Há 30 anos, Pedro Bandeira lançava A Droga da Obediência, o primeiro volume da coleção Os Karas – que o consagrou não só como um dos principais nomes da literatura juvenil, mas também como um dos maiores best-sellers do País. Com mais de uma centena de livros publicados, ele já vendeu, segundo sua editora, 30 milhões de exemplares.
Outros quatro títulos se seguiram à A Droga da Obediência (quase 2 milhões de cópias vendidas – a metade para o governo), e Pedro Bandeira se viu numa encruzilhada: como, em pleno século 21, escrever uma nova aventura para Miguel, Chumbinho, Calu, Crânio e Magrí, os alunos do Colégio Elite que solucionavam, secretamente, crimes numa época em que não existia celular e a internet não passava pelo sonho dos meninos sem fazer referência às novas tecnologia?
Hoje, 14 anos depois do último lançamento, Pedro encontrou um jeito de resolver a questão. Ele lança, às 14 horas, num bate-papo com Ziraldo e Eva Funari na Bienal, A Droga da Amizade. Toda a coleção (A Droga da Obediência, Pântano de Sangue, Anjo da Morte, A Droga do Amor e Droga de Americana!) está ganhando novo projeto gráfico. Autor também de A Marca de Uma Lágrima e O Mistério de Feiurinha, Bandeira falou ao Estado.
Como foi ficar 14 anos longe dos personagens?Não fiquei tão longe; eu tentei. Fiz uma história que teria computadores e hackers, mas, enquanto escrevia, aqueles modelos que eu usava saíam de moda. Usei o enredo para A Droga de Americana porque os personagens estavam vivos. São jovens no início da adolescência, quando o ser humano começa a tomar contato com um mundo maior do que o seu umbigo, que a casa e a escola e começa a ter opiniões, a ver problemas sociais e sente vontade de atuar. Mas como escrever uma história sem que eles pesquisassem no Google, por exemplo?
Agora a solução apareceu.Eu os fiz crescer. Coloquei Miguel, o líder, a recordar como surgiu aquela turma. A amizade é o primeiro grande ponto social do ser humano.
O sucesso vem da identificação?Sim. O pré-adolescente está saindo da infância e querendo se tornar um ser social. O livro funciona como um espelho e ele se sentem na pele dos personagens. Recebi a carta de uma juíza que me disse: ‘Cada vez que pego um processo, penso como um ‘Kara’ agiria numa hora dessas’. É uma vitória.
O adolescente mudou?Não. Era assim no século 5.º e será assim no século 50. Por que A Droga da Obediência vende mais hoje do que quando foi lançado? Não importa a tecnologia, o ser humano será sempre o ser humano e a literatura trata dos sentimentos – não fala sobre o agora. As pessoas podem amar de um jeito diferente, mas ainda é amor. No meu tempo, pegar na mão de uma menina era um fuá. Hoje, eles ficam, se beijam, se lambem e eu, velho, fico escandalizado. Mas ainda é amor. Fico muito feliz por ter conseguido criar um clássico.
O escritor tem uma missão?Tenho a missão, como ser humano, de tentar ter a melhor vida que eu puder e fazer o melhor por mim e pelo outro. O artista quer fazer o bem.
A literatura pode ajudar as crianças a encontrar esse bom caminho?A literatura é igual arroz e feijão para o corpo. Você precisa alimentar seus sentimentos como precisa comer para não morrer. Sem arte, a vida é muito triste e difícil.
Até pouco tempo, o senhor, Ziraldo e Mauricio de Sousa eram os autores que levavam público às bienais. Continuam, mas há um fenômeno novo, de jovens de uma geração seguinte indo em peso atrás dos ídolos.Eles existem porque houve um dia um Ziraldo, uma Ruth Rocha, um Pedro Bandeira. Estamos criando leitores para eles. Essa gente nos leu, cresceu e quer continuar lendo. Mas não querem, ainda, um Moacyr Scliar. Chegarão já até ele. A nossa missão é criar leitor. No alto está Baudelaire, mas para chegar lá há uma longa escada, e para que eu queira um dia chegar lá em cima, é preciso que eu queira subir o degrau da Ruth Rocha, do Ziraldo, do Pedro Bandeira, e tem que ser gostoso. Sou amigo dessas autoras que fazem chicklit, para meninas. Ainda não tem uma coisa para os meninos e acho que eles estão lendo autoajuda, livros do tipo ‘como vencer na vida sem fazer esforço’. Eles querem emprego, precisam dar certo na vida, e esses livros estão demorando.
