Paul Beatty leva um DJ americano para a Berlim dos anos 1980 em romance musical frenético


'Slumberland – A Batida Perfeita' carrega a voz inconfundível do escritor americano, vencedor do Man Booker Prize e do National Book Critics Circle Award

Por Guilherme Sobota

O Slumberland é um bar – fictício – na Berlim do final dos anos 1980 cuja seleção musical em sua jukebox se aproxima da perfeição, tem ambiente esfumaçado e é decorado com pinturas sobre empresas africanas. “O Slumberland era uma fantasia reprimida do supremacista branco. Em quase toda mesa, havia dois negros ensanduichados por duas brancas aduladoras. Numa mesa central posicionada de forma estratégica, quatro homens brancos sorridentes observavam voyeuristicamente as fronteiras sanguíneas de sua raça apodrecerem.”

O trecho acima é de Slumberland – A Batida Perfeita, romance que carrega a voz inconfundível do escritor americano Paul Beatty (1962), vencedor do Man Booker Prize e do National Book Critics Circle Award e professor de escrita criativa da universidade de Columbia. O livro, de 2011, é agora publicado pela primeira vez no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Rogerio Galindo.

Paul Beatty, escritor americano Foto: Alex Welsh/The New York Times
continua após a publicidade

No romance, o narrador sai de Los Angeles e viaja até Berlim depois de encontrar um pacote anônimo que contém uma fita com um vídeo pornograficamente escandaloso – mas o que o atrai de maneira fundamental é a trilha sonora do filme, que ele reconhece como sendo de autoria do “Schwa”. Músico de jazz de vanguarda sumido há tempos, o Schwa se chama assim porque “o som dele, assim como a vogal indeterminada, não é acentuada, fica de cabeça para baixo, e de trás para a frente. (...) Para nós, o Schwa era a batida definitiva”.

O narrador é o DJ Darky – “Aquele Cara Cerebralmente-Destro, Egocentrado e Agorafóbico, e não o seu prototípico dervixe de beat-juggling e do speed-mixing gritando ‘Isso é arte! Isso é arte!’ depois de cada contorção corporal e cada scratch”, como diz, em uma das suas autodescrições tresloucadas e sintaticamente criativas do livro – e ele é repleto de frases assim, costuradas com sagacidade impressionante.

Ele próprio um compositor de trilhas para vídeos eróticos, está convencido de que criou “uma batida perfeita a ponto de tornar nulos e vazios os rótulos musicais. Uma melodia transcendente a ponto de declarar a negritude oficialmente obsoleta. Finalmente, nós, as pessoas de cor, vamos ser olhados com uma alegre indiferença, não com a piedade erotizada nem com a aversão da projeção freudiana. (...) Foi uma música que por mero acaso era de uma negritude indeterminada e dançante pra c*”.

continua após a publicidade

Só que para se tornar a batida de fato perfeita, DJ Darky sabe que precisa de um toque do Schwa. Ele então decide perseguir a única dica possível do pacote com o vídeo indecente e descobrir o paradeiro do seu ídolo: o endereço do Slumberland, numa Berlim nas vésperas de ver seu famoso muro ruindo e levando com ele boa parte do sonho socialista.

Sobre o livro e as questões ao redor dele, Paul Beatty respondeu a algumas perguntas do Estado, por e-mail.

De onde veio esse amor profundo pela música? Você já foi DJ na vida?

continua após a publicidade

Não, nunca toquei. Eu tive sim um amigo de infância que foi DJ no fim dos anos 1980 e início dos 90, e eu me divertia enviando para ele música da área de Nova York que não estava disponível em Los Angeles. Mas eu não creio ter nenhuma sabedoria especial sobre música além de conhecer o que eu gosto. Eu vivi em Berlim por um tempo e a música (e ouvir a BBC) me manteve são. Eu tive uns poucos amigos que eram jornalistas de música em Berlim, na época, tinha vários lugares legais interessantes para shows. No livro, eu referendo muito da música que foi, de alguma forma, integral e significativa para a minha experiência em Berlim.

Como a sua visão sobre cor da pele mudou ao longo dos anos, pensando no que você aborda na sua ficção? DJ Darky começa o livro dizendo que o “mito da negritude acabou” e que, também, a “guerra acabou”. O Vendido também lida com essa questão.

Não acho que realmente tenho uma “visão” sobre raça. Entretanto, às vezes parece que raça é importante para mim quando não é importante para as outras pessoas, nem muito significativa quando os outros a consideram essencial. Mas escutando e lendo trabalhos de gente como Malcolm X, Chomsky, Luxemburgo e Angela Davis, minhas ideias sobre a vida, e raça incluída, se expandiram. O personagem não vê raça e música interconectadas como muitos dos seus contemporâneos. Ele não vê a negritude mais ou menos especial do que qualquer outro agrupamento etnográfico.

continua após a publicidade

Numa entrevista com o personagem Lars, DJ Darky diz que o que faz do hip-hop especial é a “intimidade espacial com o ouvinte”, e também diz: “Talvez quando o hip-hop morrer, e ele vai morrer, ele passe a ser adequado para o consumo público”. Nos últimos 10 anos, o hip-hop se tornou o maior gênero musical nos EUA. Quando você escreveu o livro, você imaginou que isso aconteceria? Você gosta de hip-hop hoje em dia?

