Os últimos e dolorosos dias do chef Anthony Bourdain


Livro retrata um homem que, no final da vida, estava isolado, injetando esteroides, bebendo até cair e visitando prostitutas, e que desapareceu da vida de sua filha de 11 anos

Por Kim Severson
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Depois que Anthony Bourdain tirou a própria vida em um quarto de hotel francês em 2018, seus amigos próximos, familiares e as pessoas que por décadas o ajudaram a se tornar uma estrela da TV internacional se fecharam diante da enxurrada de perguntas da mídia e permaneceram em silêncio, especialmente sobre seus últimos dias.

Esse silêncio seguiu até 2021, quando muitos de seu círculo íntimo foram entrevistados para o documentário Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain (disponível na Apple TV) e para o livro Bourdain: The Definitive Oral Biography. As duas obras mostravam um lado mais complexo de Bourdain, que ficava cada vez mais em conflito com seu sucesso e nos últimos dois anos fez de seu relacionamento com a atriz italiana Asia Argento seu foco principal. Mas nenhum deles abordou diretamente o quão confusa sua vida se tornou nos meses que levaram à noite em que ele se enforcou aos 61 anos.

Em 11 de outubro, a Simon & Schuster publicará o que chama de primeira biografia não autorizada do escritor e documentarista de viagens. Down and Out in Paradise: The Life of Anthony Bourdain está repleto de detalhes frescos e íntimos, incluindo textos crus e angustiados dos dias anteriores à morte de Bourdain, como seus últimos contatos com Argento e Ottavia Busia-Bourdain, sua esposa por 11 anos que, quando se separaram em 2016, tornou-se sua confidente.

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“Eu também odeio meus fãs. Eu odeio ser famoso. Odeio meu trabalho”, escreveu Bourdain a Busia-Bourdain em uma de suas trocas de mensagens quase diárias. “Estou sozinho e vivendo em constante incerteza.”

Anthony Bourdain em "Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain"  Foto: Focus Features

A partir de mais de 80 entrevistas e arquivos, textos e e-mails do telefone e do laptop de Bourdain, o jornalista Charles Leerhsen traça a metamorfose de Bourdain de um adolescente mal-humorado em um subúrbio de Nova Jersey que sua família não podia sustentar a um aventureiro na cozinha viciado em heroína que atingiu o sucesso como escritor e tornou-se um intérprete excepcionalmente talentoso do mundo através de suas viagens.

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Leerhsen disse em uma entrevista que queria escrever um livro sem o brilho respeitoso do que chamou de “um produto oficial de Bourdain”. Na verdade, ele retrata um homem que no final de sua vida estava isolado, injetando esteroides, bebendo até cair e visitando prostitutas, e que desapareceu da vida de sua filha de 11 anos.

”Nós nunca tivemos essa grande história, aquela peça que dizia o que aconteceu, como o cara com o melhor emprego do mundo tirou a própria vida”, disse Leerhsen, ex-editor executivo da Sports Illustrated e da People que escreveu livros sobre Ty Cobb, Butch Cassidy e um cavalo de corrida chamado Dan Patch.

O livro já chamou a atenção da família de Bourdain, de ex-colegas de trabalho e amigos mais próximos. Seu irmão, Christopher Bourdain, enviou dois e-mails à Simon & Schuster em agosto chamando o livro de ficção ofensiva e difamatória e exigindo que não fosse lançado até que os muitos erros de Leerhsen fossem corrigidos.

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“Cada coisa que ele escreve sobre relacionamentos e interações dentro de nossa família quando crianças e adultos, ele inventou ou errou totalmente”, ele disse em entrevista. Felice Javit, vice-presidente e consultora sênior da editora, respondeu a Christopher Bourdain com um e-mail: “Com todo o respeito, discordamos que o material do livro contenha informações difamatórias e manteremos nossa publicação”.

