O que Papa Francisco diz sobre antissemitismo, Muro de Berlim e 11/9?; leia trechos de biografia


‘Vida: A Minha História Através da História’, que chega às livrarias em abril, conta a trajetória do papa com base em grandes momentos históricos

Por Sabrina Legramandi
Atualização:

Antes de ser papa Francisco, ele era o padre Bergoglio. É isso que Vida: A minha história através da História, autobiografia escrita pelo pontífice com o auxílio do jornalista italiano Fabio Marchese Ragona, quer mostrar.

O livro, para além de apenas contar a história do papa, mescla acontecimentos históricos e revelações pessoais. Na seleção de História, estão fatos recentes, como o conflito entre Israel e Hamas, uma conversa com o recém-eleito presidente da Argentina, Javier Milei, e a questão da bênção a casais homossexuais, autorizada pelo Vaticano no fim de 2023.

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Papa Francisco lança autobiografia que mistura acontecimentos históricos com revelações pessoais.  Foto: Alessandro Di Meo / EFE / EPA

Mas também há espaço para eventos anteriores, como a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o golpe de Estado de Jorge Rafael Videla na Argentina e a vitória do país na Copa do Mundo em 1986. A narrativa da biografia é intercalada entre Francisco e Ragona.

O jornalista, ao falar sobre os bastidores do livro ao Estadão, contou que o pontífice acrescentou informações à autobiografia até o dia da entrega para impressão, em fevereiro. “O que o livro quer fazer é lançar mensagens fortes, fazer com que a vida do papa seja conhecida e que alguns gestos dele de hoje sejam compreendidos”, comentou Ragona.

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'Vida: A minha história através da História', autobiografia de papa Francisco, será lançada em abril. Foto: HarperCollins/Divulgação

Vida: A minha história através da História será lançado pela HarperCollins apenas em abril, mas o Estadão adianta alguns trechos do livro. Dentre eles, estão reflexões do papa sobre a ascensão do racismo e antissemitismo, o muro de Berlim e o 11 de setembro.

Leia trechos da autobiografia de papa Francisco

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Sobre a ascensão do racismo/antissemitismo

“No caso da deportação dos judeus, de todas as idades, é claro que o sentimento se ampliou. Como cristãos praticantes, não conseguiam aceitar aquela situação, e por isso definiam Hitler daquela forma. E não estavam errados! Às vezes, sinto que revivo aqueles sentimentos quando leio nos jornais sobre casos de antissemitismo ou racismo que ainda acontecem hoje: pensemos, por exemplo, nos atos de violência cometidos por alguns fanáticos, nos túmulos judaicos profanados, ou até, em vários países europeus, nas casas marcadas com a Estrela de Davi após a eclosão do 42 novo conflito no Oriente Médio, em outubro de 2023.”

[...]

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“Não posso esconder que com frequência meu pensamento se dirige àquelas pessoas que, nos anos 1940, sofreram e encontraram a morte nos campos de concentração enquanto nós vivíamos com tranquilidade em nossa casa na Argentina, sem preocupações. Tínhamos tudo, ainda que vivêssemos com simplicidade: não era importante ter um carro, ou um terno sob medida, ou tirar férias, o essencial era encontrar a felicidade. E isso, na família, graças a Deus, nunca faltava.

Não havia, principalmente, o medo de que alguém da SS batesse à nossa porta para revistar a casa, não havia patrulhas nazistas pelas ruas, as mães não tinham os cabelos raspados e não eram separadas de seus filhos e enviadas para os campos vestindo agasalhos sujos e privadas de seus 46 direitos. Os homens também não eram levados para trabalhos forçados e depois, quando se tornavam inúteis, mortos e jogados em fornos. Por que eles sofreram tudo isso, e nós não? Por que tantas crianças como eu, naquela época, foram separadas de seus pais, enquanto eu e meus irmãos recebemos a dádiva divina de uma infância feliz? Pergunto-me com o coração partido e não encontro resposta.”

Sobre o muro de Berlim

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“Naquela tarde de 1989, a história passava diante de nossos olhos: as cenas que todos vimos na TV foram impressionantes, e pessoalmente nunca imaginei que as presenciaria. Havia jovens dançando, outros brindando, desconhecidos se abraçavam, famílias inteiras choravam. Foram momentos realmente comoventes, pois aquelas pessoas estavam vivendo o fim de todas as repressões e as violências. Reencontravam a liberdade.