Quando escrevi Slumberland, o impacto global do hip-hop era mais do que evidente. Hoje em dia, não escuto muita música a não ser que esteja dirigindo na Califórnia. E é na maioria música mais velha, independente de gênero. Não tenho opiniões gerais sobre o hip-hop contemporâneo. Assim como em todas as coisas, cinema, artes visuais, videogames e literatura, há coisas de que gosto e coisas de que não gosto, mas nunca gosto muito de nada.

E literatura sobre hip-hop? Você acha que ela existe? Você lê?

continua após a publicidade

Enquanto existem vários trabalhos excelentes de não ficção acerca do hip-hop, como os de Tricia Rose, Jeff Chang e Kodwo Eshun, não acho que há muita ficção sobre música em geral. Ainda que Adam Manbach escreva sobre hip-hop e eu tenha uma aluna, Dane Gebaurer, que escreveu um livro muito inteligente e peculiar sobre o estado atual da intersecção entre a cidade de Nova York e o hip-hop. E acho que alguém poderia fazer as muito óbvias observações sobre as similaridades entre autoexpressão no hip-hop e o leilão automático de carros.

Há cerca de dez anos, seu narrador, o DJ Darky, disse: “A humanidade está unida por seu fascismo latente, e que isso é tão verdadeiro hoje quanto em qualquer época do passado e do futuro”. O que você acha que ele diria sobre isso hoje?

Eu avisei?

continua após a publicidade

Quando você esteve no Brasil há alguns anos, alguém lhe perguntou durante um evento se um escritor branco poderia ter escrito O Vendido. Descrente, você respondeu: “Espero ser a única pessoa no mundo que poderia ter escrito esse livro”. Acho que a pergunta foi infeliz, mas o que é que as pessoas lhe perguntam sobre seus livros e seu trabalho que mais o irrita? 

Não acho que exista uma pergunta, mas as pessoas que leem e interpretam em termos de representação, sem nenhuma preocupação com a imaginação, me entediam. 

TRECHO de Slumberland:

“Eu invejo o curador do Louvre. Seja ele quem for, está numa situação melhor que a minha. Você não precisa ficar procurando o próximo fenômeno do impressionismo. Tem esse cara chamado Monet, você tem que ver. A pincelada dele é impecável. Você não precisa ficar folheando portfólios, ouvindo fitas, na esperança de que o seu suspiro forte exprima curiosidade, não exasperação. Ninguém jamais pergunta o que você acha do Jeff Koons. Duas vezes por ano o curador pega um elevador lento com temperatura controlada, vai ao porão, cumprimenta com um aceno condescendente o guarda argelino armado com um blazer de poliéster roxo e pede que ele escolha uma letra, qualquer letra, e tira a poeira do Degas e do Delacroix. Vamoz ezibirr essesz aqui, non? Todas as decisões importantes foram tomadas por ele lá em 1793 quando o Louvre abriu suas portas douradas e disse: Enculez le chic, f*-se o chique.”

SLUMBERLAND – A BATIDA PERFEITA

Autor: PaulBeatty

Tradutor: Rogerio Galindo

Editora: Todavia (272 págs., R$ 64,90, R$ 39,90 o digital)

O Slumberland é um bar – fictício – na Berlim do final dos anos 1980 cuja seleção musical em sua jukebox se aproxima da perfeição, tem ambiente esfumaçado e é decorado com pinturas sobre empresas africanas. “O Slumberland era uma fantasia reprimida do supremacista branco. Em quase toda mesa, havia dois negros ensanduichados por duas brancas aduladoras. Numa mesa central posicionada de forma estratégica, quatro homens brancos sorridentes observavam voyeuristicamente as fronteiras sanguíneas de sua raça apodrecerem.”

O trecho acima é de Slumberland – A Batida Perfeita, romance que carrega a voz inconfundível do escritor americano Paul Beatty (1962), vencedor do Man Booker Prize e do National Book Critics Circle Award e professor de escrita criativa da universidade de Columbia. O livro, de 2011, é agora publicado pela primeira vez no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Rogerio Galindo.

Paul Beatty, escritor americano Foto: Alex Welsh/The New York Times

No romance, o narrador sai de Los Angeles e viaja até Berlim depois de encontrar um pacote anônimo que contém uma fita com um vídeo pornograficamente escandaloso – mas o que o atrai de maneira fundamental é a trilha sonora do filme, que ele reconhece como sendo de autoria do “Schwa”. Músico de jazz de vanguarda sumido há tempos, o Schwa se chama assim porque “o som dele, assim como a vogal indeterminada, não é acentuada, fica de cabeça para baixo, e de trás para a frente. (...) Para nós, o Schwa era a batida definitiva”.