Leerhsen disse que o círculo íntimo de Anthony Bourdain e até mesmo alguns de seus intermediários internacionais e antigos cozinheiros se recusaram a falar com ele para a biografia, em parte porque a agente de longa data de Bourdain, Kim Witherspoon, disse a eles para não falarem. Witherspoon não respondeu a um pedido de entrevista para este artigo. Laurie Woolever, assistente de Bourdain, não quis falar sobre o livro.

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Leerhsen disse que tal resistência do campo de Bourdain ajudou a abrir outras portas para ele. “Muitas pessoas estavam dispostas a falar comigo porque foram deixadas para trás por Tony e pelo trem de Tony”, ele disse, acrescentando que alguns foram movidos a falar por sua raiva pelo dano que Bourdain causou à filha.

Uma pessoa próxima a Bourdain que não se opôs ao livro é sua esposa, Busia-Bourdain, que controla seu patrimônio. O material mais revelador do livro vem de arquivos e mensagens retiradas do telefone e do laptop de Bourdain, ambos parte do espólio.

Leerhsen disse que obteve esse material de uma fonte confidencial, mas acrescentou que quem cuida do patrimônio “não se opôs e não prevejo nenhuma objeção”. Ele não disse se entrevistou Busia-Bourdain, mas ela é citada em partes do livro. Ela disse através de um amigo que não comentaria o assunto.

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O chef Eric Ripert, um amigo próximo que encontrou Bourdain morto em seu quarto de hotel na Alsácia após um dia de filmagem para um episódio de seu programa da CNN, Parts Unknown, disse que não forneceu informações para o livro, embora o tenha lido. Ele disse que encontrou muitas imprecisões, mas ficou surpreso por conter detalhes íntimos daqueles dias na França que ele havia contado apenas a algumas pessoas.

Em sua pesquisa, Leerhsen traçou o percurso de Bourdain com viagens a Montreal, Japão e França, onde ele e sua esposa conseguiram ficar no mesmo quarto onde Bourdain morreu, no hotel boutique Le Chambard, na pequena vila de Kaysersberg.

Casamento dos pais

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O livro começa com os primeiros anos de Bourdain, analisando o casamento de seus pais, seu desempenho na escola e seu relacionamento com sua primeira esposa, Nancy Putkoski, que Leerhsen disse ter sido uma fonte útil.

Bourdain se formou no ensino médio um ano antes para poder acompanhá-la no Vassar College. Suas notas lá eram péssimas, e ele era mais feliz durante os verões em que trabalhava em restaurantes em Provincetown, Massachusetts. Depois de dois anos, ele se matriculou no Culinary Institute of America, cerca de 8 Km ao norte de Vassar em Hyde Park, Nova York.

O livro traça a carreira de Bourdain nos restaurantes de Nova York e seus relacionamentos com os chefs intimidadores que o moldaram. Inclui a conhecida história de como sua mãe, Gladys Bourdain, então editora do The New York Times, entregou um artigo que ele havia escrito sobre os piores segredos de um restaurante de Manhattan para Esther B. Fein, esposa do editor da New Yorker, David Remnick, que o publicou na revista.

A história impulsionou a carreira de escritor de Anthony Bourdain, levando ao seu best-seller Cozinha Confidencial. Isso despertou o interesse da jovem empresa de mídia Zero Point Zero, que desenvolveu seu primeiro programa, A Cook’s Tour, e programas subsequentes.

O livro mergulha fundo na relação de Bourdain com Argento. Os dois estiveram envolvidos por cerca de dois anos em um relacionamento tumultuado e muito público que, escreve Leerhsen, Bourdain parecia disposto a fazer qualquer coisa para preservar.

”Eu me sinto perdidamente apaixonado por essa mulher”, ele escreveu à esposa.

Bourdain gastou centenas de milhares de dólares com Argento, fornecendo apoio financeiro para ela, seus dois filhos e às vezes seus amigos, de acordo com o livro. Ele insistiu com colegas de trabalho para que ela dirigisse e aparecesse no programa, e se tornou um defensor feroz do movimento #MeToo depois que ela disse ao repórter Ronan Farrow em 2017 que Harvey Weinstein a havia agredido sexualmente.