Em breve, a União Soviética também entraria em colapso graças à Perestroika, a política de reformas idealizada por Mikhail Gorbachev. Gorbachev foi um grande homem, talvez um dos maiores estadistas que a URSS teve; eu o admirei muito, pois desejou reformar aquele mundo com o objetivo de evitar novos sofrimentos para a população. Lembro-me bem de sua filha e também de sua esposa, Raisa: ela era uma grande pessoa, além de ótima filósofa! Ao ver as cenas da queda do Muro de Berlim, fiquei muito feliz, pois a Europa estava reencontrando a tão esperada serenidade que lhe faltava há tempo demais.

Na Argentina, não se deu muita importância àqueles fatos: diziam respeito a outra zona do mundo. A história do muro, com exceção das notícias estrangeiras dos primeiros dias, não estava no centro dos debates televisivos, mais concentrados na política interna. Alguns meses antes, tinha havido eleições presidenciais e triunfou o candidato do Partido Justicialista, Carlos Menem, expoente hiperliberal, filho de imigrantes sírios e originário de La Rioja, um dos bairros mais pobres do país. Naquele momento, era necessário descobrir um novo modo de fazer política, construindo uma cultura democrática e colocando como raiz de tudo o conceito de solidariedade, com o objetivo de melhorar a vida dos cidadãos. Discutia-se muito o que essa nova presidência podia fazer pelo povo. Mas todos os argentinos que, como eu, tinham parentes na Europa decerto estavam mais atentos às notícias que chegavam da Alemanha. Enfim, caía aquele muro, símbolo da divisão ideológica do mundo todo!

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Embora tenhamos sido pegos de surpresa por aquelas imagens e tivéssemos consciência de que a queda do Muro de Berlim tinha sido algo imprevisto, é preciso dizer que esse evento histórico foi possível graças ao esforço de muitas pessoas que, no decorrer dos anos, lutaram, sofreram e sacrificaram a própria vida. Mas também foi graças à oração: impossível não pensar no papel desempenhado por João Paulo II, que conheci alguns anos antes, em 1987, graças ao núncio apostólico, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em Buenos Aires. Com suas palavras e seu carisma, ele dera a todas essas pessoas a força para se unir e lutar pela liberdade. De fato, desde 1979, durante sua primeira viagem à Polônia — sua pátria —, ele favoreceu o amadurecimento da consciência de milhões de cidadãos da Europa Oriental, que reencontraram a esperança. Foi esse longo processo que levou à queda do muro na Alemanha.

Mas há muitos muros espalhados pelo mundo, talvez menos famosos. Onde há um muro, há um coração fechado; onde há um muro, há o sofrimento do irmão e da irmã que não conseguem passar; onde há um muro, há a divisão entre os povos, o que não beneficia o futuro da humanidade. E, se estamos divididos, faltam amizade e solidariedade. É preciso seguir o exemplo de Jesus, que uniu a todos com o seu sangue.”

Sobre o 11 de setembro

“Meu coração se despedaçou diante daquelas imagens; estávamos presenciando algo chocante, que nunca teríamos imaginado. Meu primeiro pensamento foi imediatamente a todas aquelas pessoas dentro das torres, depois a seus familiares, porque, sem dúvida, passariam dias dramáticos. Recolhi-me em oração, pedindo ao Senhor para aliviar o sofrimento daquelas pessoas e acolher em sua presença as vítimas inocentes daquelas ações desumanas. Chorei por elas.

Naquela manhã, vi apenas a cena do segundo avião se chocando contra a torre; depois, mostraram-me também as imagens do primeiro e do ataque contra o Pentágono, assim como da queda do avião na Pensilvânia. Os rostos daqueles americanos perdidos, sem rumo, cobertos de poeira ou em meio aos destroços, fugindo ou recebendo socorro, ficaram impressos em minha mente. Que tristeza… Sempre que penso neles, vêm-me à mente as imagens das guerras ao redor do mundo e do sofrimento de quem é atacado por bombas.