O narrador é o DJ Darky – “Aquele Cara Cerebralmente-Destro, Egocentrado e Agorafóbico, e não o seu prototípico dervixe de beat-juggling e do speed-mixing gritando ‘Isso é arte! Isso é arte!’ depois de cada contorção corporal e cada scratch”, como diz, em uma das suas autodescrições tresloucadas e sintaticamente criativas do livro – e ele é repleto de frases assim, costuradas com sagacidade impressionante.

Ele próprio um compositor de trilhas para vídeos eróticos, está convencido de que criou “uma batida perfeita a ponto de tornar nulos e vazios os rótulos musicais. Uma melodia transcendente a ponto de declarar a negritude oficialmente obsoleta. Finalmente, nós, as pessoas de cor, vamos ser olhados com uma alegre indiferença, não com a piedade erotizada nem com a aversão da projeção freudiana. (...) Foi uma música que por mero acaso era de uma negritude indeterminada e dançante pra c*”.

Só que para se tornar a batida de fato perfeita, DJ Darky sabe que precisa de um toque do Schwa. Ele então decide perseguir a única dica possível do pacote com o vídeo indecente e descobrir o paradeiro do seu ídolo: o endereço do Slumberland, numa Berlim nas vésperas de ver seu famoso muro ruindo e levando com ele boa parte do sonho socialista.

Sobre o livro e as questões ao redor dele, Paul Beatty respondeu a algumas perguntas do Estado, por e-mail.

De onde veio esse amor profundo pela música? Você já foi DJ na vida?

Não, nunca toquei. Eu tive sim um amigo de infância que foi DJ no fim dos anos 1980 e início dos 90, e eu me divertia enviando para ele música da área de Nova York que não estava disponível em Los Angeles. Mas eu não creio ter nenhuma sabedoria especial sobre música além de conhecer o que eu gosto. Eu vivi em Berlim por um tempo e a música (e ouvir a BBC) me manteve são. Eu tive uns poucos amigos que eram jornalistas de música em Berlim, na época, tinha vários lugares legais interessantes para shows. No livro, eu referendo muito da música que foi, de alguma forma, integral e significativa para a minha experiência em Berlim.

Como a sua visão sobre cor da pele mudou ao longo dos anos, pensando no que você aborda na sua ficção? DJ Darky começa o livro dizendo que o “mito da negritude acabou” e que, também, a “guerra acabou”. O Vendido também lida com essa questão.

Não acho que realmente tenho uma “visão” sobre raça. Entretanto, às vezes parece que raça é importante para mim quando não é importante para as outras pessoas, nem muito significativa quando os outros a consideram essencial. Mas escutando e lendo trabalhos de gente como Malcolm X, Chomsky, Luxemburgo e Angela Davis, minhas ideias sobre a vida, e raça incluída, se expandiram. O personagem não vê raça e música interconectadas como muitos dos seus contemporâneos. Ele não vê a negritude mais ou menos especial do que qualquer outro agrupamento etnográfico.

Numa entrevista com o personagem Lars, DJ Darky diz que o que faz do hip-hop especial é a “intimidade espacial com o ouvinte”, e também diz: “Talvez quando o hip-hop morrer, e ele vai morrer, ele passe a ser adequado para o consumo público”. Nos últimos 10 anos, o hip-hop se tornou o maior gênero musical nos EUA. Quando você escreveu o livro, você imaginou que isso aconteceria? Você gosta de hip-hop hoje em dia?

Quando escrevi Slumberland, o impacto global do hip-hop era mais do que evidente. Hoje em dia, não escuto muita música a não ser que esteja dirigindo na Califórnia. E é na maioria música mais velha, independente de gênero. Não tenho opiniões gerais sobre o hip-hop contemporâneo. Assim como em todas as coisas, cinema, artes visuais, videogames e literatura, há coisas de que gosto e coisas de que não gosto, mas nunca gosto muito de nada.

E literatura sobre hip-hop? Você acha que ela existe? Você lê?

Enquanto existem vários trabalhos excelentes de não ficção acerca do hip-hop, como os de Tricia Rose, Jeff Chang e Kodwo Eshun, não acho que há muita ficção sobre música em geral. Ainda que Adam Manbach escreva sobre hip-hop e eu tenha uma aluna, Dane Gebaurer, que escreveu um livro muito inteligente e peculiar sobre o estado atual da intersecção entre a cidade de Nova York e o hip-hop. E acho que alguém poderia fazer as muito óbvias observações sobre as similaridades entre autoexpressão no hip-hop e o leilão automático de carros.

Há cerca de dez anos, seu narrador, o DJ Darky, disse: “A humanidade está unida por seu fascismo latente, e que isso é tão verdadeiro hoje quanto em qualquer época do passado e do futuro”. O que você acha que ele diria sobre isso hoje?

Eu avisei?

Quando você esteve no Brasil há alguns anos, alguém lhe perguntou durante um evento se um escritor branco poderia ter escrito O Vendido. Descrente, você respondeu: “Espero ser a única pessoa no mundo que poderia ter escrito esse livro”. Acho que a pergunta foi infeliz, mas o que é que as pessoas lhe perguntam sobre seus livros e seu trabalho que mais o irrita? 

Não acho que exista uma pergunta, mas as pessoas que leem e interpretam em termos de representação, sem nenhuma preocupação com a imaginação, me entediam. 

