Para Amós Oz, humor, imaginação e literatura são bons antídotos contra o fanatismo


'Como Curar um Fanático' reúne palestras do escritor israelense sobre o conflito entre seu país e a Palestina

Por Maria Fernanda Rodrigues

Amós Oz foi um pequeno fanático. “Santimonial, chauvinista, surdo e cego a qualquer narrativa que diferisse da história judaica, sionista da época”, explica. O “menino que atirava pedras”, e a expressão é usada em seu sentido literal, logo descobre uma outra habilidade, a imaginação, e começa a desenhar uma nova história. Hoje, aos 76 anos, ele é um dos principais escritores israelenses de sua geração – e ser um escritor num país que nunca viveu em paz tem as suas implicações. Portanto, Amós Oz é uma das principais vozes no debate sobre o conflito entre seu país e a Palestina. 

A lembrança da passagem de sua infância em Jerusalém é uma das histórias contadas em Como Curar Um Fanático, obra de 2004 que chega ao Brasil com algumas mudanças. Aos dois textos da primeira edição, apresentados em 2002 como palestras na Alemanha, foi acrescentado o trabalho lido numa conferência em Paris no dia seguinte aos ataques terroristas de novembro de 2015. Há ainda um breve texto publicado no Guardian e uma entrevista feita pelos editores estrangeiros.

O escritor israelense defende a criação de dois Estados Foto: Rina Castelnuovo|The New York Times
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São textos sobre fanatismo e o Oriente Médio. “Acho que hoje essas palestras são mais relevantes do que foram 10 anos atrás. Não concordo sempre comigo, mas nesse caso ainda concordo”, conta o escritor, em entrevista por telefone, de Tel-Aviv.

Na infância, depois do seu radicalismo, o senhor costumava imaginar como seria sua vida se fosse palestino. Como foi estar nesse lugar? O que sentiu? Eu me senti como um palestino: que sou uma vítima de injustiça e que sofro muito. Mas espero que eles também saibam como se sente um judeu israelense como eu. Precisamos de imaginação dos dois lados, em todas as situações da vida. A curiosidade nos torna pessoas melhores.

O que o transformou em uma criança e em um adulto diferente, em um ativista? A fantasia. Sempre imaginei ser outra pessoa, ser uma mulher, um velho, viver num outro século ou milênio. 

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No livro, o senhor fala em antídotos ao fanatismo, como humor e capacidade imaginativa. A literatura pode ajudar? Acredito na necessidade de imaginar o outro. Ler boa literatura nos coloca na pele de outras pessoas. Não para que concordemos 100% com elas, mas para que possamos ver a situação de um novo ângulo.

É melhor não ler nada do que ler má literatura? Sim. A má literatura só reforça os estereótipos: os caras maus são terríveis, os bons são maravilhosos, os heróis são gigantes, os covardes são grandes covardes. Isso também se aplica a filmes e televisão. É tudo falta de imaginação. A boa literatura é outra coisa. O protagonista de Crime e Castigo, de Dostoievski, é um assassino terrível, um homem horrível. No fim da leitura, nós o entendemos e até conseguimos sentir compaixão. E descobrimos algo dele dentro de nós. Isso tudo não nos fará matar velhinhas, mas nos mostrará mais sobre a natureza humana e talvez um pouco mais sobre nós mesmos. A grande literatura faz isso.

E qual o papel do humor? Nunca vi um fanático com senso de humor ou então alguém com senso de humor se tornar um fanático. Humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, e, quando podemos fazer isso, desenvolvemos uma noção de relativismo. Este é um antídoto maravilhoso contra o fanatismo e, se eu pudesse, colocaria senso de humor e curiosidade numa cápsula, distribuiria em todos os lugares para criar imunidade ao fanatismo, e me candidataria ao Nobel da Paz.

