‘Os Náufragos do Wager’ é conto marítimo incrível e real sobre barbárie, canibalismo e fake news


Livro de David Grann conta a história real dos sobreviventes da embarcação inglesa que vieram parar no Brasil no século 18; obra vai virar filme de Scorsese com Leonardo DiCaprio, como ‘Assassinos da Lua das Flores’, do mesmo autor; leia entrevista

Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Obsessões humanas sempre fascinaram o escritor e jornalista David Grann. Foi o que o impulsionou a escrever Z - A Cidade Perdida, sobre o desaparecimento do explorador britânico Percy Fawcett na selva amazônica nos anos 1920, durante viagem em busca da mítica cidade de Eldorado. Ou ainda Assassinos da Lua das Flores, que inspirou o filme dirigido por Martin Scorsese esnobado pelo Oscar sobre a história real da primeira grande investigação de homicídios do FBI envolvendo membros do povo indígena Osage, de Oklahoma.

Jornalista da revista New Yorker desde 2003, David Grann, hoje com 57 anos, explora temas que escapam aos olhos e, ao folhar um diário desbotado em um arquivo digital, descobriu que pertenceu a John Byron, avô do poeta Lord Byron. Ali, estava documentada sua jornada como aspirante no The Wager, um navio de guerra britânico que partiu em 1740 em uma missão secreta para capturar um galeão espanhol carregado de ouro.

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A sintaxe arcaica era difícil de decifrar e Grann começou a ficar entediado. Foi então que se deparou com passagens que chamaram sua atenção: descrições vívidas de escorbuto e tufões, canibalismo e motins. Isso aconteceu há cinco anos e foi o estopim para ele iniciar uma série de pesquisas que resultou em Os Náufragos do Wager: Uma História de Motim e Assassinato (Companhia das Letras), livro reportagem que se lê com os corações aos pulos.

Afinal, não é apenas uma história de sobrevivência em condições inóspitas, mas reacende uma discussão plenamente atual sobre conflito de versões, sobre fake news e sobre como o poder soberano impõe a sua versão.

O que aconteceu com a embarcação Wager?

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Despois de zarpar da Inglaterra em agosto de 1740, a tragédia do Wager começa quando ele naufraga em maio do ano seguinte no extremo sul da América do Sul, logo depois de ultrapassar a inóspita região conhecida como Passagem de Drake, ainda hoje um local perigoso e, naquela época, totalmente desconhecido. Em terra firme, mas sob neve constante, com alimentos cada vez mais escassos e rara água potável, os sobreviventes tentam se organizar de forma civilizada, mas logo a barbárie toma conta, imperando atos de rebeldia, matança e até cenas de canibalismo.

Pintura de Charles Brooking de 1744 do HMS Wager. Foto: Domínio Público

Assim, 81 sobreviventes partiram em um barco improvisado feito em parte com destroços do Wager. Atravessam vendavais e ondas gigantescas, além de tempestades de gelo e terremotos. Mais de 50 morrem durante a jornada e, três meses e meio depois, os resistentes milagrosamente chegam à costa do Rio Grande do Sul, depois de percorridos quase 5 mil quilômetros, uma das mais longas jornadas feitas por náufragos. Recuperados fisicamente, retornam à Inglaterra.

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Quando se imaginava que o milagre terminara, outro barco enfrentou intempéries semelhantes até chegar, três meses depois, na costa sudoeste do Chile. Em uma canoa improvisada, outros três sobreviventes sob um estado assustador: seminus, extremamente magros e com insetos mordiscando o que lhes restava de carne. Depois de também recuperados, voltam à Inglaterra.

Guerra de versões

O que pareceria um saudoso reencontro se transformou em um caso criminal. Os três sobreviventes do Chile fizeram uma denúncia chocante contra os companheiros reaparecidos no Brasil: não se tratavam de heróis, mas de amotinados. Diante da troca de graves acusações, os marinheiros foram convocados pelo Almirantado para encarar a corte marcial. Mais que expor a intimidade daqueles homens, o julgamento colocou em cheque a autoproclamada condição de exemplo como civilização da Inglaterra.