TRECHO de Slumberland:

“Eu invejo o curador do Louvre. Seja ele quem for, está numa situação melhor que a minha. Você não precisa ficar procurando o próximo fenômeno do impressionismo. Tem esse cara chamado Monet, você tem que ver. A pincelada dele é impecável. Você não precisa ficar folheando portfólios, ouvindo fitas, na esperança de que o seu suspiro forte exprima curiosidade, não exasperação. Ninguém jamais pergunta o que você acha do Jeff Koons. Duas vezes por ano o curador pega um elevador lento com temperatura controlada, vai ao porão, cumprimenta com um aceno condescendente o guarda argelino armado com um blazer de poliéster roxo e pede que ele escolha uma letra, qualquer letra, e tira a poeira do Degas e do Delacroix. Vamoz ezibirr essesz aqui, non? Todas as decisões importantes foram tomadas por ele lá em 1793 quando o Louvre abriu suas portas douradas e disse: Enculez le chic, f*-se o chique.”

SLUMBERLAND – A BATIDA PERFEITA

Autor: PaulBeatty

Tradutor: Rogerio Galindo

Editora: Todavia (272 págs., R$ 64,90, R$ 39,90 o digital)

O Slumberland é um bar – fictício – na Berlim do final dos anos 1980 cuja seleção musical em sua jukebox se aproxima da perfeição, tem ambiente esfumaçado e é decorado com pinturas sobre empresas africanas. “O Slumberland era uma fantasia reprimida do supremacista branco. Em quase toda mesa, havia dois negros ensanduichados por duas brancas aduladoras. Numa mesa central posicionada de forma estratégica, quatro homens brancos sorridentes observavam voyeuristicamente as fronteiras sanguíneas de sua raça apodrecerem.”

O trecho acima é de Slumberland – A Batida Perfeita, romance que carrega a voz inconfundível do escritor americano Paul Beatty (1962), vencedor do Man Booker Prize e do National Book Critics Circle Award e professor de escrita criativa da universidade de Columbia. O livro, de 2011, é agora publicado pela primeira vez no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Rogerio Galindo.

Paul Beatty, escritor americano Foto: Alex Welsh/The New York Times

No romance, o narrador sai de Los Angeles e viaja até Berlim depois de encontrar um pacote anônimo que contém uma fita com um vídeo pornograficamente escandaloso – mas o que o atrai de maneira fundamental é a trilha sonora do filme, que ele reconhece como sendo de autoria do “Schwa”. Músico de jazz de vanguarda sumido há tempos, o Schwa se chama assim porque “o som dele, assim como a vogal indeterminada, não é acentuada, fica de cabeça para baixo, e de trás para a frente. (...) Para nós, o Schwa era a batida definitiva”.

O narrador é o DJ Darky – “Aquele Cara Cerebralmente-Destro, Egocentrado e Agorafóbico, e não o seu prototípico dervixe de beat-juggling e do speed-mixing gritando ‘Isso é arte! Isso é arte!’ depois de cada contorção corporal e cada scratch”, como diz, em uma das suas autodescrições tresloucadas e sintaticamente criativas do livro – e ele é repleto de frases assim, costuradas com sagacidade impressionante.

Ele próprio um compositor de trilhas para vídeos eróticos, está convencido de que criou “uma batida perfeita a ponto de tornar nulos e vazios os rótulos musicais. Uma melodia transcendente a ponto de declarar a negritude oficialmente obsoleta. Finalmente, nós, as pessoas de cor, vamos ser olhados com uma alegre indiferença, não com a piedade erotizada nem com a aversão da projeção freudiana. (...) Foi uma música que por mero acaso era de uma negritude indeterminada e dançante pra c*”.

Só que para se tornar a batida de fato perfeita, DJ Darky sabe que precisa de um toque do Schwa. Ele então decide perseguir a única dica possível do pacote com o vídeo indecente e descobrir o paradeiro do seu ídolo: o endereço do Slumberland, numa Berlim nas vésperas de ver seu famoso muro ruindo e levando com ele boa parte do sonho socialista.

Sobre o livro e as questões ao redor dele, Paul Beatty respondeu a algumas perguntas do Estado, por e-mail.

De onde veio esse amor profundo pela música? Você já foi DJ na vida?

Não, nunca toquei. Eu tive sim um amigo de infância que foi DJ no fim dos anos 1980 e início dos 90, e eu me divertia enviando para ele música da área de Nova York que não estava disponível em Los Angeles. Mas eu não creio ter nenhuma sabedoria especial sobre música além de conhecer o que eu gosto. Eu vivi em Berlim por um tempo e a música (e ouvir a BBC) me manteve são. Eu tive uns poucos amigos que eram jornalistas de música em Berlim, na época, tinha vários lugares legais interessantes para shows. No livro, eu referendo muito da música que foi, de alguma forma, integral e significativa para a minha experiência em Berlim.

Como a sua visão sobre cor da pele mudou ao longo dos anos, pensando no que você aborda na sua ficção? DJ Darky começa o livro dizendo que o “mito da negritude acabou” e que, também, a “guerra acabou”. O Vendido também lida com essa questão.

