Até o dia da entrega do livro para a impressão, no começo de fevereiro deste ano, o papa Francisco acrescentou informações à autobiografia Vida: A minha história através da História, que chega ao Brasil pela HarperCollins em abril. Uma escrita tão fresca permitiu que a obra incluísse, na seleção de acontecimentos históricos que acompanharam a vida de Jorge Mario Bergoglio, fatos recentes como o conflito entre Israel e Hamas, uma conversa com o recém-eleito presidente da Argentina, Javier Milei, e a questão da bênção a casais homossexuais, autorizada pelo Vaticano no fim de 2023.
Nas entrevistas que deu ao jornalista italiano Fabio Marchese Ragona, coautor do projeto, o papa Francisco faz revelações pessoais (teve uma namorada e se apaixonou ainda outra vez quando era seminarista) e nega ser comunista e a possibilidade de renunciar ao papado.
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“Eu acho que muitas palavras, muitos gestos do papa não podem ser entendidos se nós não conhecermos, antes, quem foi o padre Bergoglio”, diz ao Estadão Ragona, que intercala com o papa Francisco a narração do livro.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com o jornalista.
O senhor já entrevistou o papa Francisco em outros momentos. Foi diferente agora, para a biografia?
Sim. Quando é preciso realizar uma entrevista televisiva – eu trabalho na televisão –, tudo se resume numa entrevista. Você encontra o papa, apresenta aquelas questões e a entrevista acabou. Mas, nesse caso em específico, o trabalho durou um ano. Então trabalhamos nos encontrando pessoalmente várias vezes. Ficamos juntos por muito tempo, até três horas no apartamento dele.
Depois tivemos um trabalho de revisão dos capítulos, de acréscimo. Ele me ligou várias vezes. Inclusive, ao longo de todo o verão [na Itália], toda semana eu recebia uma ligação dele para corrigir algum capítulo, para acrescentar algo, para mudar até mesmo as vírgulas. E inclusive e-mails, troca de e-mails. Essa foi a diferença principal. Trabalhamos por muito tempo, mais ou menos por um ano.
Quando isso aconteceu?
Em abril do ano passado, começamos a pensar no projeto que eu apresentei para ele, e foi até os primeiros dias de fevereiro deste ano. Esse ponto é muito interessante para mim. No dia que eu tinha que fazer as últimas alterações, porque depois tinha que enviar o livro para a impressão, eu falei para ele: ‘Santo padre, temos a entrega, tem alguma última coisa que precisamos corrigir? Porque o livro precisa sair’. Então ele me ligou naquele dia da entrega do livro dizendo que tinha sim outra coisa ainda para acrescentar. Aí, fizemos a última alteração, correndo, nos primeiros dias de fevereiro.
A biografia aborda fatos muito recentes mesmo, como a guerra no Oriente Médio e o novo presidente argentino. Esses acontecimentos entraram de última hora no livro?
Na realidade, já tínhamos realizado um grande trabalho durante o verão e o começo do outono. E, quando havia alguma novidade, ele me pedia para que eu acrescentasse, arrumasse algo. Por exemplo, a questão das bênçãos aos ‘casais irregulares’, casais homossexuais, é um dos temas mais recentes. E, quando essa declaração saiu, eu perguntei para ele: ‘O senhor quer acrescentar isso também?’. Ele respondeu que sim. Aí, aos poucos, fomos inserindo e realizando um trabalho que ficou superatual.
São oito décadas de história. Como decidir quais acontecimentos incluir ou deixar de fora?
Na verdade, eu propus um sumário, controlando os tópicos, para que ele pudesse também lançar mensagens fortes. Começamos desde que ele era criança, desde a eclosão da Segunda Guerra Mundial, os acontecimentos que marcaram a história mundial.
O problema do golpe de Estado de [Jorge Rafael] Videla, na Argentina, foi algo que dizia respeito à Argentina, mas era um acontecimento que teve um impacto na vida dele, e por isso foi inserido. Ou a vitória da Copa do Mundo [em 1986] pela Argentina – o papa é apaixonado por futebol. Então teve um raciocínio dessa forma: algo dos últimos 80 anos que tocava as pessoas de perto, mas também assuntos mais delicados.
Qual foi a revelação do papa Francisco que mais o surpreendeu?
Em nível jornalístico, algo que me impressionou foi o relato do conclave [de 2013], porque eu nunca imaginaria que ele pudesse contar em detalhes o que aconteceu naqueles dias quando gostaríamos de ser como uma mosca que entra na Capela Sistina para ouvir e ver o que aconteceu. E ele realmente contou em detalhes o que se passou no coração dele. Me impressionou quando ele contou que chegou e viu toda aquela multidão que estava pensando nele.
E também quando ele contou sobre o período do golpe de Estado na Argentina. Porque eu, nesse caso, falei com estudiosos daquele período e eles me disseram que o papa nunca tinha falado de forma tão aprofundada sobre aqueles fatos. E isso foi uma grande surpresa, porque ele falou de forma muito aberta, serena e com grandes detalhes sobre episódios que eu desconhecia.
Algum momento relembrado da história do papa foi especialmente emocionante para ele?