Leerhsen disse que trocou alguns e-mails com Argento, que, segundo ele, citou Oscar Wilde: “É sempre Judas quem escreve a biografia”.

Em um e-mail ao Times, Argento disse que não havia lido o livro, acrescentando: “Escrevi claramente para esse homem que ele não poderia publicar nada do que eu dissesse a ele”.

Leerhsen não é a primeira pessoa a tentar explicar o desconhecido: por que Bourdain se matou. Seu livro oferece uma teoria.

Dois dias antes de Bourdain morrer, ele se juntou a Ripert para uma refeição no JY’s, um restaurante com duas estrelas Michelin de propriedade de um velho amigo, o chef Jean-Yves Schillinger. Após a refeição, os três homens seguiram para Freiburg, uma cidade alemã a 48 quilômetros de distância, para continuar a noite tomando cervejas. Schillinger disse que Bourdain foi recebido como a estrela que era, e parecia seu antigo eu.

Leerhsen afirma que depois dessa viagem, Bourdain viu o custo de sua exigente busca emocional por Argento.

”Acho que no final, nos últimos dias e horas, ele percebeu o que se tornou”, disse Leerhsen. “Eu não respeito o fato dele ter se matado, mas ele percebeu e acabou entendendo que não queria ser a pessoa que se tornou.” / Tradução de Lívia Bueloni Gonçalves

THE NEW YORK TIMES - Depois que Anthony Bourdain tirou a própria vida em um quarto de hotel francês em 2018, seus amigos próximos, familiares e as pessoas que por décadas o ajudaram a se tornar uma estrela da TV internacional se fecharam diante da enxurrada de perguntas da mídia e permaneceram em silêncio, especialmente sobre seus últimos dias.

Esse silêncio seguiu até 2021, quando muitos de seu círculo íntimo foram entrevistados para o documentário Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain (disponível na Apple TV) e para o livro Bourdain: The Definitive Oral Biography. As duas obras mostravam um lado mais complexo de Bourdain, que ficava cada vez mais em conflito com seu sucesso e nos últimos dois anos fez de seu relacionamento com a atriz italiana Asia Argento seu foco principal. Mas nenhum deles abordou diretamente o quão confusa sua vida se tornou nos meses que levaram à noite em que ele se enforcou aos 61 anos.

Em 11 de outubro, a Simon & Schuster publicará o que chama de primeira biografia não autorizada do escritor e documentarista de viagens. Down and Out in Paradise: The Life of Anthony Bourdain está repleto de detalhes frescos e íntimos, incluindo textos crus e angustiados dos dias anteriores à morte de Bourdain, como seus últimos contatos com Argento e Ottavia Busia-Bourdain, sua esposa por 11 anos que, quando se separaram em 2016, tornou-se sua confidente.

“Eu também odeio meus fãs. Eu odeio ser famoso. Odeio meu trabalho”, escreveu Bourdain a Busia-Bourdain em uma de suas trocas de mensagens quase diárias. “Estou sozinho e vivendo em constante incerteza.”

Anthony Bourdain em "Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain"  Foto: Focus Features

A partir de mais de 80 entrevistas e arquivos, textos e e-mails do telefone e do laptop de Bourdain, o jornalista Charles Leerhsen traça a metamorfose de Bourdain de um adolescente mal-humorado em um subúrbio de Nova Jersey que sua família não podia sustentar a um aventureiro na cozinha viciado em heroína que atingiu o sucesso como escritor e tornou-se um intérprete excepcionalmente talentoso do mundo através de suas viagens.

Leerhsen disse em uma entrevista que queria escrever um livro sem o brilho respeitoso do que chamou de “um produto oficial de Bourdain”. Na verdade, ele retrata um homem que no final de sua vida estava isolado, injetando esteroides, bebendo até cair e visitando prostitutas, e que desapareceu da vida de sua filha de 11 anos.