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Mas não proporcionamos ou ensinamos isso ao outro. Não. E eu não posso salvar o mundo, não sou Jesus. E mesmo Jesus não fez um grande trabalho em salvar o mundo – ele ainda é um lugar cruel e doloroso. O que posso fazer é dar o diagnóstico: o fanático é um ponto de exclamação ambulante; não escuta, só fala; é um ser humano desesperado e mais interessado em você do que nele, porque ele não tem vida própria. É um grande altruísta: quer salvá-lo, mas, se não conseguir, ele vai matá-lo e vai matar seu vizinho. Fanatismo é o nosso problema mais urgente. A síndrome deste início de século não é o choque entre muçulmanos e cristãos, Ocidente e Oriente, Europa e mundo árabe, mas, sim, entre fanáticos e nós. E eles estão em todos os lugares e todas as culturas. Até entre ambientalistas e feministas, embora não sejam tão nocivos. Acredito que exista um gene de fanatismo em cada um de nós. Veja isso no dia a dia, quando uma pessoa quer mudar a outra ‘para o bem dela’. 

Em dezembro, o Estado Islâmico mandou um recado ameaçador a Israel. Está preocupado? Há alguém seguro hoje? Estou e todos nós deveríamos estar preocupados com todos os grupos radicais. Em qualquer lugar, Israel, Paris ou São Paulo, é tão fácil matar gente inocente. Basta uma arma, uma bomba, uma faca. É por isso, e porque é tão difícil combatê-los, que me preocupo. Não dá para acabar com isso usando um submarino nuclear ou avião sofisticado. É preciso convencer o fanático de que existem ideias melhores.

Mas acredita que eles estejam abertos, que possam mudar? Esta é uma questão complicada. Se eu disser que quero mudá-los, será a prova de que tenho o gene do fanatismo. Eu estaria tentando mudar alguém para seu próprio bem. Não sou violento e não vou matar ninguém, mas, ainda assim, tenho a urgência de transformá-los para o próprio bem deles. O fanatismo se agrava e se torna violento em tempos de grande desespero, em locais de grandes desilusões.

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O senhor escreve que o conflito entre Israel e Palestina é uma tragédia em seu mais antigo sentido. Por quê? O conflito não é um faroeste com mocinhos e bandidos. Muita gente no mundo quer saber quem são eles, quer fazer uma passeata contra os bandidos e lançar abaixo-assinados em favor dos mocinhos. E vão dormir sentindo-se muito bem. Estamos diante do choque entre o certo e o certo, e, às vezes, entre o errado e o errado. Não há mocinhos ou bandidos. A Palestina reivindica esse país porque ela não tem nenhum outro. Os judeus israelenses reivindicam esse país porque não têm nenhum outro. Não é simples.

O senhor acredita na solução de dois Estados e usa a teoria do divórcio. Poderia explicá-la? Talvez no lugar de divórcio devêssemos usar a palavra compromisso. E não existe nenhum compromisso que seja feliz. Mas o oposto disso é fanatismo e morte. Precisamos encontrar o outro no meio da ponte.

E cita que, pela primeira vez em 100 anos, a população dos dois lados concorda que é hora de um acordo, mesmo com perdas. Isso faz alguma diferença para a política internacional? Deveria. Hoje, ao contrário de 50 anos atrás, a maioria dos judeus israelenses sabe que os palestinos não vão embora. E a maioria dos palestinos sabe, em seus corações, que os judeus israelenses nunca vão embora porque eles não têm para onde ir. O conhecimento existe no coração das pessoas. Estão todos felizes? Não. Vão à rua festejar quando um acordo de dois Estados for finalmente assinado? Não. Isso vai doer. De forma alguma o acordo resultará no nascimento de um amor mútuo. Não haverá abraços ou pedidos de perdão. No melhor cenário, haverá um compromisso doloroso e depois, lentamente, as emoções e as feridas serão amainadas e algum tipo de reconciliação pode surgir. Vai demorar, mas pode acontecer. Existe uma solução.

