeira potência cultural.

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Cena do filme 'Parasita', de Bong Joon-ho, que venceu o Oscar de melhor filme em 2020, além de outras três estatuetas na premiação. Foto: Pandora Filmes

“O sucesso do filme Parasita, por exemplo, resultou de uma promoção estratégica empenhada por uma série de organizações. Não basta somente colocar a produção lá fora, tem que mostrar por que é tão boa, de onde vem, quais os contextos locais”, ressalta Paulina.

As exportações culturais da Coreia do Sul totalizaram US$ 13,2 bilhões em 2022 (cerca de R$ 68 bilhões na época). O governo pretende chegar a US$ 25 bilhões até 2027 (R$ 142 bilhões na cotação atual), visando novos mercados como a Europa e o Oriente Médio, segundo informações da AFP.

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Paulina, de Seul, nota que os nativos de seu convívio se surpreendem com a popularização dos produtos do país. “Para eles é muito óbvio que o mundo consuma Europa e Estados Unidos, mas é diferente e inusitado com a Coreia do Sul. Por ser um país que passou por muitas guerras e opressão, estar dominando essa narrativa é algo que para eles não faz sentido.”

Literatura em tradução

Ji Yun Kim, professora e vice-coordenadora do curso de Língua e Literatura Coreana da USP e tradutora de Atos Humanos, de Han Kang, avalia que o prêmio é algo histórico para a literatura sul-coreana e deve impactar ainda mais nesse reconhecimento. “A Vegetariana, por exemplo, foi recebido pelos leitores brasileiros de maneira calorosa, mas dentro de um grupo que já tinha interesse na cultura asiática e coreana. Agora, acredito que será mais amplo”, imagina.

O aumento da demanda por esse livros no Brasil - os de Kang são publicados pela Todavia - é recente, observado nos últimos cinco anos, aponta a professora. Apesar do boom, essa literatura segue sendo minoritária, se comparado com a inglesa e a francesa, por exemplo.

Refletindo sobre a vitória de Han Kang, Ji considera que o prêmio pode ter a ver com o contexto de mundo atual, marcado pelas guerras no Oriente Médio e entre Rússia e Ucrânia. “As obras dela mostram um lado muito violento do ser humano, mas também trazem a resistência, a luta interior na tentativa de não perder a dignidade”, pondera.

Han Kang, autora sul-coreana que venceu o Nobel de Literatura 2024, tem livros publicados no Brasil pela Todavia. Foto: Divulgação/Todavia

Natália T. M. Okabayashi, tradutora de O Livro Branco e do próximo título de Han a ser lançado no País, We do Not Part, em 2025, ressalta que, por conta da Hallyu, “o mundo tem direcionado mais o olhar para a Coreia e aprendido mais sobre o país, então, faz sentido que isso se reflita na abertura para conhecermos e prestigiarmos a arte coreana”.

Ela destaca, particularmente na obra de Han Kang, a forma “profunda, sensível e extremamente artística” com a qual aborda questões humanas abrangendo tanto o coletivo quanto o individual. “Leitores de todas as nacionalidades conseguem se conectar”, avalia.

O apoio do governo sul-coreano é crucial na disseminação das obras pelo mundo: por meio do Instituto de Tradução Literária da Coreia, agência estatal que subsidia as traduções para outros países.

“O país entendeu que, para ter sua cultura aceita no mundo ocidental, ela precisa ser reconhecida por algumas academias, receber determinados selos de validação”, diz Paulina. O Nobel de Han Kang pode ser lido como resultado direto deste projeto.

Ilustração de Han Kang, escritora que venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 2024. Foto: Niklas Elmehed/Nobel Prize

Como Han Kang se insere na literatura sul-coreana

A professora Ji Yun Kim explica que a literatura moderna da Coreia do Sul começou a se formar no começo do século 20, durante a ocupação japonesa, entre 1910 e 1945. Depois, na década de 1950, veio Guerra da Coreia, que destruiu o país. Foi no pós-guerra que apareceram escritores que se debruçavam sobre o trauma coletivo.

Até 1980, além do predomínio dos temas ligados diretamente aos acontecimentos históricos, a maioria dos autores era de homens. Han Kang começou a publicar romances nos anos 1990, junto de várias outras escritoras mulheres - uma geração que passou a usar uma linguagem mais delicada e sensível.