”Nós nunca tivemos essa grande história, aquela peça que dizia o que aconteceu, como o cara com o melhor emprego do mundo tirou a própria vida”, disse Leerhsen, ex-editor executivo da Sports Illustrated e da People que escreveu livros sobre Ty Cobb, Butch Cassidy e um cavalo de corrida chamado Dan Patch.

O livro já chamou a atenção da família de Bourdain, de ex-colegas de trabalho e amigos mais próximos. Seu irmão, Christopher Bourdain, enviou dois e-mails à Simon & Schuster em agosto chamando o livro de ficção ofensiva e difamatória e exigindo que não fosse lançado até que os muitos erros de Leerhsen fossem corrigidos.

“Cada coisa que ele escreve sobre relacionamentos e interações dentro de nossa família quando crianças e adultos, ele inventou ou errou totalmente”, ele disse em entrevista. Felice Javit, vice-presidente e consultora sênior da editora, respondeu a Christopher Bourdain com um e-mail: “Com todo o respeito, discordamos que o material do livro contenha informações difamatórias e manteremos nossa publicação”.

Leerhsen disse que o círculo íntimo de Anthony Bourdain e até mesmo alguns de seus intermediários internacionais e antigos cozinheiros se recusaram a falar com ele para a biografia, em parte porque a agente de longa data de Bourdain, Kim Witherspoon, disse a eles para não falarem. Witherspoon não respondeu a um pedido de entrevista para este artigo. Laurie Woolever, assistente de Bourdain, não quis falar sobre o livro.

Leerhsen disse que tal resistência do campo de Bourdain ajudou a abrir outras portas para ele. “Muitas pessoas estavam dispostas a falar comigo porque foram deixadas para trás por Tony e pelo trem de Tony”, ele disse, acrescentando que alguns foram movidos a falar por sua raiva pelo dano que Bourdain causou à filha.

Uma pessoa próxima a Bourdain que não se opôs ao livro é sua esposa, Busia-Bourdain, que controla seu patrimônio. O material mais revelador do livro vem de arquivos e mensagens retiradas do telefone e do laptop de Bourdain, ambos parte do espólio.

Leerhsen disse que obteve esse material de uma fonte confidencial, mas acrescentou que quem cuida do patrimônio “não se opôs e não prevejo nenhuma objeção”. Ele não disse se entrevistou Busia-Bourdain, mas ela é citada em partes do livro. Ela disse através de um amigo que não comentaria o assunto.

O chef Eric Ripert, um amigo próximo que encontrou Bourdain morto em seu quarto de hotel na Alsácia após um dia de filmagem para um episódio de seu programa da CNN, Parts Unknown, disse que não forneceu informações para o livro, embora o tenha lido. Ele disse que encontrou muitas imprecisões, mas ficou surpreso por conter detalhes íntimos daqueles dias na França que ele havia contado apenas a algumas pessoas.

Em sua pesquisa, Leerhsen traçou o percurso de Bourdain com viagens a Montreal, Japão e França, onde ele e sua esposa conseguiram ficar no mesmo quarto onde Bourdain morreu, no hotel boutique Le Chambard, na pequena vila de Kaysersberg.

Casamento dos pais

O livro começa com os primeiros anos de Bourdain, analisando o casamento de seus pais, seu desempenho na escola e seu relacionamento com sua primeira esposa, Nancy Putkoski, que Leerhsen disse ter sido uma fonte útil.

Bourdain se formou no ensino médio um ano antes para poder acompanhá-la no Vassar College. Suas notas lá eram péssimas, e ele era mais feliz durante os verões em que trabalhava em restaurantes em Provincetown, Massachusetts. Depois de dois anos, ele se matriculou no Culinary Institute of America, cerca de 8 Km ao norte de Vassar em Hyde Park, Nova York.