Não acho que realmente tenho uma “visão” sobre raça. Entretanto, às vezes parece que raça é importante para mim quando não é importante para as outras pessoas, nem muito significativa quando os outros a consideram essencial. Mas escutando e lendo trabalhos de gente como Malcolm X, Chomsky, Luxemburgo e Angela Davis, minhas ideias sobre a vida, e raça incluída, se expandiram. O personagem não vê raça e música interconectadas como muitos dos seus contemporâneos. Ele não vê a negritude mais ou menos especial do que qualquer outro agrupamento etnográfico.

Numa entrevista com o personagem Lars, DJ Darky diz que o que faz do hip-hop especial é a “intimidade espacial com o ouvinte”, e também diz: “Talvez quando o hip-hop morrer, e ele vai morrer, ele passe a ser adequado para o consumo público”. Nos últimos 10 anos, o hip-hop se tornou o maior gênero musical nos EUA. Quando você escreveu o livro, você imaginou que isso aconteceria? Você gosta de hip-hop hoje em dia?

Quando escrevi Slumberland, o impacto global do hip-hop era mais do que evidente. Hoje em dia, não escuto muita música a não ser que esteja dirigindo na Califórnia. E é na maioria música mais velha, independente de gênero. Não tenho opiniões gerais sobre o hip-hop contemporâneo. Assim como em todas as coisas, cinema, artes visuais, videogames e literatura, há coisas de que gosto e coisas de que não gosto, mas nunca gosto muito de nada.

E literatura sobre hip-hop? Você acha que ela existe? Você lê?

Enquanto existem vários trabalhos excelentes de não ficção acerca do hip-hop, como os de Tricia Rose, Jeff Chang e Kodwo Eshun, não acho que há muita ficção sobre música em geral. Ainda que Adam Manbach escreva sobre hip-hop e eu tenha uma aluna, Dane Gebaurer, que escreveu um livro muito inteligente e peculiar sobre o estado atual da intersecção entre a cidade de Nova York e o hip-hop. E acho que alguém poderia fazer as muito óbvias observações sobre as similaridades entre autoexpressão no hip-hop e o leilão automático de carros.

Há cerca de dez anos, seu narrador, o DJ Darky, disse: “A humanidade está unida por seu fascismo latente, e que isso é tão verdadeiro hoje quanto em qualquer época do passado e do futuro”. O que você acha que ele diria sobre isso hoje?

Eu avisei?

Quando você esteve no Brasil há alguns anos, alguém lhe perguntou durante um evento se um escritor branco poderia ter escrito O Vendido. Descrente, você respondeu: “Espero ser a única pessoa no mundo que poderia ter escrito esse livro”. Acho que a pergunta foi infeliz, mas o que é que as pessoas lhe perguntam sobre seus livros e seu trabalho que mais o irrita? 

Não acho que exista uma pergunta, mas as pessoas que leem e interpretam em termos de representação, sem nenhuma preocupação com a imaginação, me entediam. 

TRECHO de Slumberland:

“Eu invejo o curador do Louvre. Seja ele quem for, está numa situação melhor que a minha. Você não precisa ficar procurando o próximo fenômeno do impressionismo. Tem esse cara chamado Monet, você tem que ver. A pincelada dele é impecável. Você não precisa ficar folheando portfólios, ouvindo fitas, na esperança de que o seu suspiro forte exprima curiosidade, não exasperação. Ninguém jamais pergunta o que você acha do Jeff Koons. Duas vezes por ano o curador pega um elevador lento com temperatura controlada, vai ao porão, cumprimenta com um aceno condescendente o guarda argelino armado com um blazer de poliéster roxo e pede que ele escolha uma letra, qualquer letra, e tira a poeira do Degas e do Delacroix. Vamoz ezibirr essesz aqui, non? Todas as decisões importantes foram tomadas por ele lá em 1793 quando o Louvre abriu suas portas douradas e disse: Enculez le chic, f*-se o chique.”

SLUMBERLAND – A BATIDA PERFEITA

Autor: PaulBeatty

Tradutor: Rogerio Galindo

Editora: Todavia (272 págs., R$ 64,90, R$ 39,90 o digital)

O Slumberland é um bar – fictício – na Berlim do final dos anos 1980 cuja seleção musical em sua jukebox se aproxima da perfeição, tem ambiente esfumaçado e é decorado com pinturas sobre empresas africanas. “O Slumberland era uma fantasia reprimida do supremacista branco. Em quase toda mesa, havia dois negros ensanduichados por duas brancas aduladoras. Numa mesa central posicionada de forma estratégica, quatro homens brancos sorridentes observavam voyeuristicamente as fronteiras sanguíneas de sua raça apodrecerem.”

O trecho acima é de Slumberland – A Batida Perfeita, romance que carrega a voz inconfundível do escritor americano Paul Beatty (1962), vencedor do Man Booker Prize e do National Book Critics Circle Award e professor de escrita criativa da universidade de Columbia. O livro, de 2011, é agora publicado pela primeira vez no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Rogerio Galindo.