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Veremos isso? O que posso dizer é que a solução depende de líderes corajosos dos dois lados e ao mesmo tempo. Todos sabem o que deve ser feito. 

O senhor lutou duas vezes e disse que voltaria a lutar, se necessário. Que guerra vale a pena ser lutada? Duas razões me fariam segurar uma arma e até matar alguém: se tentassem me matar ou matar as pessoas que amo ou se tentassem me escravizar. Se me pedirem para lutar por lugares sagrados ou por um cômodo a mais para o meu país, prefiro ser preso. Portanto, vida e liberdade. Nada mais.

Tivemos um impasse diplomático recente envolvendo a indicação de um embaixador contrário à criação do Estado da Palestina. Acompanhei as notícias. Seu voto nas eleições israelenses não é a resposta que deve ser considerada na decisão. É preciso descobrir se esse homem é a favor da supressão dos palestinos, se representa uma política pragmática. Não sei a resposta, mas eu não desqualificaria um embaixador só porque não concordo com seu voto.

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Trecho “O crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples. Fanatismo e fundamentalismo muitas vezes têm uma resposta com uma só sentença para todo o sofrimento humano. O fanático acredita que se alguma coisa for ruim, ela deve ser extinta, às vezes, junto com seus vizinhos. O fanatismo é muito antigo. É mais antigo que o Islã, o cristianismo e o judaísmo. Mais velho que todas as ideologias.”

COMO CURAR UM FANÁTICO Autor: Amós Oz Tradução: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (104 págs., R$ 23,90)

Amós Oz foi um pequeno fanático. “Santimonial, chauvinista, surdo e cego a qualquer narrativa que diferisse da história judaica, sionista da época”, explica. O “menino que atirava pedras”, e a expressão é usada em seu sentido literal, logo descobre uma outra habilidade, a imaginação, e começa a desenhar uma nova história. Hoje, aos 76 anos, ele é um dos principais escritores israelenses de sua geração – e ser um escritor num país que nunca viveu em paz tem as suas implicações. Portanto, Amós Oz é uma das principais vozes no debate sobre o conflito entre seu país e a Palestina. 

A lembrança da passagem de sua infância em Jerusalém é uma das histórias contadas em Como Curar Um Fanático, obra de 2004 que chega ao Brasil com algumas mudanças. Aos dois textos da primeira edição, apresentados em 2002 como palestras na Alemanha, foi acrescentado o trabalho lido numa conferência em Paris no dia seguinte aos ataques terroristas de novembro de 2015. Há ainda um breve texto publicado no Guardian e uma entrevista feita pelos editores estrangeiros.

O escritor israelense defende a criação de dois Estados Foto: Rina Castelnuovo|The New York Times

São textos sobre fanatismo e o Oriente Médio. “Acho que hoje essas palestras são mais relevantes do que foram 10 anos atrás. Não concordo sempre comigo, mas nesse caso ainda concordo”, conta o escritor, em entrevista por telefone, de Tel-Aviv.

Na infância, depois do seu radicalismo, o senhor costumava imaginar como seria sua vida se fosse palestino. Como foi estar nesse lugar? O que sentiu? Eu me senti como um palestino: que sou uma vítima de injustiça e que sofro muito. Mas espero que eles também saibam como se sente um judeu israelense como eu. Precisamos de imaginação dos dois lados, em todas as situações da vida. A curiosidade nos torna pessoas melhores.

O que o transformou em uma criança e em um adulto diferente, em um ativista? A fantasia. Sempre imaginei ser outra pessoa, ser uma mulher, um velho, viver num outro século ou milênio. 

No livro, o senhor fala em antídotos ao fanatismo, como humor e capacidade imaginativa. A literatura pode ajudar? Acredito na necessidade de imaginar o outro. Ler boa literatura nos coloca na pele de outras pessoas. Não para que concordemos 100% com elas, mas para que possamos ver a situação de um novo ângulo.