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“Aconteceu ali uma ‘uma parábola’ que reflete bem nossos turbulentos tempos modernos”, comenta Grann, em entrevista por Zoom para o Estadão. “Quando todos voltam à Inglaterra, surge uma profusão de informação e desinformação, além de divulgação de notícias falsas, o que detonou uma guerra sobre quem contava a verdadeira história. Numa suposta mediação, os poderosos se esforçavam para encobrir uma verdade escandalosa que escancarasse os pecados passados de uma nação que se ostentava como exemplar para o mundo. Não parecia uma história acontecida no século 18, mas um retrato dos nossos dias atuais”, conta o autor.

O escritor e jornalista David Grann, autor de 'Assassinos da Lua das Flores' e 'Os Náufragos do Wager'. Foto: Rebecca Mansell/Divulgação
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Cada sobrevivente não estava apenas tentando moldar suas histórias e contá-las para servir seus próprios interesses. O livro realmente mostra como as nações também manipulam e editam suas histórias como bem lhe convém. E o que aconteceu na Ilha Wager foi algo escandaloso para o Império Britânico, com seus oficiais se revelando homens que eram de fato bárbaros. E, contra isso, ainda havia poderosos que preferiam que tudo simplesmente desaparecesse.

“Algo interessante sobre aquela ilha é que se testou a condição humana. É como um laboratório que revela quem é cada um dos indivíduos, suas naturezas boas e ruins, e também essa tensão essencial sobre o desejo de uma ordem, civilização e comunidade com regras e regulações. Isso pode virar uma guerra, especialmente quando há limitação de suprimentos para sobrevivência. A luta por poder, individualismo. Sob essas mesmas condições também podem aparecer questões sobre estrutura de classes”, ressalta Grann.

Por tudo isso, a imprensa estrangeira comparou o livro de David Grann à ficção publicada por William Golding em 1954, O Senhor da Moscas. Mas, aqui, a vida foi real, houve facções em guerra, motins e assassinatos, e alguns personagens até sucumbiram ao canibalismo.

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Segundo Grann, o interessante é o fato de o livro se equilibrar entre ser bondoso e maligno. “São indivíduos tentando ser mais parecidos conosco, o que resultam em falhas, e em partes boas e ruins.”

A versão de John Byron

Grann conta que teve a certeza que poderia escrever o livro ao ler o relato de um dos tripulantes do Wager, o jovem John Byron (1723-1786). “Li seu diário e fui tragado por ele”, explica. “O que realmente me fisgou foi o fato de, depois de ter travado uma guerra com todas as adversidades naquela ilha, ele voltou para a Inglaterra e teve de enfrentar uma guerra completamente diferente para salvar sua própria vida e acabou lutando contra a verdade.”

Capa de 'Os náufragos do Wager: Uma história de motim e assassinato', de David Grann. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

Segundo Grann, Byron, com 16 anos, era apenas uma criança naquela época, mas representou nossos olhos e ouvidos para testemunhar essa civilização em construção. “Ter 16 anos naquela época não era como ter essa idade hoje. Ele era um garoto e ganhou muita maturidade nesse caldeirão”, conta. “E, quando hoje se lê o poema Don Juan, de seu neto Lord Byron, uau, percebe-se que isso foi tirado dos diários do avô. Sim, é poetizado, mas são as cenas exatas narradas por aquele sobrevivente.”

Pesquisas

O escritor vasculhou a trajetória possível de cada um deles a partir de seus diários. Formou-se uma batalha existencial a partir da frase “todos nós contamos histórias para si mesmos para sobreviver”. “No caso deles, é inegável, pois se não contassem algo convincente, poderiam ser enforcados. Para mim, o mais interessante é que na História você vê ecos dessa presença, reverberações. Quando eu voltava para os Estados Unidos, via uma batalha parecida, com pessoas contando fatos alternativos ou fake news, e retornava a essa história do século 18, uma pequena parábola dos nossos velhos tempos modernos.”

Ele segue: “Em Assassinos da Lua das Flores, procurei ser contido, econômico e muito factual – não queria que minha própria ornamentação prejudicasse o que estava acontecendo. Os Náufragos do Wager também trata de temas sérios, mas, como se trata de um conto marítimo fabuloso, entendi que poderia ter um pouco mais de indulgência”. Grann já negociou os direitos de filmagem para a mesma dupla de Assassinos, o diretor Martin Scorsese e o astro Leonardo DiCaprio.