Paul Beatty, escritor americano Foto: Alex Welsh/The New York Times

No romance, o narrador sai de Los Angeles e viaja até Berlim depois de encontrar um pacote anônimo que contém uma fita com um vídeo pornograficamente escandaloso – mas o que o atrai de maneira fundamental é a trilha sonora do filme, que ele reconhece como sendo de autoria do “Schwa”. Músico de jazz de vanguarda sumido há tempos, o Schwa se chama assim porque “o som dele, assim como a vogal indeterminada, não é acentuada, fica de cabeça para baixo, e de trás para a frente. (...) Para nós, o Schwa era a batida definitiva”.

O narrador é o DJ Darky – “Aquele Cara Cerebralmente-Destro, Egocentrado e Agorafóbico, e não o seu prototípico dervixe de beat-juggling e do speed-mixing gritando ‘Isso é arte! Isso é arte!’ depois de cada contorção corporal e cada scratch”, como diz, em uma das suas autodescrições tresloucadas e sintaticamente criativas do livro – e ele é repleto de frases assim, costuradas com sagacidade impressionante.

Ele próprio um compositor de trilhas para vídeos eróticos, está convencido de que criou “uma batida perfeita a ponto de tornar nulos e vazios os rótulos musicais. Uma melodia transcendente a ponto de declarar a negritude oficialmente obsoleta. Finalmente, nós, as pessoas de cor, vamos ser olhados com uma alegre indiferença, não com a piedade erotizada nem com a aversão da projeção freudiana. (...) Foi uma música que por mero acaso era de uma negritude indeterminada e dançante pra c*”.

Só que para se tornar a batida de fato perfeita, DJ Darky sabe que precisa de um toque do Schwa. Ele então decide perseguir a única dica possível do pacote com o vídeo indecente e descobrir o paradeiro do seu ídolo: o endereço do Slumberland, numa Berlim nas vésperas de ver seu famoso muro ruindo e levando com ele boa parte do sonho socialista.

Sobre o livro e as questões ao redor dele, Paul Beatty respondeu a algumas perguntas do Estado, por e-mail.

De onde veio esse amor profundo pela música? Você já foi DJ na vida?

Não, nunca toquei. Eu tive sim um amigo de infância que foi DJ no fim dos anos 1980 e início dos 90, e eu me divertia enviando para ele música da área de Nova York que não estava disponível em Los Angeles. Mas eu não creio ter nenhuma sabedoria especial sobre música além de conhecer o que eu gosto. Eu vivi em Berlim por um tempo e a música (e ouvir a BBC) me manteve são. Eu tive uns poucos amigos que eram jornalistas de música em Berlim, na época, tinha vários lugares legais interessantes para shows. No livro, eu referendo muito da música que foi, de alguma forma, integral e significativa para a minha experiência em Berlim.

Como a sua visão sobre cor da pele mudou ao longo dos anos, pensando no que você aborda na sua ficção? DJ Darky começa o livro dizendo que o “mito da negritude acabou” e que, também, a “guerra acabou”. O Vendido também lida com essa questão.

Não acho que realmente tenho uma “visão” sobre raça. Entretanto, às vezes parece que raça é importante para mim quando não é importante para as outras pessoas, nem muito significativa quando os outros a consideram essencial. Mas escutando e lendo trabalhos de gente como Malcolm X, Chomsky, Luxemburgo e Angela Davis, minhas ideias sobre a vida, e raça incluída, se expandiram. O personagem não vê raça e música interconectadas como muitos dos seus contemporâneos. Ele não vê a negritude mais ou menos especial do que qualquer outro agrupamento etnográfico.

Numa entrevista com o personagem Lars, DJ Darky diz que o que faz do hip-hop especial é a “intimidade espacial com o ouvinte”, e também diz: “Talvez quando o hip-hop morrer, e ele vai morrer, ele passe a ser adequado para o consumo público”. Nos últimos 10 anos, o hip-hop se tornou o maior gênero musical nos EUA. Quando você escreveu o livro, você imaginou que isso aconteceria? Você gosta de hip-hop hoje em dia?

Quando escrevi Slumberland, o impacto global do hip-hop era mais do que evidente. Hoje em dia, não escuto muita música a não ser que esteja dirigindo na Califórnia. E é na maioria música mais velha, independente de gênero. Não tenho opiniões gerais sobre o hip-hop contemporâneo. Assim como em todas as coisas, cinema, artes visuais, videogames e literatura, há coisas de que gosto e coisas de que não gosto, mas nunca gosto muito de nada.

E literatura sobre hip-hop? Você acha que ela existe? Você lê?

Enquanto existem vários trabalhos excelentes de não ficção acerca do hip-hop, como os de Tricia Rose, Jeff Chang e Kodwo Eshun, não acho que há muita ficção sobre música em geral. Ainda que Adam Manbach escreva sobre hip-hop e eu tenha uma aluna, Dane Gebaurer, que escreveu um livro muito inteligente e peculiar sobre o estado atual da intersecção entre a cidade de Nova York e o hip-hop. E acho que alguém poderia fazer as muito óbvias observações sobre as similaridades entre autoexpressão no hip-hop e o leilão automático de carros.