É melhor não ler nada do que ler má literatura? Sim. A má literatura só reforça os estereótipos: os caras maus são terríveis, os bons são maravilhosos, os heróis são gigantes, os covardes são grandes covardes. Isso também se aplica a filmes e televisão. É tudo falta de imaginação. A boa literatura é outra coisa. O protagonista de Crime e Castigo, de Dostoievski, é um assassino terrível, um homem horrível. No fim da leitura, nós o entendemos e até conseguimos sentir compaixão. E descobrimos algo dele dentro de nós. Isso tudo não nos fará matar velhinhas, mas nos mostrará mais sobre a natureza humana e talvez um pouco mais sobre nós mesmos. A grande literatura faz isso.

E qual o papel do humor? Nunca vi um fanático com senso de humor ou então alguém com senso de humor se tornar um fanático. Humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, e, quando podemos fazer isso, desenvolvemos uma noção de relativismo. Este é um antídoto maravilhoso contra o fanatismo e, se eu pudesse, colocaria senso de humor e curiosidade numa cápsula, distribuiria em todos os lugares para criar imunidade ao fanatismo, e me candidataria ao Nobel da Paz.

Mas não proporcionamos ou ensinamos isso ao outro. Não. E eu não posso salvar o mundo, não sou Jesus. E mesmo Jesus não fez um grande trabalho em salvar o mundo – ele ainda é um lugar cruel e doloroso. O que posso fazer é dar o diagnóstico: o fanático é um ponto de exclamação ambulante; não escuta, só fala; é um ser humano desesperado e mais interessado em você do que nele, porque ele não tem vida própria. É um grande altruísta: quer salvá-lo, mas, se não conseguir, ele vai matá-lo e vai matar seu vizinho. Fanatismo é o nosso problema mais urgente. A síndrome deste início de século não é o choque entre muçulmanos e cristãos, Ocidente e Oriente, Europa e mundo árabe, mas, sim, entre fanáticos e nós. E eles estão em todos os lugares e todas as culturas. Até entre ambientalistas e feministas, embora não sejam tão nocivos. Acredito que exista um gene de fanatismo em cada um de nós. Veja isso no dia a dia, quando uma pessoa quer mudar a outra ‘para o bem dela’. 

Em dezembro, o Estado Islâmico mandou um recado ameaçador a Israel. Está preocupado? Há alguém seguro hoje? Estou e todos nós deveríamos estar preocupados com todos os grupos radicais. Em qualquer lugar, Israel, Paris ou São Paulo, é tão fácil matar gente inocente. Basta uma arma, uma bomba, uma faca. É por isso, e porque é tão difícil combatê-los, que me preocupo. Não dá para acabar com isso usando um submarino nuclear ou avião sofisticado. É preciso convencer o fanático de que existem ideias melhores.

Mas acredita que eles estejam abertos, que possam mudar? Esta é uma questão complicada. Se eu disser que quero mudá-los, será a prova de que tenho o gene do fanatismo. Eu estaria tentando mudar alguém para seu próprio bem. Não sou violento e não vou matar ninguém, mas, ainda assim, tenho a urgência de transformá-los para o próprio bem deles. O fanatismo se agrava e se torna violento em tempos de grande desespero, em locais de grandes desilusões.

O senhor escreve que o conflito entre Israel e Palestina é uma tragédia em seu mais antigo sentido. Por quê? O conflito não é um faroeste com mocinhos e bandidos. Muita gente no mundo quer saber quem são eles, quer fazer uma passeata contra os bandidos e lançar abaixo-assinados em favor dos mocinhos. E vão dormir sentindo-se muito bem. Estamos diante do choque entre o certo e o certo, e, às vezes, entre o errado e o errado. Não há mocinhos ou bandidos. A Palestina reivindica esse país porque ela não tem nenhum outro. Os judeus israelenses reivindicam esse país porque não têm nenhum outro. Não é simples.

