Adelaide, a protagonista de Os Grandes Carnívoros (Alfaguara), esteve na cadeia. Foi presa em um país estrangeiro, nos Estados Unidos (ou na América, a “Grande Sinédoque”), por incendiar um laboratório de pesquisas que utilizava animais como cobaias. Ela também sente culpa: para não ser julgada como “terrorista” e passar o resto da vida na cadeia, dedurou os demais membros do grupo de ativistas que integrava, isto é, colaborou com as autoridades. Cumprida a pena de três anos, Adelaide retorna ao Brasil e aluga uma casa na serra da Mantiqueira, nas proximidades de um vilarejo. É nesse ponto que se inicia o oitavo romance da carioca Adriana Lisboa: no ponto do retorno.
Trata-se de um ponto familiar à literatura brasileira contemporânea. Perdi a conta de quantos livros nacionais recentes (alguns bons, vários assim-assim e inúmeros ruins) partem daí ou de premissas similares. Mas há distinções a serem traçadas aqui, elementos que impedem Os Grandes Carnívoros de cair na vala comum.
O primeiro deles é o fato de que Adelaide retorna ao Brasil após uma longa e acidentada estadia no exterior, mas não para casa. Voltar para casa seria voltar para a cidade do Rio de Janeiro, onde estão seus únicos parentes vivos, o pai doente e a tia, e aí teríamos aquela historieta convencional repleta de acertos de contas e escarradas sentimentalistas. Felizmente, não é o caso aqui, pois Adelaide opta por um segundo exílio.
E, ao final do romance, “recrutável” como é, ela parece optar por um terceiro ou por uma repetição caseira do exílio original. Naquela historieta banal, teríamos a personagem lidando com (encha a boca de farofa) os fantasmas familiares. Adriana Lisboa é incapaz de conceber banalidades, e Adelaide tem coisas mais imediatas e assustadoras com as quais lidar. Uma delas é o próprio corpo; outra é o corpo do outro (esse animal).
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Outro elemento que eleva o romance é a prosa de Lisboa. Melhor ficcionista de sua geração, autora de livros excelentes como Hanói, Azul corvo e Rakushisha, ela foi agraciada com o Prêmio José Saramago por Sinfonia em Branco. Claro que, a julgar pela lista de premiados, convém dizer que é Lisboa quem conferiu prestígio a esse prêmio, e não o contrário.
Veja, por exemplo, como ela descreve a viagem de Adelaide em “um longo voo noturno que, segundo o mapa que acompanhava na escuridão da cabine, veio despencando Américas abaixo”, fantasiando que “talvez bastasse ao piloto largar o aviãozinho em seu ponto de partida setentrional e, pela força da gravidade, ele acabaria em seu porto de chegada mais ao sul”. Ocorre que, no “coração de Adelaide”, esse “movimento parecia ser, mais que do norte ao sul, do fundo à superfície”. Ela espera deixar “a escuridão para trás”. Mas, claro, aqui é o Brasil e isso não é possível. E o romance se desenrola para mostrar a Adelaide uma outra modalidade de escuridão.
A questão da violência em ‘Os Grandes Carnívoros’
Chegamos, assim, a um dos temas que norteiam Os Grandes Carnívoros: a violência. Há diversas formas de violência abordadas e retratadas no livro. Há, claro, a violência política dos ativistas, violência contra o “patrimônio”, sabotagens e destruições de bens e instalações, em que ninguém morre ou sai ferido — exceto (o que não deixa de ser irônico) os próprios ativistas.
Vide Sofia, uma das líderes do grupo e pessoa importantíssima para Adelaide. Presa, Sofia é a única que não abre o bico para as autoridades. Mas, se é verdade “que o mundo se desmantela por um nada”, também é verdade que pessoas assim, quando confrontadas com esse mundo, desmantelam-se em igual medida. Fiel àquilo em que acredita e pelo que luta, a “terrorista” Sofia comete suicídio na cadeia. No entanto, e isso é curioso, seu gesto não carrega originalidade nenhuma: o método (uma sacola plástica na cabeça) e o bilhete deixado espelham o método e o bilhete deixado por outro ativista. Quando até mesmo o suicídio enquanto political statement perde a sua “aura”, é sinal de que estamos mesmo ferrados.
A autora também lida com as violências que testemunhamos ou, nos piores casos, sofremos cotidianamente. Nas páginas 64 e 65, há uma relação de brutalidades ocorridas apenas no ano de 2011. E, no caso específico dos personagens que enfoca, o romance caminha para a ocorrência de um crime hediondo. Quantas mortes (de si mesma e de outrem) Adelaide será capaz de suportar? Sendo formidável como é, provável que muitas. E, em vista do que sofreu, compreendendo melhor a “faculdade” da violência, talvez resulte em uma ativista mais efetiva do que a malfadada Sofia.
Em resumo, temos a violência dos humanos contra os outros animais, que leva à “violência” dos ativistas, à qual o Estado reage pronta e violentamente, e a violência dos animais humanos contra os animais humanos em suas incontáveis variedades cotidianas, seja em Mariupol, seja na Mantiqueira. À sua maneira, Os Grandes Carnívoros é um belo livro apocalíptico: “Morrer dos vivos. Viver dos mortos. O começo é o tempo todo e também o fim”. Mas, hoje em dia, toda e qualquer narrativa contemporânea digna de nota, pelo sim, pelo não, exala um fortíssimo bodum apocalíptico.
Os Grandes Carnívoros
- Autora: Adriana Lisboa
- Editora: Alfaguara (176 págs.; R$ 84,90; R$ 39,90 o e-book)