Obra de George Orwell, mais atual do que nunca, ganha novas edições, traduções e uma HQ


Agora, antes de sua obra entrar em domínio público em janeiro, novas edições de seus livros chegam às prateleiras, incluindo uma nova tradução de 'A Fazenda dos Animais'

Por Guilherme Sobota

Não é de hoje que George Orwell está em alta. Pelo menos desde 2016, seus livros voltaram ao topo das listas de mais vendidos, apontando para uma busca na ficção por respostas sobre a realidade. Agora, antes de sua obra entrar em domínio público em janeiro, novas edições de suas obras chegam às prateleiras: uma nova tradução de A Revolução dos Bichos (agora traduzida como A Fazenda dos Animais, fiel ao original Animal Farm) com rica fortuna crítica, e também uma versão inédita em quadrinhos de 1984.

A Companhia das Letras lançou a edição especial de A Fazenda dos Animais com tradução de Paulo Henriques Britto e organização do professor de literatura comparada da USP, Marcelo Pen; uma seleção de ensaios, Sobre a Verdade, traduzida por Claudio Alves Marcondes; edições da Penguin Companhia de A Fazenda dos Animais e 1984; e a adaptação inédita do quadrinista paulistano Fido Nesti.

Imagens do livro '1984 (edição em quadrinhos)', ilustrada pelo artista paulistano Fido Nesti, sobre o texto de George Orwell Foto: Fido Nesti/Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras
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Um destaque da nova edição de A Fazenda dos Animais é o posfácio do organizador, explicando a trajetória do livro, traduzido para 70 idiomas e um dos maiores best-sellers mundiais de todos os tempos. Pen associa ao livro uma “apropriação retrógrada”, ou seja, uma leitura crítica reducionista que resume o enredo a um ataque ao regime soviético, ou propaganda anticomunista. É bom lembrar que Orwell se definia como um “socialista democrático”, e que boa parte dos seus escritos, especialmente da fase madura, carrega essa posição política.

Mesmo assim, o livro foi usado para fomentar uma guerra ideológica sem precedentes. Um braço extra oficial da CIA, a agência de inteligência do governo dos Estados Unidos, comprou os direitos do livro logo após a morte de George Orwell (em 1950) e desenvolveu o primeiro longa-metragem em animação da Grã-Bretanha, além de comprovadamente ter se envolvido na tradução do livro para mais de trinta idiomas, entre eles o português.

Pen explica que não encontrou nenhum documento vinculando a CIA à edição brasileira do livro, de 1964, mas a tradução foi patrocinada pelo Instituto de Pesquisa Social, o IPES, uma instituição privada liderada por empresários com objetivos políticos. O livro foi “impulsionado menos por um critério comercial ou mesmo literário do que por sua aura de arma psicológica anticomunista”, escreve.

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O Grupo de Publicações/Editorial do Ipes era comandado por Rubem Fonseca, e estudos apontam que, ainda em 1963, o instituto já havia distribuído mais de 2,5 milhões de livros. Sobre o caso de Animal Farm em específico, o livro viria a ser traduzido pelo então tenente do Exército, Heitor de Aquino Ferreira, que mais tarde seria assistente pessoal do ex-presidente Ernesto Geisel durante a ditadura militar. A palavra “revolução”, usada no título dessa versão, que se manteve até agora como a mais difundida no mercado editorial brasileiro e segue no catálogo da editora, não aparece no original; no novo posfácio, Pen identifica algumas sutis escolhas de tradução discutíveis, mas reconhece o trabalho sério do tradutor.

Mas há efeitos na publicação do livro com essa intenção? Ele funcionou como propaganda anticomunista? “Para responder a essa questão, carecemos de pesquisa”, explica Pen ao Estadão. “Havia, no IPES, um setor de estudos, criado justamente para pensar e eventualmente investir nessas publicações, nesses lançamentos. Eram estratégias planejadas, discutidas e depois postas em prática por um mecanismo muito eficaz de divulgação e propaganda. O livro, como indico no posfácio, não vendeu grande coisa no lançamento, mas depois, a exemplo da trajetória da obra no mundo, fez um imenso sucesso. Se o êxito serviu para os propósitos de propaganda, não sei dizer. Só sei que houve os propósitos.”