O livro traça a carreira de Bourdain nos restaurantes de Nova York e seus relacionamentos com os chefs intimidadores que o moldaram. Inclui a conhecida história de como sua mãe, Gladys Bourdain, então editora do The New York Times, entregou um artigo que ele havia escrito sobre os piores segredos de um restaurante de Manhattan para Esther B. Fein, esposa do editor da New Yorker, David Remnick, que o publicou na revista.

A história impulsionou a carreira de escritor de Anthony Bourdain, levando ao seu best-seller Cozinha Confidencial. Isso despertou o interesse da jovem empresa de mídia Zero Point Zero, que desenvolveu seu primeiro programa, A Cook’s Tour, e programas subsequentes.

O livro mergulha fundo na relação de Bourdain com Argento. Os dois estiveram envolvidos por cerca de dois anos em um relacionamento tumultuado e muito público que, escreve Leerhsen, Bourdain parecia disposto a fazer qualquer coisa para preservar.

”Eu me sinto perdidamente apaixonado por essa mulher”, ele escreveu à esposa.

Bourdain gastou centenas de milhares de dólares com Argento, fornecendo apoio financeiro para ela, seus dois filhos e às vezes seus amigos, de acordo com o livro. Ele insistiu com colegas de trabalho para que ela dirigisse e aparecesse no programa, e se tornou um defensor feroz do movimento #MeToo depois que ela disse ao repórter Ronan Farrow em 2017 que Harvey Weinstein a havia agredido sexualmente.

Leerhsen disse que trocou alguns e-mails com Argento, que, segundo ele, citou Oscar Wilde: “É sempre Judas quem escreve a biografia”.

Em um e-mail ao Times, Argento disse que não havia lido o livro, acrescentando: “Escrevi claramente para esse homem que ele não poderia publicar nada do que eu dissesse a ele”.

Leerhsen não é a primeira pessoa a tentar explicar o desconhecido: por que Bourdain se matou. Seu livro oferece uma teoria.

Dois dias antes de Bourdain morrer, ele se juntou a Ripert para uma refeição no JY’s, um restaurante com duas estrelas Michelin de propriedade de um velho amigo, o chef Jean-Yves Schillinger. Após a refeição, os três homens seguiram para Freiburg, uma cidade alemã a 48 quilômetros de distância, para continuar a noite tomando cervejas. Schillinger disse que Bourdain foi recebido como a estrela que era, e parecia seu antigo eu.

Leerhsen afirma que depois dessa viagem, Bourdain viu o custo de sua exigente busca emocional por Argento.

”Acho que no final, nos últimos dias e horas, ele percebeu o que se tornou”, disse Leerhsen. “Eu não respeito o fato dele ter se matado, mas ele percebeu e acabou entendendo que não queria ser a pessoa que se tornou.” / Tradução de Lívia Bueloni Gonçalves

THE NEW YORK TIMES - Depois que Anthony Bourdain tirou a própria vida em um quarto de hotel francês em 2018, seus amigos próximos, familiares e as pessoas que por décadas o ajudaram a se tornar uma estrela da TV internacional se fecharam diante da enxurrada de perguntas da mídia e permaneceram em silêncio, especialmente sobre seus últimos dias.

Esse silêncio seguiu até 2021, quando muitos de seu círculo íntimo foram entrevistados para o documentário Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain (disponível na Apple TV) e para o livro Bourdain: The Definitive Oral Biography. As duas obras mostravam um lado mais complexo de Bourdain, que ficava cada vez mais em conflito com seu sucesso e nos últimos dois anos fez de seu relacionamento com a atriz italiana Asia Argento seu foco principal. Mas nenhum deles abordou diretamente o quão confusa sua vida se tornou nos meses que levaram à noite em que ele se enforcou aos 61 anos.

Em 11 de outubro, a Simon & Schuster publicará o que chama de primeira biografia não autorizada do escritor e documentarista de viagens. Down and Out in Paradise: The Life of Anthony Bourdain está repleto de detalhes frescos e íntimos, incluindo textos crus e angustiados dos dias anteriores à morte de Bourdain, como seus últimos contatos com Argento e Ottavia Busia-Bourdain, sua esposa por 11 anos que, quando se separaram em 2016, tornou-se sua confidente.