“Elas adentraram o mundo interior dos personagens e começaram a falar dos temas do cotidiano, da violência não necessariamente ligada às guerras, mas a do ser humano, mais universal, social e cultural”, afirma Ji. Em O Livro Branco, por exemplo, Han escreve sobre o luto pela ausência da irmã que nunca chegou a conhecer.

Han Kang não estava entre os favoritos nas casas de apostas, mas foi surpreendida com o Nobel de Literatura Foto: Jean Chung

De fato, as escritoras mulheres dessa geração dominam a onda de exportação literária. Junto de Han, estão escritoras como You-jeong Jeong, Cho Nam-Joo, Min Jin Lee e Bora Chung. “É muito bonito e revigorante, também, que o Nobel foi entregue para uma mulher que fala da experiência de ser mulher nessa Coreia contemporânea, com expectativas muito específicas sobre nós”, diz Paulina Cho.

Há uma maior distância dos fatos históricos, mas não um descolamento completo: no caso de Han, Atos Humanos tem como tema o massacre ocorrido na cidade de Gwangju em 1980. Ao The New York Times, Han disse que o evento moldou seu entendimento da capacidade humana para violência, e também para o sacrifício pessoal e compaixão.

Ji Yun Kim, que traduziu a obra para o português, nasceu naquela cidade, assim como Han. “Eu cresci andando pelos lugares em que tudo aconteceu. A leitura, portanto, teve um peso especial. E embora seja um fato muito triste e trágico, é importante na história da democratização coreana. Tem muito peso até hoje para o povo, porque algumas coisas ainda não foram resolvidas”, explica a professora.

Muito além da ‘healing fiction’, ou ficção de cura

Há títulos específicos com maior apelo comercial. É o caso da chamada healing fiction, ou ficção de cura, na tradução. São tramas que trazem mensagens de conforto e resiliência, ambientadas em cenários aconchegantes, como livrarias ou bibliotecas. O teor reflexivo é traço comum a diversos k-dramas, as novelas produzidas no país asiático que fazem sucesso por aqui.

Uma coisa puxa a outra. O Estadão explicou esse fenômeno recentemente, à luz dos títulos mais vendidos na Bienal do Livro, realizada em setembro em São Paulo. Grandes hits foram Amêndoas e O Impulso, de Won-Pyung Sohn (Rocco), Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong, de Hwang Bo-Reum (Intrínseca) e A Inconveniente Loja de Conveniência, de Kim Ho-yeon (Record).

Paulina, da Aigo Livros, percebe essa preferência por algumas vozes e narrativas sul-coreanas em detrimento de outras, mas vê o movimento com otimismo. “Acredito que, aos poucos, os leitores vão passar a buscar a diversidade, assim como fazem ao consumir literatura norte-americana, francesa, italiana etc.”

O que partiu de contornos mais superficiais tem se transformado em um interesse mais profundo e genuíno pela história da Coreia do Sul. Han Kang e seu novíssimo Nobel consagram o momento.

O reconhecimento da autora sul-coreana Han Kang, de 53 anos, pelo Nobel de Literatura, anunciado recentemente, pode ter sido surpreendente – mas não completamente inesperado. A vitória da escritora vem na esteira da expansão, muito bem planejada, da cultura do país asiático pelo mundo; um fenômeno que populariza a música pop, o cinema, a dramaturgia e, claro, a literatura da Coreia do Sul. É o tal do soft power do país, do qual tanto se fala, patrocinado por uma política pública eficaz.

Primeira sul-coreana a vencer o mais prestigioso prêmio literário do mundo e apenas a segunda pessoa do país laureada pela instituição europeia (em 2000, o ex-presidente Kim Dae-jung ganhou o Nobel da Paz), Han Kang não estava entre os nomes mais cotados para este ano. Uma forte aposta era a chinesa Can Xue, de 71 anos.

A autora sul-coreana Han Kang, laureada com o Prêmio Nobel de Literatura 2024. Foto: Divulgação/via Editora Todavia

O palpite considerava, além da qualidade da produção da autora, duas questões. Em primeiro lugar, que nos últimos anos a Academia Sueca vem alternando os premiados entre homens e mulheres. Outro ponto é que o Nobel é criticado por privilegiar autores europeus e norte-americanos. Em 2017, Kazuo Ishiguro venceu o prêmio - mas o autor, nascido no Japão, cresceu na Inglaterra e compôs sua obra em inglês, a partir do contexto europeu. O último autor asiático laureado ao escrever sobre experiências locais foi o chinês Mo Yan, em 2012.