O senhor acredita na solução de dois Estados e usa a teoria do divórcio. Poderia explicá-la? Talvez no lugar de divórcio devêssemos usar a palavra compromisso. E não existe nenhum compromisso que seja feliz. Mas o oposto disso é fanatismo e morte. Precisamos encontrar o outro no meio da ponte.

E cita que, pela primeira vez em 100 anos, a população dos dois lados concorda que é hora de um acordo, mesmo com perdas. Isso faz alguma diferença para a política internacional? Deveria. Hoje, ao contrário de 50 anos atrás, a maioria dos judeus israelenses sabe que os palestinos não vão embora. E a maioria dos palestinos sabe, em seus corações, que os judeus israelenses nunca vão embora porque eles não têm para onde ir. O conhecimento existe no coração das pessoas. Estão todos felizes? Não. Vão à rua festejar quando um acordo de dois Estados for finalmente assinado? Não. Isso vai doer. De forma alguma o acordo resultará no nascimento de um amor mútuo. Não haverá abraços ou pedidos de perdão. No melhor cenário, haverá um compromisso doloroso e depois, lentamente, as emoções e as feridas serão amainadas e algum tipo de reconciliação pode surgir. Vai demorar, mas pode acontecer. Existe uma solução.

Veremos isso? O que posso dizer é que a solução depende de líderes corajosos dos dois lados e ao mesmo tempo. Todos sabem o que deve ser feito. 

O senhor lutou duas vezes e disse que voltaria a lutar, se necessário. Que guerra vale a pena ser lutada? Duas razões me fariam segurar uma arma e até matar alguém: se tentassem me matar ou matar as pessoas que amo ou se tentassem me escravizar. Se me pedirem para lutar por lugares sagrados ou por um cômodo a mais para o meu país, prefiro ser preso. Portanto, vida e liberdade. Nada mais.

Tivemos um impasse diplomático recente envolvendo a indicação de um embaixador contrário à criação do Estado da Palestina. Acompanhei as notícias. Seu voto nas eleições israelenses não é a resposta que deve ser considerada na decisão. É preciso descobrir se esse homem é a favor da supressão dos palestinos, se representa uma política pragmática. Não sei a resposta, mas eu não desqualificaria um embaixador só porque não concordo com seu voto.

Trecho “O crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples. Fanatismo e fundamentalismo muitas vezes têm uma resposta com uma só sentença para todo o sofrimento humano. O fanático acredita que se alguma coisa for ruim, ela deve ser extinta, às vezes, junto com seus vizinhos. O fanatismo é muito antigo. É mais antigo que o Islã, o cristianismo e o judaísmo. Mais velho que todas as ideologias.”

COMO CURAR UM FANÁTICO Autor: Amós Oz Tradução: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (104 págs., R$ 23,90)

Amós Oz foi um pequeno fanático. “Santimonial, chauvinista, surdo e cego a qualquer narrativa que diferisse da história judaica, sionista da época”, explica. O “menino que atirava pedras”, e a expressão é usada em seu sentido literal, logo descobre uma outra habilidade, a imaginação, e começa a desenhar uma nova história. Hoje, aos 76 anos, ele é um dos principais escritores israelenses de sua geração – e ser um escritor num país que nunca viveu em paz tem as suas implicações. Portanto, Amós Oz é uma das principais vozes no debate sobre o conflito entre seu país e a Palestina. 

A lembrança da passagem de sua infância em Jerusalém é uma das histórias contadas em Como Curar Um Fanático, obra de 2004 que chega ao Brasil com algumas mudanças. Aos dois textos da primeira edição, apresentados em 2002 como palestras na Alemanha, foi acrescentado o trabalho lido numa conferência em Paris no dia seguinte aos ataques terroristas de novembro de 2015. Há ainda um breve texto publicado no Guardian e uma entrevista feita pelos editores estrangeiros.