Os Náufragos do Wager: Uma História de Motim e Assassinato

  • Autor: David Grann
  • Tradução: Pedro Maia Soares
  • Editora: Companhia das Letras (408 págs.; R$ 79,52 | E-book: R$ 44,90)

Obsessões humanas sempre fascinaram o escritor e jornalista David Grann. Foi o que o impulsionou a escrever Z - A Cidade Perdida, sobre o desaparecimento do explorador britânico Percy Fawcett na selva amazônica nos anos 1920, durante viagem em busca da mítica cidade de Eldorado. Ou ainda Assassinos da Lua das Flores, que inspirou o filme dirigido por Martin Scorsese esnobado pelo Oscar sobre a história real da primeira grande investigação de homicídios do FBI envolvendo membros do povo indígena Osage, de Oklahoma.

Jornalista da revista New Yorker desde 2003, David Grann, hoje com 57 anos, explora temas que escapam aos olhos e, ao folhar um diário desbotado em um arquivo digital, descobriu que pertenceu a John Byron, avô do poeta Lord Byron. Ali, estava documentada sua jornada como aspirante no The Wager, um navio de guerra britânico que partiu em 1740 em uma missão secreta para capturar um galeão espanhol carregado de ouro.

A sintaxe arcaica era difícil de decifrar e Grann começou a ficar entediado. Foi então que se deparou com passagens que chamaram sua atenção: descrições vívidas de escorbuto e tufões, canibalismo e motins. Isso aconteceu há cinco anos e foi o estopim para ele iniciar uma série de pesquisas que resultou em Os Náufragos do Wager: Uma História de Motim e Assassinato (Companhia das Letras), livro reportagem que se lê com os corações aos pulos.

Afinal, não é apenas uma história de sobrevivência em condições inóspitas, mas reacende uma discussão plenamente atual sobre conflito de versões, sobre fake news e sobre como o poder soberano impõe a sua versão.

O que aconteceu com a embarcação Wager?

Despois de zarpar da Inglaterra em agosto de 1740, a tragédia do Wager começa quando ele naufraga em maio do ano seguinte no extremo sul da América do Sul, logo depois de ultrapassar a inóspita região conhecida como Passagem de Drake, ainda hoje um local perigoso e, naquela época, totalmente desconhecido. Em terra firme, mas sob neve constante, com alimentos cada vez mais escassos e rara água potável, os sobreviventes tentam se organizar de forma civilizada, mas logo a barbárie toma conta, imperando atos de rebeldia, matança e até cenas de canibalismo.

Pintura de Charles Brooking de 1744 do HMS Wager. Foto: Domínio Público

Assim, 81 sobreviventes partiram em um barco improvisado feito em parte com destroços do Wager. Atravessam vendavais e ondas gigantescas, além de tempestades de gelo e terremotos. Mais de 50 morrem durante a jornada e, três meses e meio depois, os resistentes milagrosamente chegam à costa do Rio Grande do Sul, depois de percorridos quase 5 mil quilômetros, uma das mais longas jornadas feitas por náufragos. Recuperados fisicamente, retornam à Inglaterra.

Quando se imaginava que o milagre terminara, outro barco enfrentou intempéries semelhantes até chegar, três meses depois, na costa sudoeste do Chile. Em uma canoa improvisada, outros três sobreviventes sob um estado assustador: seminus, extremamente magros e com insetos mordiscando o que lhes restava de carne. Depois de também recuperados, voltam à Inglaterra.

Guerra de versões

O que pareceria um saudoso reencontro se transformou em um caso criminal. Os três sobreviventes do Chile fizeram uma denúncia chocante contra os companheiros reaparecidos no Brasil: não se tratavam de heróis, mas de amotinados. Diante da troca de graves acusações, os marinheiros foram convocados pelo Almirantado para encarar a corte marcial. Mais que expor a intimidade daqueles homens, o julgamento colocou em cheque a autoproclamada condição de exemplo como civilização da Inglaterra.