Han Kang não só preenchia ambos os requisitos – ser mulher e viver fora do mundo eurocêntrico – como é representante ilustre da expansão da literatura sul-coreana: A Vegetariana, seu romance mais famoso, foi peça indispensável na popularização dessas obras. Publicado em 2007, o livro foi traduzido para o inglês em 2015 e, no ano seguinte, venceu o influente Booker Prize.

O Nobel de Han Kang está, portanto, intimamente relacionado ao movimento de exportação cultural que a Coreia do Sul vem empenhando, com excelência, desde a década de 1990 – com força ainda maior na última década. É a chamada Hallyu, a onda sul-coreana.

“Nos sentimos vistos, reconhecidos”, diz Paulina Cho ao Estadão, falando de Seul, capital sul-coreana. “É como se validassem a nossa voz, a nossa narrativa, o nosso jeito de contar; porque apesar de Han Kang ter seu estilo próprio, ela acaba carregando traços culturais de toda uma geração”, acrescenta Paulina.

Ela é filha de imigrantes coreanos, como também são Agatha Kim e Yara Hwang. As três são sócias da Aigo Livros, livraria no Bom Retiro, em São Paulo, com curadoria valoriza as comunidades imigrantes presentes na cidade.

'Vidas Passadas', de Celine Song, concorreu ao Oscar em 2024. Foto: Jon Pack/Twenty Years Rights/California Filmes/Divulgação

Durante a conversa, que aconteceu pouco depois do anúncio do Nobel, a livreira lembrou do filme Vidas Passadas, da diretora sul-coreana Celine Song, concorrente ao Oscar deste ano. Em uma cena, o rapaz Hae Sung (Teo Yoo) diz para a amiga imigrada que ela deveria ter ficado na Coreia do Sul, no que Nora Moon (Greta Lee), aspirante a escritora, responde: coreanos não ganham o Prêmio Nobel. “Por muito tempo a sensação foi essa. Para podermos ser reconhecidos, não podemos ‘ser coreanos’”, desabafa Paulina.

Para ela, o prêmio é emocionante, mas, ao mesmo tempo, um resultado muito esperado. “Não aconteceu em um passe de mágica. A Coreia do Sul vem investindo muito nessa influência cultural, uma estratégia encontrada depois da crise financeira asiática de 1997, para ampliar o seu mercado consumidor”, explica a livreira.

Os quatro prêmios Oscar vencidos por Parasita (2019), de Bong Joon-ho, incluindo o de melhor filme; o sucesso estrondoso da série Round 6 na Netflix, bem como a aposta nas produções de k-drama, onipresentes nos catálogos dos streamings; e o sucesso global de grupos de k-pop como BTS, Blackpink, EXO e TWICE. Todos esses fenômenos fazem parte do esforço que tornou o país asiático uma verdadeira potência cultural.

Cena do filme 'Parasita', de Bong Joon-ho, que venceu o Oscar de melhor filme em 2020, além de outras três estatuetas na premiação. Foto: Pandora Filmes

“O sucesso do filme Parasita, por exemplo, resultou de uma promoção estratégica empenhada por uma série de organizações. Não basta somente colocar a produção lá fora, tem que mostrar por que é tão boa, de onde vem, quais os contextos locais”, ressalta Paulina.

As exportações culturais da Coreia do Sul totalizaram US$ 13,2 bilhões em 2022 (cerca de R$ 68 bilhões na época). O governo pretende chegar a US$ 25 bilhões até 2027 (R$ 142 bilhões na cotação atual), visando novos mercados como a Europa e o Oriente Médio, segundo informações da AFP.

Paulina, de Seul, nota que os nativos de seu convívio se surpreendem com a popularização dos produtos do país. “Para eles é muito óbvio que o mundo consuma Europa e Estados Unidos, mas é diferente e inusitado com a Coreia do Sul. Por ser um país que passou por muitas guerras e opressão, estar dominando essa narrativa é algo que para eles não faz sentido.”

Literatura em tradução

Ji Yun Kim, professora e vice-coordenadora do curso de Língua e Literatura Coreana da USP e tradutora de Atos Humanos, de Han Kang, avalia que o prêmio é algo histórico para a literatura sul-coreana e deve impactar ainda mais nesse reconhecimento. “A Vegetariana, por exemplo, foi recebido pelos leitores brasileiros de maneira calorosa, mas dentro de um grupo que já tinha interesse na cultura asiática e coreana. Agora, acredito que será mais amplo”, imagina.