Sim, eu vi que o papa se emocionou quando falou da pandemia da covid-19, porque foi um momento horrível. Eu acho que ele vivenciou esse período com grande dor. Ele gostaria de ter feito mil coisas, como ter estado perto dos doentes nos hospitais, e se sentia enjaulado no Vaticano, preso lá dentro.
E também eu vi ele emocionado quando falou das crianças que estão vindo dos países em guerra e que chegam até o Vaticano. Ele diz: ‘Eu vejo que essas crianças não estão mais sorrindo. Pelos olhos delas eu enxergo que são crianças que não sabem mais o que significa sorrir’. Eu o vi emocionado nessas ocasiões.
Houve algum assunto mais difícil de ser abordado, por algum motivo?
Eu observei que ele respondeu a todas as minhas dúvidas e questões com grande serenidade. Em momento nenhum eu observei dificuldade. Ele sempre me deixou muito à vontade durante nossos encontros com pequenos cuidados - perguntando se eu estava com fome, coisas assim. Então eu me senti à vontade e nunca vi dificuldade nele em falar de algo. E também acho que ele nunca se sentiu, por exemplo, envergonhado por alguma coisa que eu perguntei.
Além das entrevistas, que tipo de pesquisa o senhor fez para escrever os trechos com contextualização dos acontecimentos históricos?
Muitas vezes o papa me dizia: ‘Olha, eu lembro ter escutado aquele discurso de Pio XII no rádio que falava da guerra’. E às vezes ele dizia: ‘Vai lá, procura aquele discurso’. Porque, claro, ele não podia lembrar perfeitamente. Então eu fiz esse tipo de pesquisa.
Também quando ele falou da Europa, disse: ‘Eu estive no Parlamento em Estrasburgo, e eu proferi esse discurso, falei essa frase, mas não lembro exatamente. Como é um discurso muito delicado, muito bonito, eu gostaria que você achasse esse discurso. Por favor, tenta resgatar esse trecho para que depois possa ser inserido no livro e as pessoas lerem o que eu falei exatamente’.
Também falei com pessoas que estiveram em contato com ele, porque o papa me pedia para que eu falasse com pessoa tal: “Porque essa pessoa pode confirmar melhor certos detalhes que agora podem estar escapando, que eu posso não lembrar bem”.
Há algum aspecto mal compreendido da vida do papa que o senhor espera que a biografia esclareça?
Essa é uma pergunta muito importante para mim. Muitas palavras, muitos gestos do papa não podem ser entendidos se nós não conhecermos quem foi antes o padre Bergoglio. Eu também me pergunto: por que esse papa está falando tanto de imigrantes? Por que ele fala tanto assim de pobres? E, depois, ouvindo e lendo a história dele, entendi que os seus avós eram imigrantes. E que a sua família quase morreu para fazer a travessia [da Itália para a Argentina] num navio que depois afundou perto da costa do Brasil.
Então por que o papa também insiste falando da paz? A mãe dele ensinou, transmitiu essa lição importante. Quando terminou a Segunda Guerra, a mãe desabou a chorar. Eles eram pessoas distantes da guerra, estavam na Argentina, mas mesmo assim eles choravam. E isso foi uma lição muito importante para ele, o papa falou. Assim, é importante conhecer quem o papa era antes para entender muitos gestos e palavras de hoje.
A respeito das acusações de o papa ser comunista, o senhor acredita que esse assunto fica esclarecido?
Eu fiz uma pergunta bem específica para ele nesse sentido. E ele esclareceu que sim, ele foi acusado de ser comunista, marxista. Ele disse ter lido várias publicações do Partido Comunista [argentino], mas simplesmente porque queria conhecer essa ideologia, porque a professora dele no laboratório de química era comunista. Ele cresceu a ouvindo falar. Ele queria entender a ideologia que essa mulher abraçava. Ele nunca abraçou essa ideologia.
E ele também foi acusado de ser ultraconservador dentro da Igreja, que é o polo oposto àquilo que o comunismo pode ser. Então esse papa, digamos assim, não tem uma etiqueta. Ele tem uma liberdade tal que pode se permitir dizer ‘Eu sigo o Evangelho’.
Um livro de memórias do papa pode afetar de alguma maneira a imagem do papado?
Eu não saberia dizer, porque o objetivo desse livro não é limpar a imagem do papa como chegaram a dizer. Não há nada a fazer nesse sentido. O que o livro quer fazer é lançar mensagens fortes, fazer com que a vida do papa seja conhecida e que alguns gestos dele de hoje sejam compreendidos. E lançar uma mensagem aos jovens, porque isso é algo importante para o papa - para que os erros do passado não sejam mais cometidos. E, para que não sejam repetidos, é preciso conhecer a História. Ele, como pessoa idosa, viveu na própria pele tudo isso.
Por isso, o jovem que vai ler esse livro poderá dizer: ‘Se o papa viveu vivenciou isso, talvez seja importante mudar as coisas’. Não é questão de mudar a imagem do papa ou do papado, porque não é necessário um livro para fazer isso, mas é importante para que se compreenda melhor quem Bergoglio é.
Vida: A Minha História Através da História
- Autores: Papa Francisco e Fabio Marchese Ragona
- Editora: HarperCollins (304 págs.; R$ 49,90)