A guerra, naquele 11 de setembro de 2001, chegara ao coração do Ocidente; já não era mais algo que só dizia respeito ao Oriente Médio ou a algum país da África ou da Ásia, muitas vezes pouco conhecido pelos habitantes do chamado primeiro mundo: os Estados Unidos, reconhecidos como uma das maiores potências do mundo, tinham sido atacados. A princípio, quando o primeiro avião bateu no arranha-céu, todos pensaram que fosse um acidente, mas depois, com o segundo, a verdade ficou evidente: havia um ataque terrorista em curso, e o mundo estava retornando ao pesadelo da guerra.

Naqueles dias, alguns teóricos da conspiração chegaram a levantar a hipótese, escrevendo nos jornais ou na internet, de que naquela manhã todos os judeus que trabalhavam no World Trade Center tinham faltado ao trabalho por terem sido avisados com antecedência sobre o que aconteceria. Essa grave acusação criava uma ferida talvez ainda mais profunda do que tudo o que acontecera naqueles dias, pois apontava o dedo contra um povo inocente, que ao longo da História tinha sido vítima de um genocídio e clamava por vingança na presença de Deus.

O desespero era geral, sem distinção de religião: naquele dia, foram derramadas lágrimas de dor diante de um fratricídio, diante da incapacidade de fazer coexistirem pelo diálogo as nossas diferenças; foi uma perda injusta e insensata de inocentes, com um ato de violência sem precedentes, a negação de qualquer religiosidade autêntica. É uma blasfêmia, como aconteceu então, utilizar o nome de Deus para justificar massacres, assassinatos, ataques terroristas, perseguição de pessoas e de populações inteiras.

É dever dos homens da Igreja denunciar e trazer à luz toda tentativa de justificar qualquer forma de ódio em nome da religião e condenar quem pratica essa falsificação idólatra de Deus. No dia dos atentados de 11 de setembro, a morte parecia ter tomado conta de tudo, mas uma pequena chama permanecia acesa na escuridão: a chama do amor. Em meio àquela dor excruciante, o ser humano soube mostrar sua melhor face, a face da bondade e do heroísmo. Lembremos de quem se colocou à disposição para dar suporte aos socorristas, de quem distribuiu água e alimentos, de quem manteve seu negócio aberto para dar assistência às forças da ordem, de quem levou cobertas e artigos de primeira necessidade, ainda que de longe.

Pensemos nas mãos estendidas em uma metrópole que talvez parecesse orientada apenas ao lucro, mas que, em vez disso, mostrou-se capaz de gerar solidariedade. Naquele momento, as diferenças de religião, de sangue, de origem, de política foram derrubadas em nome de uma fraternidade sem fronteiras. Todos eram americanos, e tinham orgulho disso! Também penso nos policiais e nos bombeiros de Nova York, que entraram nas torres já próximas do colapso para salvar o máximo de vidas humanas possível. Arriscaram tudo, puseram a vida dos outros à frente das próprias: alguns tombaram em serviço, outros conseguiram salvar muitas pessoas enquanto a devastação dominava tudo ao redor.”

Vida: A minha história através da História

  • Autores: Papa Francisco e Fabio Marchese Ragona
  • Tradução: Milena Vargas
  • Editora: HarperCollins (304 págs.; R$ 49,90)

Antes de ser papa Francisco, ele era o padre Bergoglio. É isso que Vida: A minha história através da História, autobiografia escrita pelo pontífice com o auxílio do jornalista italiano Fabio Marchese Ragona, quer mostrar.

O livro, para além de apenas contar a história do papa, mescla acontecimentos históricos e revelações pessoais. Na seleção de História, estão fatos recentes, como o conflito entre Israel e Hamas, uma conversa com o recém-eleito presidente da Argentina, Javier Milei, e a questão da bênção a casais homossexuais, autorizada pelo Vaticano no fim de 2023.

Papa Francisco lança autobiografia que mistura acontecimentos históricos com revelações pessoais.  Foto: Alessandro Di Meo / EFE / EPA

Mas também há espaço para eventos anteriores, como a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o golpe de Estado de Jorge Rafael Videla na Argentina e a vitória do país na Copa do Mundo em 1986. A narrativa da biografia é intercalada entre Francisco e Ragona.

O jornalista, ao falar sobre os bastidores do livro ao Estadão, contou que o pontífice acrescentou informações à autobiografia até o dia da entrega para impressão, em fevereiro. “O que o livro quer fazer é lançar mensagens fortes, fazer com que a vida do papa seja conhecida e que alguns gestos dele de hoje sejam compreendidos”, comentou Ragona.