O escritor israelense defende a criação de dois Estados Foto: Rina Castelnuovo|The New York Times

São textos sobre fanatismo e o Oriente Médio. “Acho que hoje essas palestras são mais relevantes do que foram 10 anos atrás. Não concordo sempre comigo, mas nesse caso ainda concordo”, conta o escritor, em entrevista por telefone, de Tel-Aviv.

Na infância, depois do seu radicalismo, o senhor costumava imaginar como seria sua vida se fosse palestino. Como foi estar nesse lugar? O que sentiu? Eu me senti como um palestino: que sou uma vítima de injustiça e que sofro muito. Mas espero que eles também saibam como se sente um judeu israelense como eu. Precisamos de imaginação dos dois lados, em todas as situações da vida. A curiosidade nos torna pessoas melhores.

O que o transformou em uma criança e em um adulto diferente, em um ativista? A fantasia. Sempre imaginei ser outra pessoa, ser uma mulher, um velho, viver num outro século ou milênio. 

No livro, o senhor fala em antídotos ao fanatismo, como humor e capacidade imaginativa. A literatura pode ajudar? Acredito na necessidade de imaginar o outro. Ler boa literatura nos coloca na pele de outras pessoas. Não para que concordemos 100% com elas, mas para que possamos ver a situação de um novo ângulo.

É melhor não ler nada do que ler má literatura? Sim. A má literatura só reforça os estereótipos: os caras maus são terríveis, os bons são maravilhosos, os heróis são gigantes, os covardes são grandes covardes. Isso também se aplica a filmes e televisão. É tudo falta de imaginação. A boa literatura é outra coisa. O protagonista de Crime e Castigo, de Dostoievski, é um assassino terrível, um homem horrível. No fim da leitura, nós o entendemos e até conseguimos sentir compaixão. E descobrimos algo dele dentro de nós. Isso tudo não nos fará matar velhinhas, mas nos mostrará mais sobre a natureza humana e talvez um pouco mais sobre nós mesmos. A grande literatura faz isso.

E qual o papel do humor? Nunca vi um fanático com senso de humor ou então alguém com senso de humor se tornar um fanático. Humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, e, quando podemos fazer isso, desenvolvemos uma noção de relativismo. Este é um antídoto maravilhoso contra o fanatismo e, se eu pudesse, colocaria senso de humor e curiosidade numa cápsula, distribuiria em todos os lugares para criar imunidade ao fanatismo, e me candidataria ao Nobel da Paz.

Mas não proporcionamos ou ensinamos isso ao outro. Não. E eu não posso salvar o mundo, não sou Jesus. E mesmo Jesus não fez um grande trabalho em salvar o mundo – ele ainda é um lugar cruel e doloroso. O que posso fazer é dar o diagnóstico: o fanático é um ponto de exclamação ambulante; não escuta, só fala; é um ser humano desesperado e mais interessado em você do que nele, porque ele não tem vida própria. É um grande altruísta: quer salvá-lo, mas, se não conseguir, ele vai matá-lo e vai matar seu vizinho. Fanatismo é o nosso problema mais urgente. A síndrome deste início de século não é o choque entre muçulmanos e cristãos, Ocidente e Oriente, Europa e mundo árabe, mas, sim, entre fanáticos e nós. E eles estão em todos os lugares e todas as culturas. Até entre ambientalistas e feministas, embora não sejam tão nocivos. Acredito que exista um gene de fanatismo em cada um de nós. Veja isso no dia a dia, quando uma pessoa quer mudar a outra ‘para o bem dela’. 

Em dezembro, o Estado Islâmico mandou um recado ameaçador a Israel. Está preocupado? Há alguém seguro hoje? Estou e todos nós deveríamos estar preocupados com todos os grupos radicais. Em qualquer lugar, Israel, Paris ou São Paulo, é tão fácil matar gente inocente. Basta uma arma, uma bomba, uma faca. É por isso, e porque é tão difícil combatê-los, que me preocupo. Não dá para acabar com isso usando um submarino nuclear ou avião sofisticado. É preciso convencer o fanático de que existem ideias melhores.