“Aconteceu ali uma ‘uma parábola’ que reflete bem nossos turbulentos tempos modernos”, comenta Grann, em entrevista por Zoom para o Estadão. “Quando todos voltam à Inglaterra, surge uma profusão de informação e desinformação, além de divulgação de notícias falsas, o que detonou uma guerra sobre quem contava a verdadeira história. Numa suposta mediação, os poderosos se esforçavam para encobrir uma verdade escandalosa que escancarasse os pecados passados de uma nação que se ostentava como exemplar para o mundo. Não parecia uma história acontecida no século 18, mas um retrato dos nossos dias atuais”, conta o autor.

O escritor e jornalista David Grann, autor de 'Assassinos da Lua das Flores' e 'Os Náufragos do Wager'. Foto: Rebecca Mansell/Divulgação

Cada sobrevivente não estava apenas tentando moldar suas histórias e contá-las para servir seus próprios interesses. O livro realmente mostra como as nações também manipulam e editam suas histórias como bem lhe convém. E o que aconteceu na Ilha Wager foi algo escandaloso para o Império Britânico, com seus oficiais se revelando homens que eram de fato bárbaros. E, contra isso, ainda havia poderosos que preferiam que tudo simplesmente desaparecesse.

“Algo interessante sobre aquela ilha é que se testou a condição humana. É como um laboratório que revela quem é cada um dos indivíduos, suas naturezas boas e ruins, e também essa tensão essencial sobre o desejo de uma ordem, civilização e comunidade com regras e regulações. Isso pode virar uma guerra, especialmente quando há limitação de suprimentos para sobrevivência. A luta por poder, individualismo. Sob essas mesmas condições também podem aparecer questões sobre estrutura de classes”, ressalta Grann.

Por tudo isso, a imprensa estrangeira comparou o livro de David Grann à ficção publicada por William Golding em 1954, O Senhor da Moscas. Mas, aqui, a vida foi real, houve facções em guerra, motins e assassinatos, e alguns personagens até sucumbiram ao canibalismo.

Segundo Grann, o interessante é o fato de o livro se equilibrar entre ser bondoso e maligno. “São indivíduos tentando ser mais parecidos conosco, o que resultam em falhas, e em partes boas e ruins.”

A versão de John Byron

Grann conta que teve a certeza que poderia escrever o livro ao ler o relato de um dos tripulantes do Wager, o jovem John Byron (1723-1786). “Li seu diário e fui tragado por ele”, explica. “O que realmente me fisgou foi o fato de, depois de ter travado uma guerra com todas as adversidades naquela ilha, ele voltou para a Inglaterra e teve de enfrentar uma guerra completamente diferente para salvar sua própria vida e acabou lutando contra a verdade.”

Capa de 'Os náufragos do Wager: Uma história de motim e assassinato', de David Grann. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

Segundo Grann, Byron, com 16 anos, era apenas uma criança naquela época, mas representou nossos olhos e ouvidos para testemunhar essa civilização em construção. “Ter 16 anos naquela época não era como ter essa idade hoje. Ele era um garoto e ganhou muita maturidade nesse caldeirão”, conta. “E, quando hoje se lê o poema Don Juan, de seu neto Lord Byron, uau, percebe-se que isso foi tirado dos diários do avô. Sim, é poetizado, mas são as cenas exatas narradas por aquele sobrevivente.”

Pesquisas

O escritor vasculhou a trajetória possível de cada um deles a partir de seus diários. Formou-se uma batalha existencial a partir da frase “todos nós contamos histórias para si mesmos para sobreviver”. “No caso deles, é inegável, pois se não contassem algo convincente, poderiam ser enforcados. Para mim, o mais interessante é que na História você vê ecos dessa presença, reverberações. Quando eu voltava para os Estados Unidos, via uma batalha parecida, com pessoas contando fatos alternativos ou fake news, e retornava a essa história do século 18, uma pequena parábola dos nossos velhos tempos modernos.”

Ele segue: “Em Assassinos da Lua das Flores, procurei ser contido, econômico e muito factual – não queria que minha própria ornamentação prejudicasse o que estava acontecendo. Os Náufragos do Wager também trata de temas sérios, mas, como se trata de um conto marítimo fabuloso, entendi que poderia ter um pouco mais de indulgência”. Grann já negociou os direitos de filmagem para a mesma dupla de Assassinos, o diretor Martin Scorsese e o astro Leonardo DiCaprio.