'Vida: A minha história através da História', autobiografia de papa Francisco, será lançada em abril. Foto: HarperCollins/Divulgação

Vida: A minha história através da História será lançado pela HarperCollins apenas em abril, mas o Estadão adianta alguns trechos do livro. Dentre eles, estão reflexões do papa sobre a ascensão do racismo e antissemitismo, o muro de Berlim e o 11 de setembro.

Leia trechos da autobiografia de papa Francisco

Sobre a ascensão do racismo/antissemitismo

“No caso da deportação dos judeus, de todas as idades, é claro que o sentimento se ampliou. Como cristãos praticantes, não conseguiam aceitar aquela situação, e por isso definiam Hitler daquela forma. E não estavam errados! Às vezes, sinto que revivo aqueles sentimentos quando leio nos jornais sobre casos de antissemitismo ou racismo que ainda acontecem hoje: pensemos, por exemplo, nos atos de violência cometidos por alguns fanáticos, nos túmulos judaicos profanados, ou até, em vários países europeus, nas casas marcadas com a Estrela de Davi após a eclosão do 42 novo conflito no Oriente Médio, em outubro de 2023.”

[...]

“Não posso esconder que com frequência meu pensamento se dirige àquelas pessoas que, nos anos 1940, sofreram e encontraram a morte nos campos de concentração enquanto nós vivíamos com tranquilidade em nossa casa na Argentina, sem preocupações. Tínhamos tudo, ainda que vivêssemos com simplicidade: não era importante ter um carro, ou um terno sob medida, ou tirar férias, o essencial era encontrar a felicidade. E isso, na família, graças a Deus, nunca faltava.

Não havia, principalmente, o medo de que alguém da SS batesse à nossa porta para revistar a casa, não havia patrulhas nazistas pelas ruas, as mães não tinham os cabelos raspados e não eram separadas de seus filhos e enviadas para os campos vestindo agasalhos sujos e privadas de seus 46 direitos. Os homens também não eram levados para trabalhos forçados e depois, quando se tornavam inúteis, mortos e jogados em fornos. Por que eles sofreram tudo isso, e nós não? Por que tantas crianças como eu, naquela época, foram separadas de seus pais, enquanto eu e meus irmãos recebemos a dádiva divina de uma infância feliz? Pergunto-me com o coração partido e não encontro resposta.”

Sobre o muro de Berlim

“Naquela tarde de 1989, a história passava diante de nossos olhos: as cenas que todos vimos na TV foram impressionantes, e pessoalmente nunca imaginei que as presenciaria. Havia jovens dançando, outros brindando, desconhecidos se abraçavam, famílias inteiras choravam. Foram momentos realmente comoventes, pois aquelas pessoas estavam vivendo o fim de todas as repressões e as violências. Reencontravam a liberdade.

Em breve, a União Soviética também entraria em colapso graças à Perestroika, a política de reformas idealizada por Mikhail Gorbachev. Gorbachev foi um grande homem, talvez um dos maiores estadistas que a URSS teve; eu o admirei muito, pois desejou reformar aquele mundo com o objetivo de evitar novos sofrimentos para a população. Lembro-me bem de sua filha e também de sua esposa, Raisa: ela era uma grande pessoa, além de ótima filósofa! Ao ver as cenas da queda do Muro de Berlim, fiquei muito feliz, pois a Europa estava reencontrando a tão esperada serenidade que lhe faltava há tempo demais.

Na Argentina, não se deu muita importância àqueles fatos: diziam respeito a outra zona do mundo. A história do muro, com exceção das notícias estrangeiras dos primeiros dias, não estava no centro dos debates televisivos, mais concentrados na política interna. Alguns meses antes, tinha havido eleições presidenciais e triunfou o candidato do Partido Justicialista, Carlos Menem, expoente hiperliberal, filho de imigrantes sírios e originário de La Rioja, um dos bairros mais pobres do país. Naquele momento, era necessário descobrir um novo modo de fazer política, construindo uma cultura democrática e colocando como raiz de tudo o conceito de solidariedade, com o objetivo de melhorar a vida dos cidadãos. Discutia-se muito o que essa nova presidência podia fazer pelo povo. Mas todos os argentinos que, como eu, tinham parentes na Europa decerto estavam mais atentos às notícias que chegavam da Alemanha. Enfim, caía aquele muro, símbolo da divisão ideológica do mundo todo!