“Eu também odeio meus fãs. Eu odeio ser famoso. Odeio meu trabalho”, escreveu Bourdain a Busia-Bourdain em uma de suas trocas de mensagens quase diárias. “Estou sozinho e vivendo em constante incerteza.”

Anthony Bourdain em "Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain"  Foto: Focus Features

A partir de mais de 80 entrevistas e arquivos, textos e e-mails do telefone e do laptop de Bourdain, o jornalista Charles Leerhsen traça a metamorfose de Bourdain de um adolescente mal-humorado em um subúrbio de Nova Jersey que sua família não podia sustentar a um aventureiro na cozinha viciado em heroína que atingiu o sucesso como escritor e tornou-se um intérprete excepcionalmente talentoso do mundo através de suas viagens.

Leerhsen disse em uma entrevista que queria escrever um livro sem o brilho respeitoso do que chamou de “um produto oficial de Bourdain”. Na verdade, ele retrata um homem que no final de sua vida estava isolado, injetando esteroides, bebendo até cair e visitando prostitutas, e que desapareceu da vida de sua filha de 11 anos.

”Nós nunca tivemos essa grande história, aquela peça que dizia o que aconteceu, como o cara com o melhor emprego do mundo tirou a própria vida”, disse Leerhsen, ex-editor executivo da Sports Illustrated e da People que escreveu livros sobre Ty Cobb, Butch Cassidy e um cavalo de corrida chamado Dan Patch.

O livro já chamou a atenção da família de Bourdain, de ex-colegas de trabalho e amigos mais próximos. Seu irmão, Christopher Bourdain, enviou dois e-mails à Simon & Schuster em agosto chamando o livro de ficção ofensiva e difamatória e exigindo que não fosse lançado até que os muitos erros de Leerhsen fossem corrigidos.

“Cada coisa que ele escreve sobre relacionamentos e interações dentro de nossa família quando crianças e adultos, ele inventou ou errou totalmente”, ele disse em entrevista. Felice Javit, vice-presidente e consultora sênior da editora, respondeu a Christopher Bourdain com um e-mail: “Com todo o respeito, discordamos que o material do livro contenha informações difamatórias e manteremos nossa publicação”.

Leerhsen disse que o círculo íntimo de Anthony Bourdain e até mesmo alguns de seus intermediários internacionais e antigos cozinheiros se recusaram a falar com ele para a biografia, em parte porque a agente de longa data de Bourdain, Kim Witherspoon, disse a eles para não falarem. Witherspoon não respondeu a um pedido de entrevista para este artigo. Laurie Woolever, assistente de Bourdain, não quis falar sobre o livro.

Leerhsen disse que tal resistência do campo de Bourdain ajudou a abrir outras portas para ele. “Muitas pessoas estavam dispostas a falar comigo porque foram deixadas para trás por Tony e pelo trem de Tony”, ele disse, acrescentando que alguns foram movidos a falar por sua raiva pelo dano que Bourdain causou à filha.

Uma pessoa próxima a Bourdain que não se opôs ao livro é sua esposa, Busia-Bourdain, que controla seu patrimônio. O material mais revelador do livro vem de arquivos e mensagens retiradas do telefone e do laptop de Bourdain, ambos parte do espólio.

Leerhsen disse que obteve esse material de uma fonte confidencial, mas acrescentou que quem cuida do patrimônio “não se opôs e não prevejo nenhuma objeção”. Ele não disse se entrevistou Busia-Bourdain, mas ela é citada em partes do livro. Ela disse através de um amigo que não comentaria o assunto.

O chef Eric Ripert, um amigo próximo que encontrou Bourdain morto em seu quarto de hotel na Alsácia após um dia de filmagem para um episódio de seu programa da CNN, Parts Unknown, disse que não forneceu informações para o livro, embora o tenha lido. Ele disse que encontrou muitas imprecisões, mas ficou surpreso por conter detalhes íntimos daqueles dias na França que ele havia contado apenas a algumas pessoas.