Há cerca de dez anos, seu narrador, o DJ Darky, disse: “A humanidade está unida por seu fascismo latente, e que isso é tão verdadeiro hoje quanto em qualquer época do passado e do futuro”. O que você acha que ele diria sobre isso hoje?

Eu avisei?

Quando você esteve no Brasil há alguns anos, alguém lhe perguntou durante um evento se um escritor branco poderia ter escrito O Vendido. Descrente, você respondeu: “Espero ser a única pessoa no mundo que poderia ter escrito esse livro”. Acho que a pergunta foi infeliz, mas o que é que as pessoas lhe perguntam sobre seus livros e seu trabalho que mais o irrita? 

Não acho que exista uma pergunta, mas as pessoas que leem e interpretam em termos de representação, sem nenhuma preocupação com a imaginação, me entediam. 

TRECHO de Slumberland:

“Eu invejo o curador do Louvre. Seja ele quem for, está numa situação melhor que a minha. Você não precisa ficar procurando o próximo fenômeno do impressionismo. Tem esse cara chamado Monet, você tem que ver. A pincelada dele é impecável. Você não precisa ficar folheando portfólios, ouvindo fitas, na esperança de que o seu suspiro forte exprima curiosidade, não exasperação. Ninguém jamais pergunta o que você acha do Jeff Koons. Duas vezes por ano o curador pega um elevador lento com temperatura controlada, vai ao porão, cumprimenta com um aceno condescendente o guarda argelino armado com um blazer de poliéster roxo e pede que ele escolha uma letra, qualquer letra, e tira a poeira do Degas e do Delacroix. Vamoz ezibirr essesz aqui, non? Todas as decisões importantes foram tomadas por ele lá em 1793 quando o Louvre abriu suas portas douradas e disse: Enculez le chic, f*-se o chique.”

SLUMBERLAND – A BATIDA PERFEITA

Autor: PaulBeatty

Tradutor: Rogerio Galindo

Editora: Todavia (272 págs., R$ 64,90, R$ 39,90 o digital)

O Slumberland é um bar – fictício – na Berlim do final dos anos 1980 cuja seleção musical em sua jukebox se aproxima da perfeição, tem ambiente esfumaçado e é decorado com pinturas sobre empresas africanas. “O Slumberland era uma fantasia reprimida do supremacista branco. Em quase toda mesa, havia dois negros ensanduichados por duas brancas aduladoras. Numa mesa central posicionada de forma estratégica, quatro homens brancos sorridentes observavam voyeuristicamente as fronteiras sanguíneas de sua raça apodrecerem.”

O trecho acima é de Slumberland – A Batida Perfeita, romance que carrega a voz inconfundível do escritor americano Paul Beatty (1962), vencedor do Man Booker Prize e do National Book Critics Circle Award e professor de escrita criativa da universidade de Columbia. O livro, de 2011, é agora publicado pela primeira vez no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Rogerio Galindo.

Paul Beatty, escritor americano Foto: Alex Welsh/The New York Times

No romance, o narrador sai de Los Angeles e viaja até Berlim depois de encontrar um pacote anônimo que contém uma fita com um vídeo pornograficamente escandaloso – mas o que o atrai de maneira fundamental é a trilha sonora do filme, que ele reconhece como sendo de autoria do “Schwa”. Músico de jazz de vanguarda sumido há tempos, o Schwa se chama assim porque “o som dele, assim como a vogal indeterminada, não é acentuada, fica de cabeça para baixo, e de trás para a frente. (...) Para nós, o Schwa era a batida definitiva”.

O narrador é o DJ Darky – “Aquele Cara Cerebralmente-Destro, Egocentrado e Agorafóbico, e não o seu prototípico dervixe de beat-juggling e do speed-mixing gritando ‘Isso é arte! Isso é arte!’ depois de cada contorção corporal e cada scratch”, como diz, em uma das suas autodescrições tresloucadas e sintaticamente criativas do livro – e ele é repleto de frases assim, costuradas com sagacidade impressionante.

Ele próprio um compositor de trilhas para vídeos eróticos, está convencido de que criou “uma batida perfeita a ponto de tornar nulos e vazios os rótulos musicais. Uma melodia transcendente a ponto de declarar a negritude oficialmente obsoleta. Finalmente, nós, as pessoas de cor, vamos ser olhados com uma alegre indiferença, não com a piedade erotizada nem com a aversão da projeção freudiana. (...) Foi uma música que por mero acaso era de uma negritude indeterminada e dançante pra c*”.

Só que para se tornar a batida de fato perfeita, DJ Darky sabe que precisa de um toque do Schwa. Ele então decide perseguir a única dica possível do pacote com o vídeo indecente e descobrir o paradeiro do seu ídolo: o endereço do Slumberland, numa Berlim nas vésperas de ver seu famoso muro ruindo e levando com ele boa parte do sonho socialista.

Sobre o livro e as questões ao redor dele, Paul Beatty respondeu a algumas perguntas do Estado, por e-mail.