Embora tenhamos sido pegos de surpresa por aquelas imagens e tivéssemos consciência de que a queda do Muro de Berlim tinha sido algo imprevisto, é preciso dizer que esse evento histórico foi possível graças ao esforço de muitas pessoas que, no decorrer dos anos, lutaram, sofreram e sacrificaram a própria vida. Mas também foi graças à oração: impossível não pensar no papel desempenhado por João Paulo II, que conheci alguns anos antes, em 1987, graças ao núncio apostólico, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em Buenos Aires. Com suas palavras e seu carisma, ele dera a todas essas pessoas a força para se unir e lutar pela liberdade. De fato, desde 1979, durante sua primeira viagem à Polônia — sua pátria —, ele favoreceu o amadurecimento da consciência de milhões de cidadãos da Europa Oriental, que reencontraram a esperança. Foi esse longo processo que levou à queda do muro na Alemanha.

Mas há muitos muros espalhados pelo mundo, talvez menos famosos. Onde há um muro, há um coração fechado; onde há um muro, há o sofrimento do irmão e da irmã que não conseguem passar; onde há um muro, há a divisão entre os povos, o que não beneficia o futuro da humanidade. E, se estamos divididos, faltam amizade e solidariedade. É preciso seguir o exemplo de Jesus, que uniu a todos com o seu sangue.”

Sobre o 11 de setembro

“Meu coração se despedaçou diante daquelas imagens; estávamos presenciando algo chocante, que nunca teríamos imaginado. Meu primeiro pensamento foi imediatamente a todas aquelas pessoas dentro das torres, depois a seus familiares, porque, sem dúvida, passariam dias dramáticos. Recolhi-me em oração, pedindo ao Senhor para aliviar o sofrimento daquelas pessoas e acolher em sua presença as vítimas inocentes daquelas ações desumanas. Chorei por elas.

Naquela manhã, vi apenas a cena do segundo avião se chocando contra a torre; depois, mostraram-me também as imagens do primeiro e do ataque contra o Pentágono, assim como da queda do avião na Pensilvânia. Os rostos daqueles americanos perdidos, sem rumo, cobertos de poeira ou em meio aos destroços, fugindo ou recebendo socorro, ficaram impressos em minha mente. Que tristeza… Sempre que penso neles, vêm-me à mente as imagens das guerras ao redor do mundo e do sofrimento de quem é atacado por bombas.

A guerra, naquele 11 de setembro de 2001, chegara ao coração do Ocidente; já não era mais algo que só dizia respeito ao Oriente Médio ou a algum país da África ou da Ásia, muitas vezes pouco conhecido pelos habitantes do chamado primeiro mundo: os Estados Unidos, reconhecidos como uma das maiores potências do mundo, tinham sido atacados. A princípio, quando o primeiro avião bateu no arranha-céu, todos pensaram que fosse um acidente, mas depois, com o segundo, a verdade ficou evidente: havia um ataque terrorista em curso, e o mundo estava retornando ao pesadelo da guerra.

Naqueles dias, alguns teóricos da conspiração chegaram a levantar a hipótese, escrevendo nos jornais ou na internet, de que naquela manhã todos os judeus que trabalhavam no World Trade Center tinham faltado ao trabalho por terem sido avisados com antecedência sobre o que aconteceria. Essa grave acusação criava uma ferida talvez ainda mais profunda do que tudo o que acontecera naqueles dias, pois apontava o dedo contra um povo inocente, que ao longo da História tinha sido vítima de um genocídio e clamava por vingança na presença de Deus.

O desespero era geral, sem distinção de religião: naquele dia, foram derramadas lágrimas de dor diante de um fratricídio, diante da incapacidade de fazer coexistirem pelo diálogo as nossas diferenças; foi uma perda injusta e insensata de inocentes, com um ato de violência sem precedentes, a negação de qualquer religiosidade autêntica. É uma blasfêmia, como aconteceu então, utilizar o nome de Deus para justificar massacres, assassinatos, ataques terroristas, perseguição de pessoas e de populações inteiras.