Além de um ensaio visual inédito da artista Vânia Mignone, a edição também traz diversos textos críticos, de escritores e pesquisadores como Edmund Wilson, Northrop Frye e Alex Woloch, entre outros.

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“Nos anos 1960, quando Mario Vargas Llosa, por exemplo, escrevia que a ‘literatura é fogo’, no sentido de não conformismo e rebelião, capaz de mudar a vida, imaginava-se que esse espírito revolucionário poderia ser conduzido pela literatura latino-americana do Boom e também por muitos autores brasileiros”, explica ainda o professor. “Olhando para o aparato do IPES/Ibad e o que eles planejaram, propuseram e realizaram, podemos ver que, também no campo oposto, atribui-se à literatura um grande poder, mas, na perspectiva deles, no sentido do conformismo e da regressão. Se houve um grande investimento no lançamento e tradução de livros e impressos é porque realmente se acreditava no seu poder como arma ideológica. O livro de Orwell foi traduzido e lançado dentro desse espírito.”

1984 em quadrinhos

A outra grande obra do escritor britânico ganha agora também uma versão inédita em quadrinhos, feita pelo artista paulistano Fido Nesti. A editora – que também capitaneou, em 2018, um quadrinho de A Revolução dos Bichos, feito por Odyr – já vendeu os direitos do livro para 12 países, alguns lançados quase que simultaneamente à versão brasileira. Feito com nanquim e colorizado digitalmente, o livro também usa a experiência pessoal do quadrinista em Londres, onde morou por um ano e onde se dá a trama de 1984. Ele explica que buscou a visão de Orwell quando o livro foi escrito (em 1948), e não o agora passado real do ano do título da obra.

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“Eu li o livro pela primeira vez em 1984 mesmo”, conta Nesti. “Não lembro exatamente o que me ligava ao livro na época, era um finalzinho da ditadura militar, lembro das capas de jornais com a cara dos militares. A leitura meio que soou um alarme em mim, para eu ficar mais esperto sobre o que estava acontecendo.” Foram um ano e oito meses de trabalho para Nesti, que releu o livro em 2018 e sentiu que seus paralelos com a realidade se fortaleceram nos últimos 36 anos. 

Imagens do livro '1984 (edição em quadrinhos)', ilustrada pelo artista paulistano Fido Nesti, sobre o texto de George Orwell Foto: Fido Nesti/Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras

“A revolução tecnológica mudou tudo. Hoje, há uma perda da privacidade, estamos com o celular na mão o tempo todo, ele ouve o que você fala e oferece produtos, fica jogando fake news, não se sabe mais o que é verdade ou não é, são experimentos com países inteiros”, diz, ressaltando aspectos sugeridos no livro. Ele conta que uma pergunta que tem recebido de jornalistas do mundo é sobre a atualidade do livro. “Me perguntam se no Brasil também sentimos que é 1984 de novo”, diz o quadrinista.

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Com ou sem paralelos com o presente, o quadrinhos serve como uma bela porta de entrada ao universo orwelliano.

Novas traduções

Algumas editoras já preparam novas edições para o ano que vem. A Globo vai lançar 1984 e A Revolução dos Bichos, e a Nova Fronteira se prepara para lançar em março uma versão em HQ de 1984, assinada pela dupla francesa Sybille Titeux de La Croix e Amazing Ameziane. Antofágica, L&PM, Novo Século e Autêntica também preparam suas versões. Mas por enquanto, quem edita Orwell no Brasil é apenas a Companhia das Letras, e estes são os novos lançamentos:

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Capas das novas edições de George Orwell na Companhia das Letras Foto:

1984 (Edição Especial)

  • Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
  • 408 págs., R$119,90 / R$44,90

1984 (Coleção Penguin Companhia)

  • Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
  • 392 págs., R$24,90

1984 (Edição em Quadrinhos)

  • Autor: Fido Nesti
  • 224 págs., R$84,90 / R$39,90

Sobre a Verdade

  • Tradução: Claudio Alves Marcondes
  • 208 págs., R$39,90 / R$29,90

A Fazenda dos Animais (Edição Especial)

  • Organização: Marcelo Pen
  • Tradução: Paulo Henriques Britto
  • 248 págs., R$89,90 / R$39,90