De onde veio esse amor profundo pela música? Você já foi DJ na vida?

Não, nunca toquei. Eu tive sim um amigo de infância que foi DJ no fim dos anos 1980 e início dos 90, e eu me divertia enviando para ele música da área de Nova York que não estava disponível em Los Angeles. Mas eu não creio ter nenhuma sabedoria especial sobre música além de conhecer o que eu gosto. Eu vivi em Berlim por um tempo e a música (e ouvir a BBC) me manteve são. Eu tive uns poucos amigos que eram jornalistas de música em Berlim, na época, tinha vários lugares legais interessantes para shows. No livro, eu referendo muito da música que foi, de alguma forma, integral e significativa para a minha experiência em Berlim.

Como a sua visão sobre cor da pele mudou ao longo dos anos, pensando no que você aborda na sua ficção? DJ Darky começa o livro dizendo que o “mito da negritude acabou” e que, também, a “guerra acabou”. O Vendido também lida com essa questão.

Não acho que realmente tenho uma “visão” sobre raça. Entretanto, às vezes parece que raça é importante para mim quando não é importante para as outras pessoas, nem muito significativa quando os outros a consideram essencial. Mas escutando e lendo trabalhos de gente como Malcolm X, Chomsky, Luxemburgo e Angela Davis, minhas ideias sobre a vida, e raça incluída, se expandiram. O personagem não vê raça e música interconectadas como muitos dos seus contemporâneos. Ele não vê a negritude mais ou menos especial do que qualquer outro agrupamento etnográfico.

Numa entrevista com o personagem Lars, DJ Darky diz que o que faz do hip-hop especial é a “intimidade espacial com o ouvinte”, e também diz: “Talvez quando o hip-hop morrer, e ele vai morrer, ele passe a ser adequado para o consumo público”. Nos últimos 10 anos, o hip-hop se tornou o maior gênero musical nos EUA. Quando você escreveu o livro, você imaginou que isso aconteceria? Você gosta de hip-hop hoje em dia?

Quando escrevi Slumberland, o impacto global do hip-hop era mais do que evidente. Hoje em dia, não escuto muita música a não ser que esteja dirigindo na Califórnia. E é na maioria música mais velha, independente de gênero. Não tenho opiniões gerais sobre o hip-hop contemporâneo. Assim como em todas as coisas, cinema, artes visuais, videogames e literatura, há coisas de que gosto e coisas de que não gosto, mas nunca gosto muito de nada.

E literatura sobre hip-hop? Você acha que ela existe? Você lê?

Enquanto existem vários trabalhos excelentes de não ficção acerca do hip-hop, como os de Tricia Rose, Jeff Chang e Kodwo Eshun, não acho que há muita ficção sobre música em geral. Ainda que Adam Manbach escreva sobre hip-hop e eu tenha uma aluna, Dane Gebaurer, que escreveu um livro muito inteligente e peculiar sobre o estado atual da intersecção entre a cidade de Nova York e o hip-hop. E acho que alguém poderia fazer as muito óbvias observações sobre as similaridades entre autoexpressão no hip-hop e o leilão automático de carros.

Há cerca de dez anos, seu narrador, o DJ Darky, disse: “A humanidade está unida por seu fascismo latente, e que isso é tão verdadeiro hoje quanto em qualquer época do passado e do futuro”. O que você acha que ele diria sobre isso hoje?

Eu avisei?

Quando você esteve no Brasil há alguns anos, alguém lhe perguntou durante um evento se um escritor branco poderia ter escrito O Vendido. Descrente, você respondeu: “Espero ser a única pessoa no mundo que poderia ter escrito esse livro”. Acho que a pergunta foi infeliz, mas o que é que as pessoas lhe perguntam sobre seus livros e seu trabalho que mais o irrita? 

Não acho que exista uma pergunta, mas as pessoas que leem e interpretam em termos de representação, sem nenhuma preocupação com a imaginação, me entediam. 

TRECHO de Slumberland:

“Eu invejo o curador do Louvre. Seja ele quem for, está numa situação melhor que a minha. Você não precisa ficar procurando o próximo fenômeno do impressionismo. Tem esse cara chamado Monet, você tem que ver. A pincelada dele é impecável. Você não precisa ficar folheando portfólios, ouvindo fitas, na esperança de que o seu suspiro forte exprima curiosidade, não exasperação. Ninguém jamais pergunta o que você acha do Jeff Koons. Duas vezes por ano o curador pega um elevador lento com temperatura controlada, vai ao porão, cumprimenta com um aceno condescendente o guarda argelino armado com um blazer de poliéster roxo e pede que ele escolha uma letra, qualquer letra, e tira a poeira do Degas e do Delacroix. Vamoz ezibirr essesz aqui, non? Todas as decisões importantes foram tomadas por ele lá em 1793 quando o Louvre abriu suas portas douradas e disse: Enculez le chic, f*-se o chique.”

SLUMBERLAND – A BATIDA PERFEITA

Autor: PaulBeatty

Tradutor: Rogerio Galindo

Editora: Todavia (272 págs., R$ 64,90, R$ 39,90 o digital)

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.