Análise|Pesquisador investiga encontro entre território mental, geografia pessoal, cartografia e literatura


Em ‘Mapas e Ficções’, o francês Roger Chartier, que é especializado em história do livro, da edição e da leitura, escreve sobre os caminhos da imaginação narrativa a partir de grandes clássicos e viagens literárias

Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:

O globo terrestre estar totalmente cartografado, fotografado por empresas transnacionais de tecnologia e acessível em qualquer dispositivo não impede que, mundo afora, obscuros pensadores digam que o planeta é, no entanto, plano como uma folha de papel.

Da mesma forma, ao longo da Idade Moderna, quanto mais a ciência cartográfica se desenvolvia, diversas e memoráveis obras de ficção situavam-se no espaço, enganchava-se na ideia do mapa mas não se contentavam com a cartografia: torciam, tencionavam, contradiziam a razão. Entre a fabulação criadora da literatura e o obscurantismo destruidor, vê-se: a ciência jamais deu conta do imaginário.

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Essa talvez seja a primeira, mas não a única, ideia presente no novo livro do historiador francês Roger Chartier, Mapas e Ficções. Ele situa sua pesquisa entre os séculos 16 e 18, o período das grandes navegações europeias na exploração de outros mundos, mas também um período fértil da cartografia, com a incorporação do Novo Mundo ao mapa mental europeu.

A proposta do livro é “realizar uma genealogia histórica da presença dos mapas em histórias de ficção”, como ele escreve. Estamos falando aqui de um gesto editorial rastreado por Chartier: os livros foram editados com mapas ilustrativos, em alguma edição, mas não em todas. Essa recorrência é significativa?

Imagem do livro 'Mapas e Ficções', de Roger Chartier, com mapa presente em 'Dom Quixote'. Foto: Editora da Unesp/Divulgação
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Chartier começa com o D. Quixote, de Cervantes, livro no qual não havia originalmente nenhum mapa, mas que no século 18 teve a inclusão dos mapas que tentam reconstruir as três jornadas do anacrônico cavaleiro andante pelas terras da Espanha. Tal recurso levou o historiador oitocentista Juan Antonio Pellicer a apontar as inconsistências do escritor: “aqui cometeu Cervantes um notável erro de geografia (...) não é possível que Rocinante e o asno percorressem uma distância tão grande em tão pouco tempo.”

Ao que Chartier é categórico, restituindo ao literário o que lhe é próprio: “Decididamente a geografia de Cervantes não tem nada de cartográfica”. Diz isso para logo adiante mostra como os caminhos de Quixote e os de Persiles e Sigismunda respondem, em grande medida, aos trajetos percorridos pelo próprio autor, em sua vida pregressa. Uma geografia pessoal, portanto.

Outro exemplo presente no livro de Chartier é o de que ele lança mão ao abordar a Utopia (1516), de Tomas Morus. Livro que, segundo ele, teria inspirado uma série de outras obras de viagens, como Robinson Crusoé (1719), de Daniel Dafoe, e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. Ora, uma vez mais, o paradoxo se apresenta: em sua primeira edição, o livro de Morus é acompanhado de um mapa da ilha de Utopia. Como é possível, afinal, pergunta-se Louis Marin, citado por Chartier, traçar “um mapa que não está nos mapas”?

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Porém, há mais, a ideia do mapa ganha ainda outra dimensão quando chegamos a livros que dão conta de um território outro, como O Mapa da Ternura (1654), obra coletiva francesa, a cargo de Mademoiselle de Scudéry: lá há um mapa onde estão o Lago da Indiferença, o Mar Perigoso e as Terras Desconhecidas, entre outros territórios mentais. O livro é acompanhado de leituras alegóricas do mapa. Tal tipo de leitura, no entanto, não é mais interessante. Chartier o diz: “Poderia ser que sua composição (...) tanto quanto os possíveis efeitos sobre os leitores, sejam regidos por associações de significações que escapam ao discurso”.

Imagem do Mapa de Ternura, presente no livro 'Mapas e ficções', de Roger Chartier. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Tal ideia, a da associação em detrimento da decifração, fica ainda mais evidente quando chegamos a San Juan de la Cruz (1542-1591), o carmelita descalço espanhol, autor de poemas em que se cruzam o sentimento amoroso - espiritual e carnal - e a religião.

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O frei teve muitos problemas com a Igreja, pois seus poemas davam margem a interpretações que não as religiosas: influenciados por obras como o Cântico dos Cânticos, traziam imagens perturbadoras - tanto no século 16 quanto hoje - como “regalada chaga, cautério suave, toque delicado”, as quais precisavam ser infinitamente glosadas para expor a interpretação correta, segundo os ditames da religião. Tratava-se, no limite, de fazer com que o casal que surgia nos poemas fosse interpretado como a alma humana (ela) e Deus (ele).