Não importa se leem uma obra com ou sem qualidade?Se o padre Marcelo é sinônimo de qualidade para alguém, se os livros alimentam o sentimento dessa pessoa, está bom.
Há aquela antiga questão: quem lê algo mais raso na adolescência chega aos grandes autores?Li todas as bobagens na vida e não me fez mal. O que faz mal é não ler. É como comer: se seu filho não gosta de couve, mas fica feliz com a beterraba porque é mais vermelhinha, está bom. Ruim é não comer.
Eles estão lendo mais hoje?Se estão! Ainda temos muitos problemas, mas todos estão lendo um pouco mais.
Como melhorar ainda mais o índice de leitura?A professora tem que continuar fazendo o menino ler na escola. A adoção escolar salvou o Brasil porque as famílias não estavam acostumadas com livro, não davam o exemplo de leitura em casa, e também acabou criando o escritor profissional para crianças e adolescentes. Eu mesmo, jornalista formado em Ciências Sociais, passei a estudar, como autodidata, pedagogia e psicologia do desenvolvimento. Preciso saber o que diferencia uma criança de 4 anos de uma de 6 para fazer o livro adequado para ela.
Ouvir a criança nos encontros e por meio das cartas ajuda?Tudo ajuda. Alguns leitores viram amigos e continuam escrevendo. Recebia cartas de uma menina que falava de uma paixão. De repente, ela escreve falando sobre sua primeira vez. Aposto que ela não falou para o pai. Olha a confiança que elas passam a ter na gente. E olha a responsabilidade que passamos a ter. Não é brincadeira. Se escrevo para adulto, é outra história. Na semana passada fui assistir à peça Killer Joe, dirigida por Mario Bortolotto. É de uma violência brutal. Nunca vi algo tão terrível. Nessa peça tem uma felação em cena. Estou velho, não posso ver essas coisas. Bortolotto pode fazer uma coisa dessas. Quem vai lá é burro velho. Se escrevo para alguém de 10, 11 anos, eu tenho responsabilidades, ele ainda está em formação.
O que pensa sobre o politicamente correto?Se eu precisar botar um anão na história, vou chamá-lo de anão, e não de verticalmente prejudicado. Se eu disser que a pessoa é afrodescendente, ela não vai ficar mais pálida por causa disso. Qual é problema de ser negro? Isso é uma bobagem.
Sem o empenho do autor em participar de encontros com leitores, as obras teriam a mesma repercussão?A feira, aqui, é para sairmos da biblioteca e dizer: olha, eu sou o livro, pode encostar. É uma dessacralização do livro. As feiras são um caos, e é assim que tem que ser.
Já desanimou, pensou em desistir de escrever?Desistir de viver? Parar e ficar assistindo à Sessão da Tarde? Ana Maria Braga?
Alguns dizem que esgotaram o que tinham a dizer.Procuro caminhos novos. Tenho 108 historinhas à venda. Já peguei muitos temas, mas ando com vontade de fazer algo na linha do fantástico, como fizeram com esse bruxinho, os vampiros. Mas isso não é folclore brasileiro. É estranho um brasileiro escrever sobre vampiro na Avenida Paulista. Não faz sentido e não faz parte do nosso DNA cultural.
E é preciso ter esse compromisso? Os jovens estão lendo muito esse tipo de literatura.É um compromisso com a infância que você teve. E eles estão lendo o que vem de fora. Para mim, não é natural escrever sobre isso.
De que forma a sua memória dialoga com as suas obras?Não tive pai. Ele morreu quando eu ainda estava na barriga da minha mãe. Ela, pobre e viúva, criou os três filhos com dificuldade. Ela tinha pouca cultura, mas era ‘contadera’ de história no colo. Foi ali que ouvi os contos de fadas. Mas minha família não era de intelectuais. Tive o amor dela, mas culturalmente sou produto da sociedade, da escola.
A Droga da AmizadeAutor: Pedro Bandeira Editora: Moderna (168 págs., R$ 41; R$ 29 o e-book)