A Fazenda dos Animais (Coleção Penguin Companhia)

  • Tradução: Paulo Henriques Britto
  • 136 págs., R$19,90

Não é de hoje que George Orwell está em alta. Pelo menos desde 2016, seus livros voltaram ao topo das listas de mais vendidos, apontando para uma busca na ficção por respostas sobre a realidade. Agora, antes de sua obra entrar em domínio público em janeiro, novas edições de suas obras chegam às prateleiras: uma nova tradução de A Revolução dos Bichos (agora traduzida como A Fazenda dos Animais, fiel ao original Animal Farm) com rica fortuna crítica, e também uma versão inédita em quadrinhos de 1984.

A Companhia das Letras lançou a edição especial de A Fazenda dos Animais com tradução de Paulo Henriques Britto e organização do professor de literatura comparada da USP, Marcelo Pen; uma seleção de ensaios, Sobre a Verdade, traduzida por Claudio Alves Marcondes; edições da Penguin Companhia de A Fazenda dos Animais e 1984; e a adaptação inédita do quadrinista paulistano Fido Nesti.

Imagens do livro '1984 (edição em quadrinhos)', ilustrada pelo artista paulistano Fido Nesti, sobre o texto de George Orwell Foto: Fido Nesti/Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras

Um destaque da nova edição de A Fazenda dos Animais é o posfácio do organizador, explicando a trajetória do livro, traduzido para 70 idiomas e um dos maiores best-sellers mundiais de todos os tempos. Pen associa ao livro uma “apropriação retrógrada”, ou seja, uma leitura crítica reducionista que resume o enredo a um ataque ao regime soviético, ou propaganda anticomunista. É bom lembrar que Orwell se definia como um “socialista democrático”, e que boa parte dos seus escritos, especialmente da fase madura, carrega essa posição política.

Mesmo assim, o livro foi usado para fomentar uma guerra ideológica sem precedentes. Um braço extra oficial da CIA, a agência de inteligência do governo dos Estados Unidos, comprou os direitos do livro logo após a morte de George Orwell (em 1950) e desenvolveu o primeiro longa-metragem em animação da Grã-Bretanha, além de comprovadamente ter se envolvido na tradução do livro para mais de trinta idiomas, entre eles o português.

Pen explica que não encontrou nenhum documento vinculando a CIA à edição brasileira do livro, de 1964, mas a tradução foi patrocinada pelo Instituto de Pesquisa Social, o IPES, uma instituição privada liderada por empresários com objetivos políticos. O livro foi “impulsionado menos por um critério comercial ou mesmo literário do que por sua aura de arma psicológica anticomunista”, escreve.

O Grupo de Publicações/Editorial do Ipes era comandado por Rubem Fonseca, e estudos apontam que, ainda em 1963, o instituto já havia distribuído mais de 2,5 milhões de livros. Sobre o caso de Animal Farm em específico, o livro viria a ser traduzido pelo então tenente do Exército, Heitor de Aquino Ferreira, que mais tarde seria assistente pessoal do ex-presidente Ernesto Geisel durante a ditadura militar. A palavra “revolução”, usada no título dessa versão, que se manteve até agora como a mais difundida no mercado editorial brasileiro e segue no catálogo da editora, não aparece no original; no novo posfácio, Pen identifica algumas sutis escolhas de tradução discutíveis, mas reconhece o trabalho sério do tradutor.

Mas há efeitos na publicação do livro com essa intenção? Ele funcionou como propaganda anticomunista? “Para responder a essa questão, carecemos de pesquisa”, explica Pen ao Estadão. “Havia, no IPES, um setor de estudos, criado justamente para pensar e eventualmente investir nessas publicações, nesses lançamentos. Eram estratégias planejadas, discutidas e depois postas em prática por um mecanismo muito eficaz de divulgação e propaganda. O livro, como indico no posfácio, não vendeu grande coisa no lançamento, mas depois, a exemplo da trajetória da obra no mundo, fez um imenso sucesso. Se o êxito serviu para os propósitos de propaganda, não sei dizer. Só sei que houve os propósitos.”