É dever dos homens da Igreja denunciar e trazer à luz toda tentativa de justificar qualquer forma de ódio em nome da religião e condenar quem pratica essa falsificação idólatra de Deus. No dia dos atentados de 11 de setembro, a morte parecia ter tomado conta de tudo, mas uma pequena chama permanecia acesa na escuridão: a chama do amor. Em meio àquela dor excruciante, o ser humano soube mostrar sua melhor face, a face da bondade e do heroísmo. Lembremos de quem se colocou à disposição para dar suporte aos socorristas, de quem distribuiu água e alimentos, de quem manteve seu negócio aberto para dar assistência às forças da ordem, de quem levou cobertas e artigos de primeira necessidade, ainda que de longe.

Pensemos nas mãos estendidas em uma metrópole que talvez parecesse orientada apenas ao lucro, mas que, em vez disso, mostrou-se capaz de gerar solidariedade. Naquele momento, as diferenças de religião, de sangue, de origem, de política foram derrubadas em nome de uma fraternidade sem fronteiras. Todos eram americanos, e tinham orgulho disso! Também penso nos policiais e nos bombeiros de Nova York, que entraram nas torres já próximas do colapso para salvar o máximo de vidas humanas possível. Arriscaram tudo, puseram a vida dos outros à frente das próprias: alguns tombaram em serviço, outros conseguiram salvar muitas pessoas enquanto a devastação dominava tudo ao redor.”

Vida: A minha história através da História

  • Autores: Papa Francisco e Fabio Marchese Ragona
  • Tradução: Milena Vargas
  • Editora: HarperCollins (304 págs.; R$ 49,90)

Antes de ser papa Francisco, ele era o padre Bergoglio. É isso que Vida: A minha história através da História, autobiografia escrita pelo pontífice com o auxílio do jornalista italiano Fabio Marchese Ragona, quer mostrar.

O livro, para além de apenas contar a história do papa, mescla acontecimentos históricos e revelações pessoais. Na seleção de História, estão fatos recentes, como o conflito entre Israel e Hamas, uma conversa com o recém-eleito presidente da Argentina, Javier Milei, e a questão da bênção a casais homossexuais, autorizada pelo Vaticano no fim de 2023.

Papa Francisco lança autobiografia que mistura acontecimentos históricos com revelações pessoais.  Foto: Alessandro Di Meo / EFE / EPA

Mas também há espaço para eventos anteriores, como a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o golpe de Estado de Jorge Rafael Videla na Argentina e a vitória do país na Copa do Mundo em 1986. A narrativa da biografia é intercalada entre Francisco e Ragona.

O jornalista, ao falar sobre os bastidores do livro ao Estadão, contou que o pontífice acrescentou informações à autobiografia até o dia da entrega para impressão, em fevereiro. “O que o livro quer fazer é lançar mensagens fortes, fazer com que a vida do papa seja conhecida e que alguns gestos dele de hoje sejam compreendidos”, comentou Ragona.

'Vida: A minha história através da História', autobiografia de papa Francisco, será lançada em abril. Foto: HarperCollins/Divulgação

Vida: A minha história através da História será lançado pela HarperCollins apenas em abril, mas o Estadão adianta alguns trechos do livro. Dentre eles, estão reflexões do papa sobre a ascensão do racismo e antissemitismo, o muro de Berlim e o 11 de setembro.

Leia trechos da autobiografia de papa Francisco

Sobre a ascensão do racismo/antissemitismo

“No caso da deportação dos judeus, de todas as idades, é claro que o sentimento se ampliou. Como cristãos praticantes, não conseguiam aceitar aquela situação, e por isso definiam Hitler daquela forma. E não estavam errados! Às vezes, sinto que revivo aqueles sentimentos quando leio nos jornais sobre casos de antissemitismo ou racismo que ainda acontecem hoje: pensemos, por exemplo, nos atos de violência cometidos por alguns fanáticos, nos túmulos judaicos profanados, ou até, em vários países europeus, nas casas marcadas com a Estrela de Davi após a eclosão do 42 novo conflito no Oriente Médio, em outubro de 2023.”

[...]

“Não posso esconder que com frequência meu pensamento se dirige àquelas pessoas que, nos anos 1940, sofreram e encontraram a morte nos campos de concentração enquanto nós vivíamos com tranquilidade em nossa casa na Argentina, sem preocupações. Tínhamos tudo, ainda que vivêssemos com simplicidade: não era importante ter um carro, ou um terno sob medida, ou tirar férias, o essencial era encontrar a felicidade. E isso, na família, graças a Deus, nunca faltava.