Os Náufragos do Wager: Uma História de Motim e Assassinato

  • Autor: David Grann
  • Tradução: Pedro Maia Soares
  • Editora: Companhia das Letras (408 págs.; R$ 79,52 | E-book: R$ 44,90)

Obsessões humanas sempre fascinaram o escritor e jornalista David Grann. Foi o que o impulsionou a escrever Z - A Cidade Perdida, sobre o desaparecimento do explorador britânico Percy Fawcett na selva amazônica nos anos 1920, durante viagem em busca da mítica cidade de Eldorado. Ou ainda Assassinos da Lua das Flores, que inspirou o filme dirigido por Martin Scorsese esnobado pelo Oscar sobre a história real da primeira grande investigação de homicídios do FBI envolvendo membros do povo indígena Osage, de Oklahoma.

Jornalista da revista New Yorker desde 2003, David Grann, hoje com 57 anos, explora temas que escapam aos olhos e, ao folhar um diário desbotado em um arquivo digital, descobriu que pertenceu a John Byron, avô do poeta Lord Byron. Ali, estava documentada sua jornada como aspirante no The Wager, um navio de guerra britânico que partiu em 1740 em uma missão secreta para capturar um galeão espanhol carregado de ouro.

A sintaxe arcaica era difícil de decifrar e Grann começou a ficar entediado. Foi então que se deparou com passagens que chamaram sua atenção: descrições vívidas de escorbuto e tufões, canibalismo e motins. Isso aconteceu há cinco anos e foi o estopim para ele iniciar uma série de pesquisas que resultou em Os Náufragos do Wager: Uma História de Motim e Assassinato (Companhia das Letras), livro reportagem que se lê com os corações aos pulos.

Afinal, não é apenas uma história de sobrevivência em condições inóspitas, mas reacende uma discussão plenamente atual sobre conflito de versões, sobre fake news e sobre como o poder soberano impõe a sua versão.

O que aconteceu com a embarcação Wager?

Despois de zarpar da Inglaterra em agosto de 1740, a tragédia do Wager começa quando ele naufraga em maio do ano seguinte no extremo sul da América do Sul, logo depois de ultrapassar a inóspita região conhecida como Passagem de Drake, ainda hoje um local perigoso e, naquela época, totalmente desconhecido. Em terra firme, mas sob neve constante, com alimentos cada vez mais escassos e rara água potável, os sobreviventes tentam se organizar de forma civilizada, mas logo a barbárie toma conta, imperando atos de rebeldia, matança e até cenas de canibalismo.

Pintura de Charles Brooking de 1744 do HMS Wager. Foto: Domínio Público

Assim, 81 sobreviventes partiram em um barco improvisado feito em parte com destroços do Wager. Atravessam vendavais e ondas gigantescas, além de tempestades de gelo e terremotos. Mais de 50 morrem durante a jornada e, três meses e meio depois, os resistentes milagrosamente chegam à costa do Rio Grande do Sul, depois de percorridos quase 5 mil quilômetros, uma das mais longas jornadas feitas por náufragos. Recuperados fisicamente, retornam à Inglaterra.

Quando se imaginava que o milagre terminara, outro barco enfrentou intempéries semelhantes até chegar, três meses depois, na costa sudoeste do Chile. Em uma canoa improvisada, outros três sobreviventes sob um estado assustador: seminus, extremamente magros e com insetos mordiscando o que lhes restava de carne. Depois de também recuperados, voltam à Inglaterra.

Guerra de versões

O que pareceria um saudoso reencontro se transformou em um caso criminal. Os três sobreviventes do Chile fizeram uma denúncia chocante contra os companheiros reaparecidos no Brasil: não se tratavam de heróis, mas de amotinados. Diante da troca de graves acusações, os marinheiros foram convocados pelo Almirantado para encarar a corte marcial. Mais que expor a intimidade daqueles homens, o julgamento colocou em cheque a autoproclamada condição de exemplo como civilização da Inglaterra.

“Aconteceu ali uma ‘uma parábola’ que reflete bem nossos turbulentos tempos modernos”, comenta Grann, em entrevista por Zoom para o Estadão. “Quando todos voltam à Inglaterra, surge uma profusão de informação e desinformação, além de divulgação de notícias falsas, o que detonou uma guerra sobre quem contava a verdadeira história. Numa suposta mediação, os poderosos se esforçavam para encobrir uma verdade escandalosa que escancarasse os pecados passados de uma nação que se ostentava como exemplar para o mundo. Não parecia uma história acontecida no século 18, mas um retrato dos nossos dias atuais”, conta o autor.