Além de um ensaio visual inédito da artista Vânia Mignone, a edição também traz diversos textos críticos, de escritores e pesquisadores como Edmund Wilson, Northrop Frye e Alex Woloch, entre outros.

“Nos anos 1960, quando Mario Vargas Llosa, por exemplo, escrevia que a ‘literatura é fogo’, no sentido de não conformismo e rebelião, capaz de mudar a vida, imaginava-se que esse espírito revolucionário poderia ser conduzido pela literatura latino-americana do Boom e também por muitos autores brasileiros”, explica ainda o professor. “Olhando para o aparato do IPES/Ibad e o que eles planejaram, propuseram e realizaram, podemos ver que, também no campo oposto, atribui-se à literatura um grande poder, mas, na perspectiva deles, no sentido do conformismo e da regressão. Se houve um grande investimento no lançamento e tradução de livros e impressos é porque realmente se acreditava no seu poder como arma ideológica. O livro de Orwell foi traduzido e lançado dentro desse espírito.”

1984 em quadrinhos

A outra grande obra do escritor britânico ganha agora também uma versão inédita em quadrinhos, feita pelo artista paulistano Fido Nesti. A editora – que também capitaneou, em 2018, um quadrinho de A Revolução dos Bichos, feito por Odyr – já vendeu os direitos do livro para 12 países, alguns lançados quase que simultaneamente à versão brasileira. Feito com nanquim e colorizado digitalmente, o livro também usa a experiência pessoal do quadrinista em Londres, onde morou por um ano e onde se dá a trama de 1984. Ele explica que buscou a visão de Orwell quando o livro foi escrito (em 1948), e não o agora passado real do ano do título da obra.

“Eu li o livro pela primeira vez em 1984 mesmo”, conta Nesti. “Não lembro exatamente o que me ligava ao livro na época, era um finalzinho da ditadura militar, lembro das capas de jornais com a cara dos militares. A leitura meio que soou um alarme em mim, para eu ficar mais esperto sobre o que estava acontecendo.” Foram um ano e oito meses de trabalho para Nesti, que releu o livro em 2018 e sentiu que seus paralelos com a realidade se fortaleceram nos últimos 36 anos. 

Imagens do livro '1984 (edição em quadrinhos)', ilustrada pelo artista paulistano Fido Nesti, sobre o texto de George Orwell Foto: Fido Nesti/Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras

“A revolução tecnológica mudou tudo. Hoje, há uma perda da privacidade, estamos com o celular na mão o tempo todo, ele ouve o que você fala e oferece produtos, fica jogando fake news, não se sabe mais o que é verdade ou não é, são experimentos com países inteiros”, diz, ressaltando aspectos sugeridos no livro. Ele conta que uma pergunta que tem recebido de jornalistas do mundo é sobre a atualidade do livro. “Me perguntam se no Brasil também sentimos que é 1984 de novo”, diz o quadrinista.

Com ou sem paralelos com o presente, o quadrinhos serve como uma bela porta de entrada ao universo orwelliano.

Novas traduções

Algumas editoras já preparam novas edições para o ano que vem. A Globo vai lançar 1984 e A Revolução dos Bichos, e a Nova Fronteira se prepara para lançar em março uma versão em HQ de 1984, assinada pela dupla francesa Sybille Titeux de La Croix e Amazing Ameziane. Antofágica, L&PM, Novo Século e Autêntica também preparam suas versões. Mas por enquanto, quem edita Orwell no Brasil é apenas a Companhia das Letras, e estes são os novos lançamentos:

Capas das novas edições de George Orwell na Companhia das Letras Foto:

1984 (Edição Especial)

  • Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
  • 408 págs., R$119,90 / R$44,90

1984 (Coleção Penguin Companhia)

  • Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
  • 392 págs., R$24,90

1984 (Edição em Quadrinhos)

  • Autor: Fido Nesti
  • 224 págs., R$84,90 / R$39,90

Sobre a Verdade

  • Tradução: Claudio Alves Marcondes
  • 208 págs., R$39,90 / R$29,90

A Fazenda dos Animais (Edição Especial)

  • Organização: Marcelo Pen
  • Tradução: Paulo Henriques Britto
  • 248 págs., R$89,90 / R$39,90

A Fazenda dos Animais (Coleção Penguin Companhia)

  • Tradução: Paulo Henriques Britto
  • 136 págs., R$19,90

Não é de hoje que George Orwell está em alta. Pelo menos desde 2016, seus livros voltaram ao topo das listas de mais vendidos, apontando para uma busca na ficção por respostas sobre a realidade. Agora, antes de sua obra entrar em domínio público em janeiro, novas edições de suas obras chegam às prateleiras: uma nova tradução de A Revolução dos Bichos (agora traduzida como A Fazenda dos Animais, fiel ao original Animal Farm) com rica fortuna crítica, e também uma versão inédita em quadrinhos de 1984.