Não havia, principalmente, o medo de que alguém da SS batesse à nossa porta para revistar a casa, não havia patrulhas nazistas pelas ruas, as mães não tinham os cabelos raspados e não eram separadas de seus filhos e enviadas para os campos vestindo agasalhos sujos e privadas de seus 46 direitos. Os homens também não eram levados para trabalhos forçados e depois, quando se tornavam inúteis, mortos e jogados em fornos. Por que eles sofreram tudo isso, e nós não? Por que tantas crianças como eu, naquela época, foram separadas de seus pais, enquanto eu e meus irmãos recebemos a dádiva divina de uma infância feliz? Pergunto-me com o coração partido e não encontro resposta.”

Sobre o muro de Berlim

“Naquela tarde de 1989, a história passava diante de nossos olhos: as cenas que todos vimos na TV foram impressionantes, e pessoalmente nunca imaginei que as presenciaria. Havia jovens dançando, outros brindando, desconhecidos se abraçavam, famílias inteiras choravam. Foram momentos realmente comoventes, pois aquelas pessoas estavam vivendo o fim de todas as repressões e as violências. Reencontravam a liberdade.

Em breve, a União Soviética também entraria em colapso graças à Perestroika, a política de reformas idealizada por Mikhail Gorbachev. Gorbachev foi um grande homem, talvez um dos maiores estadistas que a URSS teve; eu o admirei muito, pois desejou reformar aquele mundo com o objetivo de evitar novos sofrimentos para a população. Lembro-me bem de sua filha e também de sua esposa, Raisa: ela era uma grande pessoa, além de ótima filósofa! Ao ver as cenas da queda do Muro de Berlim, fiquei muito feliz, pois a Europa estava reencontrando a tão esperada serenidade que lhe faltava há tempo demais.

Na Argentina, não se deu muita importância àqueles fatos: diziam respeito a outra zona do mundo. A história do muro, com exceção das notícias estrangeiras dos primeiros dias, não estava no centro dos debates televisivos, mais concentrados na política interna. Alguns meses antes, tinha havido eleições presidenciais e triunfou o candidato do Partido Justicialista, Carlos Menem, expoente hiperliberal, filho de imigrantes sírios e originário de La Rioja, um dos bairros mais pobres do país. Naquele momento, era necessário descobrir um novo modo de fazer política, construindo uma cultura democrática e colocando como raiz de tudo o conceito de solidariedade, com o objetivo de melhorar a vida dos cidadãos. Discutia-se muito o que essa nova presidência podia fazer pelo povo. Mas todos os argentinos que, como eu, tinham parentes na Europa decerto estavam mais atentos às notícias que chegavam da Alemanha. Enfim, caía aquele muro, símbolo da divisão ideológica do mundo todo!

Embora tenhamos sido pegos de surpresa por aquelas imagens e tivéssemos consciência de que a queda do Muro de Berlim tinha sido algo imprevisto, é preciso dizer que esse evento histórico foi possível graças ao esforço de muitas pessoas que, no decorrer dos anos, lutaram, sofreram e sacrificaram a própria vida. Mas também foi graças à oração: impossível não pensar no papel desempenhado por João Paulo II, que conheci alguns anos antes, em 1987, graças ao núncio apostólico, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em Buenos Aires. Com suas palavras e seu carisma, ele dera a todas essas pessoas a força para se unir e lutar pela liberdade. De fato, desde 1979, durante sua primeira viagem à Polônia — sua pátria —, ele favoreceu o amadurecimento da consciência de milhões de cidadãos da Europa Oriental, que reencontraram a esperança. Foi esse longo processo que levou à queda do muro na Alemanha.

Mas há muitos muros espalhados pelo mundo, talvez menos famosos. Onde há um muro, há um coração fechado; onde há um muro, há o sofrimento do irmão e da irmã que não conseguem passar; onde há um muro, há a divisão entre os povos, o que não beneficia o futuro da humanidade. E, se estamos divididos, faltam amizade e solidariedade. É preciso seguir o exemplo de Jesus, que uniu a todos com o seu sangue.”