Mas acredita que eles estejam abertos, que possam mudar? Esta é uma questão complicada. Se eu disser que quero mudá-los, será a prova de que tenho o gene do fanatismo. Eu estaria tentando mudar alguém para seu próprio bem. Não sou violento e não vou matar ninguém, mas, ainda assim, tenho a urgência de transformá-los para o próprio bem deles. O fanatismo se agrava e se torna violento em tempos de grande desespero, em locais de grandes desilusões.

O senhor escreve que o conflito entre Israel e Palestina é uma tragédia em seu mais antigo sentido. Por quê? O conflito não é um faroeste com mocinhos e bandidos. Muita gente no mundo quer saber quem são eles, quer fazer uma passeata contra os bandidos e lançar abaixo-assinados em favor dos mocinhos. E vão dormir sentindo-se muito bem. Estamos diante do choque entre o certo e o certo, e, às vezes, entre o errado e o errado. Não há mocinhos ou bandidos. A Palestina reivindica esse país porque ela não tem nenhum outro. Os judeus israelenses reivindicam esse país porque não têm nenhum outro. Não é simples.

O senhor acredita na solução de dois Estados e usa a teoria do divórcio. Poderia explicá-la? Talvez no lugar de divórcio devêssemos usar a palavra compromisso. E não existe nenhum compromisso que seja feliz. Mas o oposto disso é fanatismo e morte. Precisamos encontrar o outro no meio da ponte.

E cita que, pela primeira vez em 100 anos, a população dos dois lados concorda que é hora de um acordo, mesmo com perdas. Isso faz alguma diferença para a política internacional? Deveria. Hoje, ao contrário de 50 anos atrás, a maioria dos judeus israelenses sabe que os palestinos não vão embora. E a maioria dos palestinos sabe, em seus corações, que os judeus israelenses nunca vão embora porque eles não têm para onde ir. O conhecimento existe no coração das pessoas. Estão todos felizes? Não. Vão à rua festejar quando um acordo de dois Estados for finalmente assinado? Não. Isso vai doer. De forma alguma o acordo resultará no nascimento de um amor mútuo. Não haverá abraços ou pedidos de perdão. No melhor cenário, haverá um compromisso doloroso e depois, lentamente, as emoções e as feridas serão amainadas e algum tipo de reconciliação pode surgir. Vai demorar, mas pode acontecer. Existe uma solução.

Veremos isso? O que posso dizer é que a solução depende de líderes corajosos dos dois lados e ao mesmo tempo. Todos sabem o que deve ser feito. 

O senhor lutou duas vezes e disse que voltaria a lutar, se necessário. Que guerra vale a pena ser lutada? Duas razões me fariam segurar uma arma e até matar alguém: se tentassem me matar ou matar as pessoas que amo ou se tentassem me escravizar. Se me pedirem para lutar por lugares sagrados ou por um cômodo a mais para o meu país, prefiro ser preso. Portanto, vida e liberdade. Nada mais.

Tivemos um impasse diplomático recente envolvendo a indicação de um embaixador contrário à criação do Estado da Palestina. Acompanhei as notícias. Seu voto nas eleições israelenses não é a resposta que deve ser considerada na decisão. É preciso descobrir se esse homem é a favor da supressão dos palestinos, se representa uma política pragmática. Não sei a resposta, mas eu não desqualificaria um embaixador só porque não concordo com seu voto.

Trecho “O crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples. Fanatismo e fundamentalismo muitas vezes têm uma resposta com uma só sentença para todo o sofrimento humano. O fanático acredita que se alguma coisa for ruim, ela deve ser extinta, às vezes, junto com seus vizinhos. O fanatismo é muito antigo. É mais antigo que o Islã, o cristianismo e o judaísmo. Mais velho que todas as ideologias.”

COMO CURAR UM FANÁTICO Autor: Amós Oz Tradução: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (104 págs., R$ 23,90)

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