Portanto é significativo e curioso que as edições póstumas das obras do frei Juan, publicadas na França, em 1621 e 1641, incluam já mapas da Subida ao Monte Carmelo, indicando as virtudes que a alma humana deve alcançar para chegar a Deus. Um mapa para o leitor se achar, enquanto talvez a experiência mística, como a experiência amorosa, seja primordialmente a de se perder.

O historiador francês Roger Chartier. Foto: Michael Wögerbauer/Divulgação
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Em Mapas e Ficções, uma obra tão curta quanto ricamente ilustrada, o grande mérito de Chartier é o de mostrar não apenas os caminhos da imaginação narrativa de diversos escritores europeus, mas também o dos editores que, quando da publicação, inseriram nas obras os mapas, produzindo singulares tensões entre texto e imagem.

Ao plasmar cartograficamente as quimeras do texto, há uma opção na direção de modernizar o que é da ordem da escrita, racionalizá-la num diagrama. Porém, o mais intrigante é notar como o desejo fabulador triunfa, pois o tempo e o espaço da literatura sempre estão além ou aquém do mapa, transbordando-o.

Cervantes não errou. Os cartógrafos não erraram. Descobrir os caminhos de Gulliver, achar uma rota para a Utopia ou tentar cartografar um território interior são desejos legítimos e demasiado humanos. Não há erro. Erram sim aqueles que abandonam as potencialidades fabuladoras em nome da fantasia totalitária do fim da História.

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Mapas e ficções

Séculos XVI a XVIII

  • Autor: Roger Chartier
  • Tradução: Pedro Paulo Pimenta
  • Editora Unesp (198 págs.; R$69,00)

O globo terrestre estar totalmente cartografado, fotografado por empresas transnacionais de tecnologia e acessível em qualquer dispositivo não impede que, mundo afora, obscuros pensadores digam que o planeta é, no entanto, plano como uma folha de papel.

Da mesma forma, ao longo da Idade Moderna, quanto mais a ciência cartográfica se desenvolvia, diversas e memoráveis obras de ficção situavam-se no espaço, enganchava-se na ideia do mapa mas não se contentavam com a cartografia: torciam, tencionavam, contradiziam a razão. Entre a fabulação criadora da literatura e o obscurantismo destruidor, vê-se: a ciência jamais deu conta do imaginário.

Essa talvez seja a primeira, mas não a única, ideia presente no novo livro do historiador francês Roger Chartier, Mapas e Ficções. Ele situa sua pesquisa entre os séculos 16 e 18, o período das grandes navegações europeias na exploração de outros mundos, mas também um período fértil da cartografia, com a incorporação do Novo Mundo ao mapa mental europeu.

A proposta do livro é “realizar uma genealogia histórica da presença dos mapas em histórias de ficção”, como ele escreve. Estamos falando aqui de um gesto editorial rastreado por Chartier: os livros foram editados com mapas ilustrativos, em alguma edição, mas não em todas. Essa recorrência é significativa?

Imagem do livro 'Mapas e Ficções', de Roger Chartier, com mapa presente em 'Dom Quixote'. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Chartier começa com o D. Quixote, de Cervantes, livro no qual não havia originalmente nenhum mapa, mas que no século 18 teve a inclusão dos mapas que tentam reconstruir as três jornadas do anacrônico cavaleiro andante pelas terras da Espanha. Tal recurso levou o historiador oitocentista Juan Antonio Pellicer a apontar as inconsistências do escritor: “aqui cometeu Cervantes um notável erro de geografia (...) não é possível que Rocinante e o asno percorressem uma distância tão grande em tão pouco tempo.”

Ao que Chartier é categórico, restituindo ao literário o que lhe é próprio: “Decididamente a geografia de Cervantes não tem nada de cartográfica”. Diz isso para logo adiante mostra como os caminhos de Quixote e os de Persiles e Sigismunda respondem, em grande medida, aos trajetos percorridos pelo próprio autor, em sua vida pregressa. Uma geografia pessoal, portanto.

Outro exemplo presente no livro de Chartier é o de que ele lança mão ao abordar a Utopia (1516), de Tomas Morus. Livro que, segundo ele, teria inspirado uma série de outras obras de viagens, como Robinson Crusoé (1719), de Daniel Dafoe, e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. Ora, uma vez mais, o paradoxo se apresenta: em sua primeira edição, o livro de Morus é acompanhado de um mapa da ilha de Utopia. Como é possível, afinal, pergunta-se Louis Marin, citado por Chartier, traçar “um mapa que não está nos mapas”?