O aumento da demanda por esse livros no Brasil - os de Kang são publicados pela Todavia - é recente, observado nos últimos cinco anos, aponta a professora. Apesar do boom, essa literatura segue sendo minoritária, se comparado com a inglesa e a francesa, por exemplo.

Refletindo sobre a vitória de Han Kang, Ji considera que o prêmio pode ter a ver com o contexto de mundo atual, marcado pelas guerras no Oriente Médio e entre Rússia e Ucrânia. “As obras dela mostram um lado muito violento do ser humano, mas também trazem a resistência, a luta interior na tentativa de não perder a dignidade”, pondera.

Han Kang, autora sul-coreana que venceu o Nobel de Literatura 2024, tem livros publicados no Brasil pela Todavia. Foto: Divulgação/Todavia

Natália T. M. Okabayashi, tradutora de O Livro Branco e do próximo título de Han a ser lançado no País, We do Not Part, em 2025, ressalta que, por conta da Hallyu, “o mundo tem direcionado mais o olhar para a Coreia e aprendido mais sobre o país, então, faz sentido que isso se reflita na abertura para conhecermos e prestigiarmos a arte coreana”.

Ela destaca, particularmente na obra de Han Kang, a forma “profunda, sensível e extremamente artística” com a qual aborda questões humanas abrangendo tanto o coletivo quanto o individual. “Leitores de todas as nacionalidades conseguem se conectar”, avalia.

O apoio do governo sul-coreano é crucial na disseminação das obras pelo mundo: por meio do Instituto de Tradução Literária da Coreia, agência estatal que subsidia as traduções para outros países.

“O país entendeu que, para ter sua cultura aceita no mundo ocidental, ela precisa ser reconhecida por algumas academias, receber determinados selos de validação”, diz Paulina. O Nobel de Han Kang pode ser lido como resultado direto deste projeto.

Ilustração de Han Kang, escritora que venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 2024. Foto: Niklas Elmehed/Nobel Prize

Como Han Kang se insere na literatura sul-coreana

A professora Ji Yun Kim explica que a literatura moderna da Coreia do Sul começou a se formar no começo do século 20, durante a ocupação japonesa, entre 1910 e 1945. Depois, na década de 1950, veio Guerra da Coreia, que destruiu o país. Foi no pós-guerra que apareceram escritores que se debruçavam sobre o trauma coletivo.

Até 1980, além do predomínio dos temas ligados diretamente aos acontecimentos históricos, a maioria dos autores era de homens. Han Kang começou a publicar romances nos anos 1990, junto de várias outras escritoras mulheres - uma geração que passou a usar uma linguagem mais delicada e sensível.

“Elas adentraram o mundo interior dos personagens e começaram a falar dos temas do cotidiano, da violência não necessariamente ligada às guerras, mas a do ser humano, mais universal, social e cultural”, afirma Ji. Em O Livro Branco, por exemplo, Han escreve sobre o luto pela ausência da irmã que nunca chegou a conhecer.

Han Kang não estava entre os favoritos nas casas de apostas, mas foi surpreendida com o Nobel de Literatura Foto: Jean Chung

De fato, as escritoras mulheres dessa geração dominam a onda de exportação literária. Junto de Han, estão escritoras como You-jeong Jeong, Cho Nam-Joo, Min Jin Lee e Bora Chung. “É muito bonito e revigorante, também, que o Nobel foi entregue para uma mulher que fala da experiência de ser mulher nessa Coreia contemporânea, com expectativas muito específicas sobre nós”, diz Paulina Cho.

Há uma maior distância dos fatos históricos, mas não um descolamento completo: no caso de Han, Atos Humanos tem como tema o massacre ocorrido na cidade de Gwangju em 1980. Ao The New York Times, Han disse que o evento moldou seu entendimento da capacidade humana para violência, e também para o sacrifício pessoal e compaixão.

Ji Yun Kim, que traduziu a obra para o português, nasceu naquela cidade, assim como Han. “Eu cresci andando pelos lugares em que tudo aconteceu. A leitura, portanto, teve um peso especial. E embora seja um fato muito triste e trágico, é importante na história da democratização coreana. Tem muito peso até hoje para o povo, porque algumas coisas ainda não foram resolvidas”, explica a professora.