O escritor e jornalista David Grann, autor de 'Assassinos da Lua das Flores' e 'Os Náufragos do Wager'. Foto: Rebecca Mansell/Divulgação

Cada sobrevivente não estava apenas tentando moldar suas histórias e contá-las para servir seus próprios interesses. O livro realmente mostra como as nações também manipulam e editam suas histórias como bem lhe convém. E o que aconteceu na Ilha Wager foi algo escandaloso para o Império Britânico, com seus oficiais se revelando homens que eram de fato bárbaros. E, contra isso, ainda havia poderosos que preferiam que tudo simplesmente desaparecesse.

“Algo interessante sobre aquela ilha é que se testou a condição humana. É como um laboratório que revela quem é cada um dos indivíduos, suas naturezas boas e ruins, e também essa tensão essencial sobre o desejo de uma ordem, civilização e comunidade com regras e regulações. Isso pode virar uma guerra, especialmente quando há limitação de suprimentos para sobrevivência. A luta por poder, individualismo. Sob essas mesmas condições também podem aparecer questões sobre estrutura de classes”, ressalta Grann.

Por tudo isso, a imprensa estrangeira comparou o livro de David Grann à ficção publicada por William Golding em 1954, O Senhor da Moscas. Mas, aqui, a vida foi real, houve facções em guerra, motins e assassinatos, e alguns personagens até sucumbiram ao canibalismo.

Segundo Grann, o interessante é o fato de o livro se equilibrar entre ser bondoso e maligno. “São indivíduos tentando ser mais parecidos conosco, o que resultam em falhas, e em partes boas e ruins.”

A versão de John Byron

Grann conta que teve a certeza que poderia escrever o livro ao ler o relato de um dos tripulantes do Wager, o jovem John Byron (1723-1786). “Li seu diário e fui tragado por ele”, explica. “O que realmente me fisgou foi o fato de, depois de ter travado uma guerra com todas as adversidades naquela ilha, ele voltou para a Inglaterra e teve de enfrentar uma guerra completamente diferente para salvar sua própria vida e acabou lutando contra a verdade.”

Capa de 'Os náufragos do Wager: Uma história de motim e assassinato', de David Grann. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

Segundo Grann, Byron, com 16 anos, era apenas uma criança naquela época, mas representou nossos olhos e ouvidos para testemunhar essa civilização em construção. “Ter 16 anos naquela época não era como ter essa idade hoje. Ele era um garoto e ganhou muita maturidade nesse caldeirão”, conta. “E, quando hoje se lê o poema Don Juan, de seu neto Lord Byron, uau, percebe-se que isso foi tirado dos diários do avô. Sim, é poetizado, mas são as cenas exatas narradas por aquele sobrevivente.”

Pesquisas

O escritor vasculhou a trajetória possível de cada um deles a partir de seus diários. Formou-se uma batalha existencial a partir da frase “todos nós contamos histórias para si mesmos para sobreviver”. “No caso deles, é inegável, pois se não contassem algo convincente, poderiam ser enforcados. Para mim, o mais interessante é que na História você vê ecos dessa presença, reverberações. Quando eu voltava para os Estados Unidos, via uma batalha parecida, com pessoas contando fatos alternativos ou fake news, e retornava a essa história do século 18, uma pequena parábola dos nossos velhos tempos modernos.”

Ele segue: “Em Assassinos da Lua das Flores, procurei ser contido, econômico e muito factual – não queria que minha própria ornamentação prejudicasse o que estava acontecendo. Os Náufragos do Wager também trata de temas sérios, mas, como se trata de um conto marítimo fabuloso, entendi que poderia ter um pouco mais de indulgência”. Grann já negociou os direitos de filmagem para a mesma dupla de Assassinos, o diretor Martin Scorsese e o astro Leonardo DiCaprio.

Os Náufragos do Wager: Uma História de Motim e Assassinato

  • Autor: David Grann
  • Tradução: Pedro Maia Soares
  • Editora: Companhia das Letras (408 págs.; R$ 79,52 | E-book: R$ 44,90)

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