A Companhia das Letras lançou a edição especial de A Fazenda dos Animais com tradução de Paulo Henriques Britto e organização do professor de literatura comparada da USP, Marcelo Pen; uma seleção de ensaios, Sobre a Verdade, traduzida por Claudio Alves Marcondes; edições da Penguin Companhia de A Fazenda dos Animais e 1984; e a adaptação inédita do quadrinista paulistano Fido Nesti.

Imagens do livro '1984 (edição em quadrinhos)', ilustrada pelo artista paulistano Fido Nesti, sobre o texto de George Orwell Foto: Fido Nesti/Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras

Um destaque da nova edição de A Fazenda dos Animais é o posfácio do organizador, explicando a trajetória do livro, traduzido para 70 idiomas e um dos maiores best-sellers mundiais de todos os tempos. Pen associa ao livro uma “apropriação retrógrada”, ou seja, uma leitura crítica reducionista que resume o enredo a um ataque ao regime soviético, ou propaganda anticomunista. É bom lembrar que Orwell se definia como um “socialista democrático”, e que boa parte dos seus escritos, especialmente da fase madura, carrega essa posição política.

Mesmo assim, o livro foi usado para fomentar uma guerra ideológica sem precedentes. Um braço extra oficial da CIA, a agência de inteligência do governo dos Estados Unidos, comprou os direitos do livro logo após a morte de George Orwell (em 1950) e desenvolveu o primeiro longa-metragem em animação da Grã-Bretanha, além de comprovadamente ter se envolvido na tradução do livro para mais de trinta idiomas, entre eles o português.

Pen explica que não encontrou nenhum documento vinculando a CIA à edição brasileira do livro, de 1964, mas a tradução foi patrocinada pelo Instituto de Pesquisa Social, o IPES, uma instituição privada liderada por empresários com objetivos políticos. O livro foi “impulsionado menos por um critério comercial ou mesmo literário do que por sua aura de arma psicológica anticomunista”, escreve.

O Grupo de Publicações/Editorial do Ipes era comandado por Rubem Fonseca, e estudos apontam que, ainda em 1963, o instituto já havia distribuído mais de 2,5 milhões de livros. Sobre o caso de Animal Farm em específico, o livro viria a ser traduzido pelo então tenente do Exército, Heitor de Aquino Ferreira, que mais tarde seria assistente pessoal do ex-presidente Ernesto Geisel durante a ditadura militar. A palavra “revolução”, usada no título dessa versão, que se manteve até agora como a mais difundida no mercado editorial brasileiro e segue no catálogo da editora, não aparece no original; no novo posfácio, Pen identifica algumas sutis escolhas de tradução discutíveis, mas reconhece o trabalho sério do tradutor.

Mas há efeitos na publicação do livro com essa intenção? Ele funcionou como propaganda anticomunista? “Para responder a essa questão, carecemos de pesquisa”, explica Pen ao Estadão. “Havia, no IPES, um setor de estudos, criado justamente para pensar e eventualmente investir nessas publicações, nesses lançamentos. Eram estratégias planejadas, discutidas e depois postas em prática por um mecanismo muito eficaz de divulgação e propaganda. O livro, como indico no posfácio, não vendeu grande coisa no lançamento, mas depois, a exemplo da trajetória da obra no mundo, fez um imenso sucesso. Se o êxito serviu para os propósitos de propaganda, não sei dizer. Só sei que houve os propósitos.”

Além de um ensaio visual inédito da artista Vânia Mignone, a edição também traz diversos textos críticos, de escritores e pesquisadores como Edmund Wilson, Northrop Frye e Alex Woloch, entre outros.