Muito além da ‘healing fiction’, ou ficção de cura

Há títulos específicos com maior apelo comercial. É o caso da chamada healing fiction, ou ficção de cura, na tradução. São tramas que trazem mensagens de conforto e resiliência, ambientadas em cenários aconchegantes, como livrarias ou bibliotecas. O teor reflexivo é traço comum a diversos k-dramas, as novelas produzidas no país asiático que fazem sucesso por aqui.

Uma coisa puxa a outra. O Estadão explicou esse fenômeno recentemente, à luz dos títulos mais vendidos na Bienal do Livro, realizada em setembro em São Paulo. Grandes hits foram Amêndoas e O Impulso, de Won-Pyung Sohn (Rocco), Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong, de Hwang Bo-Reum (Intrínseca) e A Inconveniente Loja de Conveniência, de Kim Ho-yeon (Record).

Paulina, da Aigo Livros, percebe essa preferência por algumas vozes e narrativas sul-coreanas em detrimento de outras, mas vê o movimento com otimismo. “Acredito que, aos poucos, os leitores vão passar a buscar a diversidade, assim como fazem ao consumir literatura norte-americana, francesa, italiana etc.”

O que partiu de contornos mais superficiais tem se transformado em um interesse mais profundo e genuíno pela história da Coreia do Sul. Han Kang e seu novíssimo Nobel consagram o momento.

O reconhecimento da autora sul-coreana Han Kang, de 53 anos, pelo Nobel de Literatura, anunciado recentemente, pode ter sido surpreendente – mas não completamente inesperado. A vitória da escritora vem na esteira da expansão, muito bem planejada, da cultura do país asiático pelo mundo; um fenômeno que populariza a música pop, o cinema, a dramaturgia e, claro, a literatura da Coreia do Sul. É o tal do soft power do país, do qual tanto se fala, patrocinado por uma política pública eficaz.

Primeira sul-coreana a vencer o mais prestigioso prêmio literário do mundo e apenas a segunda pessoa do país laureada pela instituição europeia (em 2000, o ex-presidente Kim Dae-jung ganhou o Nobel da Paz), Han Kang não estava entre os nomes mais cotados para este ano. Uma forte aposta era a chinesa Can Xue, de 71 anos.

A autora sul-coreana Han Kang, laureada com o Prêmio Nobel de Literatura 2024. Foto: Divulgação/via Editora Todavia

O palpite considerava, além da qualidade da produção da autora, duas questões. Em primeiro lugar, que nos últimos anos a Academia Sueca vem alternando os premiados entre homens e mulheres. Outro ponto é que o Nobel é criticado por privilegiar autores europeus e norte-americanos. Em 2017, Kazuo Ishiguro venceu o prêmio - mas o autor, nascido no Japão, cresceu na Inglaterra e compôs sua obra em inglês, a partir do contexto europeu. O último autor asiático laureado ao escrever sobre experiências locais foi o chinês Mo Yan, em 2012.

Han Kang não só preenchia ambos os requisitos – ser mulher e viver fora do mundo eurocêntrico – como é representante ilustre da expansão da literatura sul-coreana: A Vegetariana, seu romance mais famoso, foi peça indispensável na popularização dessas obras. Publicado em 2007, o livro foi traduzido para o inglês em 2015 e, no ano seguinte, venceu o influente Booker Prize.

O Nobel de Han Kang está, portanto, intimamente relacionado ao movimento de exportação cultural que a Coreia do Sul vem empenhando, com excelência, desde a década de 1990 – com força ainda maior na última década. É a chamada Hallyu, a onda sul-coreana.

“Nos sentimos vistos, reconhecidos”, diz Paulina Cho ao Estadão, falando de Seul, capital sul-coreana. “É como se validassem a nossa voz, a nossa narrativa, o nosso jeito de contar; porque apesar de Han Kang ter seu estilo próprio, ela acaba carregando traços culturais de toda uma geração”, acrescenta Paulina.

Ela é filha de imigrantes coreanos, como também são Agatha Kim e Yara Hwang. As três são sócias da Aigo Livros, livraria no Bom Retiro, em São Paulo, com curadoria valoriza as comunidades imigrantes presentes na cidade.

