O novo livro do Padre Fábio de Melo chega às livrarias em 30 de outubro. A vida é cruel, Ana Maria, o primeiro do sacerdote publicado pela Editora Record, é fruto de reflexões sobre conversas que ele gostaria de ter tido com a mãe, que morreu em 2021, vítima de covid-19. O Estadão teve acesso à obra e divulga trecho inédito - confira abaixo.
O projeto já estava sendo preparado há anos, mas ganhou alma quando Ana Maria morreu. Em um misto de livro de memórias com questões filosóficas e teológicas, Fábio de Melo lembra momentos de sua infância no interior de Minas Gerais.
Em mais de um capítulo, o cantor revela detalhes de sua luta contra a depressão e desejos de morte, e como sua conexão com a fé e com a arte o ajudaram a superar o transtorno.
O padre também faz considerações sobre religião. Em trecho destacado pelo Estadão, ele afirma:
Padre Fábio de Melo, no livro 'A vida é cruel, Ana Maria'
Leia trecho inédito de ‘A vida é cruel, Ana Maria’, de Fábio de Melo:
“Você nunca soube dos transtornos depressivos que eu enfrentei. Muito poucos souberam. O desejo de morrer me assombrava constantemente. E ele me envergonhava. Sobreviver era bem mais do que resistir. Era preciso superar a compreensão promíscua que tinha de mim. Eu me enxergava muito pior do que realmente era. Eu só enxergava o copo vazio. O limite tinha as rédeas de minha alma. Quando a tristeza me apartou da força pungente do cordão umbilical que nos unia, foi por eles, os poetas, escritores, compositores e cantores, que eu procurei. Foi enxaguando a minha alma no rio das palavras que eu redescobri o meu lugar no mundo.
A arte sempre me concedeu viver as abluções que redimem, regeneram, reorientam os caminhos, secam, ainda que temporariamente, os pulmões das aflições. A arte nos cura, Ana Maria. Mas não nos livra da crueldade da vida. É assim desde que o mundo é mundo. Desde que Adão abriu os olhos e viu o céu pela primeira vez. É certo que se emocionou, como eu me emocionei ao contemplar o céu de Adélia Prado. O azul recém-criado, as estrelas fulgurando em sua primeira mão de brilho. Adão diante do universo fresco, as tintas ainda secando, o ventre de Deus em contrações, partejando a beleza das coisas.
São mais felizes os que enxergam o mundo como se fosse a primeira vez. Os que aprenderam a sublimar a rotina. Para os que trazem nos olhos os filtros da sublimação, o caminho de sempre recebe uma aura redentora. Sendo assim, o caminho de sempre nunca é o mesmo, torna-se novo, como se borrifássemos sobre ele uma cor que a Deus pertence. Mas tal proeza requer educar o espírito. Embora seja uma capacidade essencialmente humana, nem todos a desenvolvem.
Atributos humanos requerem cultivo, porque tudo o que nos diz respeito precisa ser educado, submetido ao processo doloroso do vir a ser. Embora seja capaz de sublimar, ir além, espiritualizar o mundo em que vive, a alma humana precisa ser submetida à disciplina do hábito. Se não o temos, a pedra será somente pedra, a rua será sempre a mesma, o sublime, o espetacular, não serão notados.
A capacidade humana de perceber e fruir da aura sobrenatural de todas as coisas não resulta de um processo normativo. Não, ela resulta é de um processo eletivo, quando alguém escolhe nos oferecer a instrução que educa a capacidade. Há tanta sensibilidade atrofiada. Há tantos espíritos raquíticos, privados de se imiscuírem no que há de mais nobre e elevado da condição humana. Não foram apresentados à disciplina que hipertrofia a disposição humana de perceber a beleza extraordinária da rotina que nos cerca.
Quando não desenvolvemos a nossa aptidão à transcendência, Ana Maria, até a nossa prática religiosa é materialista. Os livros que consideramos sagrados são repletos de narrativas metafóricas, poéticas. Sugerem um significado que ultrapassa a palavra escrita, registro material da ideia imaterial, nunca podendo ser lidos e interpretados ao pé da letra. Os radicalismos religiosos derivam de nossa falta de transcendência. Nossas interpretações do Sagrado costumam ser rasas, equivocadas, pois são condicionadas pelo que de nós ainda não foi harmonizado.
A imagem que temos de nós tem estreita comunhão com a imagem que temos de Deus. Quando desprovidas de transcendência, as nossas teologias não alcançam o Mistério. Elas se limitam a ser uma elaboração mesquinha de um Deus que padece dos mesmos pecados que nós. Um Deus ciumento, prosélito, cruel, injusto, capaz de ferir, matar, promover guerras, incitar o que há de pior na condição humana. Nossos piores crimes, nossos deslizes mais hediondos, nós os cometemos sob a proteção de vestes e intenções religiosas.
Toda palavra sobre Deus tem resquícios da personalidade de quem a disse. O que elaboramos sobre Ele é um desdobramento do que soubemos elaborar sobre nós. As teologias são contextualizadas. Sobre elas deixamos a poeira de nossa humanidade. Se sou cruel, é natural que a imagem que tenho de Deus passe pela crueldade. É uma forma que tenho de justificar a minha conduta, evitando o enfrentamento que me questiona, exige mudanças, levando-me a transmudar a minha crueldade em bondade. Quando orbitamos fora do contexto da revelação divina – processo pelo qual a verdadeira face de Deus se manifesta ao mundo –, cada um de nós passa a se mover dentro das propostas do Deus que inventou.”
‘A vida é cruel, Ana Maria’
- Autor: Fábio de Melo
- Editora: Record (140 págs.; R$ 49,90)
- Lançamento: 30/10
*Estagiária sob supervisão de Charlise Morais