“Nos anos 1960, quando Mario Vargas Llosa, por exemplo, escrevia que a ‘literatura é fogo’, no sentido de não conformismo e rebelião, capaz de mudar a vida, imaginava-se que esse espírito revolucionário poderia ser conduzido pela literatura latino-americana do Boom e também por muitos autores brasileiros”, explica ainda o professor. “Olhando para o aparato do IPES/Ibad e o que eles planejaram, propuseram e realizaram, podemos ver que, também no campo oposto, atribui-se à literatura um grande poder, mas, na perspectiva deles, no sentido do conformismo e da regressão. Se houve um grande investimento no lançamento e tradução de livros e impressos é porque realmente se acreditava no seu poder como arma ideológica. O livro de Orwell foi traduzido e lançado dentro desse espírito.”

1984 em quadrinhos

A outra grande obra do escritor britânico ganha agora também uma versão inédita em quadrinhos, feita pelo artista paulistano Fido Nesti. A editora – que também capitaneou, em 2018, um quadrinho de A Revolução dos Bichos, feito por Odyr – já vendeu os direitos do livro para 12 países, alguns lançados quase que simultaneamente à versão brasileira. Feito com nanquim e colorizado digitalmente, o livro também usa a experiência pessoal do quadrinista em Londres, onde morou por um ano e onde se dá a trama de 1984. Ele explica que buscou a visão de Orwell quando o livro foi escrito (em 1948), e não o agora passado real do ano do título da obra.

“Eu li o livro pela primeira vez em 1984 mesmo”, conta Nesti. “Não lembro exatamente o que me ligava ao livro na época, era um finalzinho da ditadura militar, lembro das capas de jornais com a cara dos militares. A leitura meio que soou um alarme em mim, para eu ficar mais esperto sobre o que estava acontecendo.” Foram um ano e oito meses de trabalho para Nesti, que releu o livro em 2018 e sentiu que seus paralelos com a realidade se fortaleceram nos últimos 36 anos. 

Imagens do livro '1984 (edição em quadrinhos)', ilustrada pelo artista paulistano Fido Nesti, sobre o texto de George Orwell Foto: Fido Nesti/Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras

“A revolução tecnológica mudou tudo. Hoje, há uma perda da privacidade, estamos com o celular na mão o tempo todo, ele ouve o que você fala e oferece produtos, fica jogando fake news, não se sabe mais o que é verdade ou não é, são experimentos com países inteiros”, diz, ressaltando aspectos sugeridos no livro. Ele conta que uma pergunta que tem recebido de jornalistas do mundo é sobre a atualidade do livro. “Me perguntam se no Brasil também sentimos que é 1984 de novo”, diz o quadrinista.

Com ou sem paralelos com o presente, o quadrinhos serve como uma bela porta de entrada ao universo orwelliano.

Novas traduções

Algumas editoras já preparam novas edições para o ano que vem. A Globo vai lançar 1984 e A Revolução dos Bichos, e a Nova Fronteira se prepara para lançar em março uma versão em HQ de 1984, assinada pela dupla francesa Sybille Titeux de La Croix e Amazing Ameziane. Antofágica, L&PM, Novo Século e Autêntica também preparam suas versões. Mas por enquanto, quem edita Orwell no Brasil é apenas a Companhia das Letras, e estes são os novos lançamentos:

Capas das novas edições de George Orwell na Companhia das Letras Foto:

1984 (Edição Especial)

  • Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
  • 408 págs., R$119,90 / R$44,90

1984 (Coleção Penguin Companhia)

  • Tradução: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner
  • 392 págs., R$24,90

1984 (Edição em Quadrinhos)

  • Autor: Fido Nesti
  • 224 págs., R$84,90 / R$39,90

Sobre a Verdade

  • Tradução: Claudio Alves Marcondes
  • 208 págs., R$39,90 / R$29,90

A Fazenda dos Animais (Edição Especial)

  • Organização: Marcelo Pen
  • Tradução: Paulo Henriques Britto
  • 248 págs., R$89,90 / R$39,90

A Fazenda dos Animais (Coleção Penguin Companhia)

  • Tradução: Paulo Henriques Britto
  • 136 págs., R$19,90

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