'Vidas Passadas', de Celine Song, concorreu ao Oscar em 2024. Foto: Jon Pack/Twenty Years Rights/California Filmes/Divulgação

Durante a conversa, que aconteceu pouco depois do anúncio do Nobel, a livreira lembrou do filme Vidas Passadas, da diretora sul-coreana Celine Song, concorrente ao Oscar deste ano. Em uma cena, o rapaz Hae Sung (Teo Yoo) diz para a amiga imigrada que ela deveria ter ficado na Coreia do Sul, no que Nora Moon (Greta Lee), aspirante a escritora, responde: coreanos não ganham o Prêmio Nobel. “Por muito tempo a sensação foi essa. Para podermos ser reconhecidos, não podemos ‘ser coreanos’”, desabafa Paulina.

Para ela, o prêmio é emocionante, mas, ao mesmo tempo, um resultado muito esperado. “Não aconteceu em um passe de mágica. A Coreia do Sul vem investindo muito nessa influência cultural, uma estratégia encontrada depois da crise financeira asiática de 1997, para ampliar o seu mercado consumidor”, explica a livreira.

Os quatro prêmios Oscar vencidos por Parasita (2019), de Bong Joon-ho, incluindo o de melhor filme; o sucesso estrondoso da série Round 6 na Netflix, bem como a aposta nas produções de k-drama, onipresentes nos catálogos dos streamings; e o sucesso global de grupos de k-pop como BTS, Blackpink, EXO e TWICE. Todos esses fenômenos fazem parte do esforço que tornou o país asiático uma verdadeira potência cultural.

Cena do filme 'Parasita', de Bong Joon-ho, que venceu o Oscar de melhor filme em 2020, além de outras três estatuetas na premiação. Foto: Pandora Filmes

“O sucesso do filme Parasita, por exemplo, resultou de uma promoção estratégica empenhada por uma série de organizações. Não basta somente colocar a produção lá fora, tem que mostrar por que é tão boa, de onde vem, quais os contextos locais”, ressalta Paulina.

As exportações culturais da Coreia do Sul totalizaram US$ 13,2 bilhões em 2022 (cerca de R$ 68 bilhões na época). O governo pretende chegar a US$ 25 bilhões até 2027 (R$ 142 bilhões na cotação atual), visando novos mercados como a Europa e o Oriente Médio, segundo informações da AFP.

Paulina, de Seul, nota que os nativos de seu convívio se surpreendem com a popularização dos produtos do país. “Para eles é muito óbvio que o mundo consuma Europa e Estados Unidos, mas é diferente e inusitado com a Coreia do Sul. Por ser um país que passou por muitas guerras e opressão, estar dominando essa narrativa é algo que para eles não faz sentido.”

Literatura em tradução

Ji Yun Kim, professora e vice-coordenadora do curso de Língua e Literatura Coreana da USP e tradutora de Atos Humanos, de Han Kang, avalia que o prêmio é algo histórico para a literatura sul-coreana e deve impactar ainda mais nesse reconhecimento. “A Vegetariana, por exemplo, foi recebido pelos leitores brasileiros de maneira calorosa, mas dentro de um grupo que já tinha interesse na cultura asiática e coreana. Agora, acredito que será mais amplo”, imagina.

O aumento da demanda por esse livros no Brasil - os de Kang são publicados pela Todavia - é recente, observado nos últimos cinco anos, aponta a professora. Apesar do boom, essa literatura segue sendo minoritária, se comparado com a inglesa e a francesa, por exemplo.

Refletindo sobre a vitória de Han Kang, Ji considera que o prêmio pode ter a ver com o contexto de mundo atual, marcado pelas guerras no Oriente Médio e entre Rússia e Ucrânia. “As obras dela mostram um lado muito violento do ser humano, mas também trazem a resistência, a luta interior na tentativa de não perder a dignidade”, pondera.

Han Kang, autora sul-coreana que venceu o Nobel de Literatura 2024, tem livros publicados no Brasil pela Todavia. Foto: Divulgação/Todavia

Natália T. M. Okabayashi, tradutora de O Livro Branco e do próximo título de Han a ser lançado no País, We do Not Part, em 2025, ressalta que, por conta da Hallyu, “o mundo tem direcionado mais o olhar para a Coreia e aprendido mais sobre o país, então, faz sentido que isso se reflita na abertura para conhecermos e prestigiarmos a arte coreana”.