Em sua pesquisa, Leerhsen traçou o percurso de Bourdain com viagens a Montreal, Japão e França, onde ele e sua esposa conseguiram ficar no mesmo quarto onde Bourdain morreu, no hotel boutique Le Chambard, na pequena vila de Kaysersberg.

Casamento dos pais

O livro começa com os primeiros anos de Bourdain, analisando o casamento de seus pais, seu desempenho na escola e seu relacionamento com sua primeira esposa, Nancy Putkoski, que Leerhsen disse ter sido uma fonte útil.

Bourdain se formou no ensino médio um ano antes para poder acompanhá-la no Vassar College. Suas notas lá eram péssimas, e ele era mais feliz durante os verões em que trabalhava em restaurantes em Provincetown, Massachusetts. Depois de dois anos, ele se matriculou no Culinary Institute of America, cerca de 8 Km ao norte de Vassar em Hyde Park, Nova York.

O livro traça a carreira de Bourdain nos restaurantes de Nova York e seus relacionamentos com os chefs intimidadores que o moldaram. Inclui a conhecida história de como sua mãe, Gladys Bourdain, então editora do The New York Times, entregou um artigo que ele havia escrito sobre os piores segredos de um restaurante de Manhattan para Esther B. Fein, esposa do editor da New Yorker, David Remnick, que o publicou na revista.

A história impulsionou a carreira de escritor de Anthony Bourdain, levando ao seu best-seller Cozinha Confidencial. Isso despertou o interesse da jovem empresa de mídia Zero Point Zero, que desenvolveu seu primeiro programa, A Cook’s Tour, e programas subsequentes.

O livro mergulha fundo na relação de Bourdain com Argento. Os dois estiveram envolvidos por cerca de dois anos em um relacionamento tumultuado e muito público que, escreve Leerhsen, Bourdain parecia disposto a fazer qualquer coisa para preservar.

”Eu me sinto perdidamente apaixonado por essa mulher”, ele escreveu à esposa.

Bourdain gastou centenas de milhares de dólares com Argento, fornecendo apoio financeiro para ela, seus dois filhos e às vezes seus amigos, de acordo com o livro. Ele insistiu com colegas de trabalho para que ela dirigisse e aparecesse no programa, e se tornou um defensor feroz do movimento #MeToo depois que ela disse ao repórter Ronan Farrow em 2017 que Harvey Weinstein a havia agredido sexualmente.

Leerhsen disse que trocou alguns e-mails com Argento, que, segundo ele, citou Oscar Wilde: “É sempre Judas quem escreve a biografia”.

Em um e-mail ao Times, Argento disse que não havia lido o livro, acrescentando: “Escrevi claramente para esse homem que ele não poderia publicar nada do que eu dissesse a ele”.

Leerhsen não é a primeira pessoa a tentar explicar o desconhecido: por que Bourdain se matou. Seu livro oferece uma teoria.

Dois dias antes de Bourdain morrer, ele se juntou a Ripert para uma refeição no JY’s, um restaurante com duas estrelas Michelin de propriedade de um velho amigo, o chef Jean-Yves Schillinger. Após a refeição, os três homens seguiram para Freiburg, uma cidade alemã a 48 quilômetros de distância, para continuar a noite tomando cervejas. Schillinger disse que Bourdain foi recebido como a estrela que era, e parecia seu antigo eu.

Leerhsen afirma que depois dessa viagem, Bourdain viu o custo de sua exigente busca emocional por Argento.

”Acho que no final, nos últimos dias e horas, ele percebeu o que se tornou”, disse Leerhsen. “Eu não respeito o fato dele ter se matado, mas ele percebeu e acabou entendendo que não queria ser a pessoa que se tornou.” / Tradução de Lívia Bueloni Gonçalves

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