Sobre o 11 de setembro

“Meu coração se despedaçou diante daquelas imagens; estávamos presenciando algo chocante, que nunca teríamos imaginado. Meu primeiro pensamento foi imediatamente a todas aquelas pessoas dentro das torres, depois a seus familiares, porque, sem dúvida, passariam dias dramáticos. Recolhi-me em oração, pedindo ao Senhor para aliviar o sofrimento daquelas pessoas e acolher em sua presença as vítimas inocentes daquelas ações desumanas. Chorei por elas.

Naquela manhã, vi apenas a cena do segundo avião se chocando contra a torre; depois, mostraram-me também as imagens do primeiro e do ataque contra o Pentágono, assim como da queda do avião na Pensilvânia. Os rostos daqueles americanos perdidos, sem rumo, cobertos de poeira ou em meio aos destroços, fugindo ou recebendo socorro, ficaram impressos em minha mente. Que tristeza… Sempre que penso neles, vêm-me à mente as imagens das guerras ao redor do mundo e do sofrimento de quem é atacado por bombas.

A guerra, naquele 11 de setembro de 2001, chegara ao coração do Ocidente; já não era mais algo que só dizia respeito ao Oriente Médio ou a algum país da África ou da Ásia, muitas vezes pouco conhecido pelos habitantes do chamado primeiro mundo: os Estados Unidos, reconhecidos como uma das maiores potências do mundo, tinham sido atacados. A princípio, quando o primeiro avião bateu no arranha-céu, todos pensaram que fosse um acidente, mas depois, com o segundo, a verdade ficou evidente: havia um ataque terrorista em curso, e o mundo estava retornando ao pesadelo da guerra.

Naqueles dias, alguns teóricos da conspiração chegaram a levantar a hipótese, escrevendo nos jornais ou na internet, de que naquela manhã todos os judeus que trabalhavam no World Trade Center tinham faltado ao trabalho por terem sido avisados com antecedência sobre o que aconteceria. Essa grave acusação criava uma ferida talvez ainda mais profunda do que tudo o que acontecera naqueles dias, pois apontava o dedo contra um povo inocente, que ao longo da História tinha sido vítima de um genocídio e clamava por vingança na presença de Deus.

O desespero era geral, sem distinção de religião: naquele dia, foram derramadas lágrimas de dor diante de um fratricídio, diante da incapacidade de fazer coexistirem pelo diálogo as nossas diferenças; foi uma perda injusta e insensata de inocentes, com um ato de violência sem precedentes, a negação de qualquer religiosidade autêntica. É uma blasfêmia, como aconteceu então, utilizar o nome de Deus para justificar massacres, assassinatos, ataques terroristas, perseguição de pessoas e de populações inteiras.

É dever dos homens da Igreja denunciar e trazer à luz toda tentativa de justificar qualquer forma de ódio em nome da religião e condenar quem pratica essa falsificação idólatra de Deus. No dia dos atentados de 11 de setembro, a morte parecia ter tomado conta de tudo, mas uma pequena chama permanecia acesa na escuridão: a chama do amor. Em meio àquela dor excruciante, o ser humano soube mostrar sua melhor face, a face da bondade e do heroísmo. Lembremos de quem se colocou à disposição para dar suporte aos socorristas, de quem distribuiu água e alimentos, de quem manteve seu negócio aberto para dar assistência às forças da ordem, de quem levou cobertas e artigos de primeira necessidade, ainda que de longe.

Pensemos nas mãos estendidas em uma metrópole que talvez parecesse orientada apenas ao lucro, mas que, em vez disso, mostrou-se capaz de gerar solidariedade. Naquele momento, as diferenças de religião, de sangue, de origem, de política foram derrubadas em nome de uma fraternidade sem fronteiras. Todos eram americanos, e tinham orgulho disso! Também penso nos policiais e nos bombeiros de Nova York, que entraram nas torres já próximas do colapso para salvar o máximo de vidas humanas possível. Arriscaram tudo, puseram a vida dos outros à frente das próprias: alguns tombaram em serviço, outros conseguiram salvar muitas pessoas enquanto a devastação dominava tudo ao redor.”

Vida: A minha história através da História

  • Autores: Papa Francisco e Fabio Marchese Ragona
  • Tradução: Milena Vargas
  • Editora: HarperCollins (304 págs.; R$ 49,90)

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