Ela destaca, particularmente na obra de Han Kang, a forma “profunda, sensível e extremamente artística” com a qual aborda questões humanas abrangendo tanto o coletivo quanto o individual. “Leitores de todas as nacionalidades conseguem se conectar”, avalia.

O apoio do governo sul-coreano é crucial na disseminação das obras pelo mundo: por meio do Instituto de Tradução Literária da Coreia, agência estatal que subsidia as traduções para outros países.

“O país entendeu que, para ter sua cultura aceita no mundo ocidental, ela precisa ser reconhecida por algumas academias, receber determinados selos de validação”, diz Paulina. O Nobel de Han Kang pode ser lido como resultado direto deste projeto.

Ilustração de Han Kang, escritora que venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 2024. Foto: Niklas Elmehed/Nobel Prize

Como Han Kang se insere na literatura sul-coreana

A professora Ji Yun Kim explica que a literatura moderna da Coreia do Sul começou a se formar no começo do século 20, durante a ocupação japonesa, entre 1910 e 1945. Depois, na década de 1950, veio Guerra da Coreia, que destruiu o país. Foi no pós-guerra que apareceram escritores que se debruçavam sobre o trauma coletivo.

Até 1980, além do predomínio dos temas ligados diretamente aos acontecimentos históricos, a maioria dos autores era de homens. Han Kang começou a publicar romances nos anos 1990, junto de várias outras escritoras mulheres - uma geração que passou a usar uma linguagem mais delicada e sensível.

“Elas adentraram o mundo interior dos personagens e começaram a falar dos temas do cotidiano, da violência não necessariamente ligada às guerras, mas a do ser humano, mais universal, social e cultural”, afirma Ji. Em O Livro Branco, por exemplo, Han escreve sobre o luto pela ausência da irmã que nunca chegou a conhecer.

Han Kang não estava entre os favoritos nas casas de apostas, mas foi surpreendida com o Nobel de Literatura Foto: Jean Chung

De fato, as escritoras mulheres dessa geração dominam a onda de exportação literária. Junto de Han, estão escritoras como You-jeong Jeong, Cho Nam-Joo, Min Jin Lee e Bora Chung. “É muito bonito e revigorante, também, que o Nobel foi entregue para uma mulher que fala da experiência de ser mulher nessa Coreia contemporânea, com expectativas muito específicas sobre nós”, diz Paulina Cho.

Há uma maior distância dos fatos históricos, mas não um descolamento completo: no caso de Han, Atos Humanos tem como tema o massacre ocorrido na cidade de Gwangju em 1980. Ao The New York Times, Han disse que o evento moldou seu entendimento da capacidade humana para violência, e também para o sacrifício pessoal e compaixão.

Ji Yun Kim, que traduziu a obra para o português, nasceu naquela cidade, assim como Han. “Eu cresci andando pelos lugares em que tudo aconteceu. A leitura, portanto, teve um peso especial. E embora seja um fato muito triste e trágico, é importante na história da democratização coreana. Tem muito peso até hoje para o povo, porque algumas coisas ainda não foram resolvidas”, explica a professora.

Muito além da ‘healing fiction’, ou ficção de cura

Há títulos específicos com maior apelo comercial. É o caso da chamada healing fiction, ou ficção de cura, na tradução. São tramas que trazem mensagens de conforto e resiliência, ambientadas em cenários aconchegantes, como livrarias ou bibliotecas. O teor reflexivo é traço comum a diversos k-dramas, as novelas produzidas no país asiático que fazem sucesso por aqui.

Uma coisa puxa a outra. O Estadão explicou esse fenômeno recentemente, à luz dos títulos mais vendidos na Bienal do Livro, realizada em setembro em São Paulo. Grandes hits foram Amêndoas e O Impulso, de Won-Pyung Sohn (Rocco), Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong, de Hwang Bo-Reum (Intrínseca) e A Inconveniente Loja de Conveniência, de Kim Ho-yeon (Record).

Paulina, da Aigo Livros, percebe essa preferência por algumas vozes e narrativas sul-coreanas em detrimento de outras, mas vê o movimento com otimismo. “Acredito que, aos poucos, os leitores vão passar a buscar a diversidade, assim como fazem ao consumir literatura norte-americana, francesa, italiana etc.”

O que partiu de contornos mais superficiais tem se transformado em um interesse mais profundo e genuíno pela história da Coreia do Sul. Han Kang e seu novíssimo Nobel consagram o momento.

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