Porém, há mais, a ideia do mapa ganha ainda outra dimensão quando chegamos a livros que dão conta de um território outro, como O Mapa da Ternura (1654), obra coletiva francesa, a cargo de Mademoiselle de Scudéry: lá há um mapa onde estão o Lago da Indiferença, o Mar Perigoso e as Terras Desconhecidas, entre outros territórios mentais. O livro é acompanhado de leituras alegóricas do mapa. Tal tipo de leitura, no entanto, não é mais interessante. Chartier o diz: “Poderia ser que sua composição (...) tanto quanto os possíveis efeitos sobre os leitores, sejam regidos por associações de significações que escapam ao discurso”.

Imagem do Mapa de Ternura, presente no livro 'Mapas e ficções', de Roger Chartier. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Tal ideia, a da associação em detrimento da decifração, fica ainda mais evidente quando chegamos a San Juan de la Cruz (1542-1591), o carmelita descalço espanhol, autor de poemas em que se cruzam o sentimento amoroso - espiritual e carnal - e a religião.

O frei teve muitos problemas com a Igreja, pois seus poemas davam margem a interpretações que não as religiosas: influenciados por obras como o Cântico dos Cânticos, traziam imagens perturbadoras - tanto no século 16 quanto hoje - como “regalada chaga, cautério suave, toque delicado”, as quais precisavam ser infinitamente glosadas para expor a interpretação correta, segundo os ditames da religião. Tratava-se, no limite, de fazer com que o casal que surgia nos poemas fosse interpretado como a alma humana (ela) e Deus (ele).

Portanto é significativo e curioso que as edições póstumas das obras do frei Juan, publicadas na França, em 1621 e 1641, incluam já mapas da Subida ao Monte Carmelo, indicando as virtudes que a alma humana deve alcançar para chegar a Deus. Um mapa para o leitor se achar, enquanto talvez a experiência mística, como a experiência amorosa, seja primordialmente a de se perder.

O historiador francês Roger Chartier. Foto: Michael Wögerbauer/Divulgação

Em Mapas e Ficções, uma obra tão curta quanto ricamente ilustrada, o grande mérito de Chartier é o de mostrar não apenas os caminhos da imaginação narrativa de diversos escritores europeus, mas também o dos editores que, quando da publicação, inseriram nas obras os mapas, produzindo singulares tensões entre texto e imagem.

Ao plasmar cartograficamente as quimeras do texto, há uma opção na direção de modernizar o que é da ordem da escrita, racionalizá-la num diagrama. Porém, o mais intrigante é notar como o desejo fabulador triunfa, pois o tempo e o espaço da literatura sempre estão além ou aquém do mapa, transbordando-o.

Cervantes não errou. Os cartógrafos não erraram. Descobrir os caminhos de Gulliver, achar uma rota para a Utopia ou tentar cartografar um território interior são desejos legítimos e demasiado humanos. Não há erro. Erram sim aqueles que abandonam as potencialidades fabuladoras em nome da fantasia totalitária do fim da História.

Mapas e ficções

Séculos XVI a XVIII

  • Autor: Roger Chartier
  • Tradução: Pedro Paulo Pimenta
  • Editora Unesp (198 págs.; R$69,00)

O globo terrestre estar totalmente cartografado, fotografado por empresas transnacionais de tecnologia e acessível em qualquer dispositivo não impede que, mundo afora, obscuros pensadores digam que o planeta é, no entanto, plano como uma folha de papel.

Da mesma forma, ao longo da Idade Moderna, quanto mais a ciência cartográfica se desenvolvia, diversas e memoráveis obras de ficção situavam-se no espaço, enganchava-se na ideia do mapa mas não se contentavam com a cartografia: torciam, tencionavam, contradiziam a razão. Entre a fabulação criadora da literatura e o obscurantismo destruidor, vê-se: a ciência jamais deu conta do imaginário.

Essa talvez seja a primeira, mas não a única, ideia presente no novo livro do historiador francês Roger Chartier, Mapas e Ficções. Ele situa sua pesquisa entre os séculos 16 e 18, o período das grandes navegações europeias na exploração de outros mundos, mas também um período fértil da cartografia, com a incorporação do Novo Mundo ao mapa mental europeu.

A proposta do livro é “realizar uma genealogia histórica da presença dos mapas em histórias de ficção”, como ele escreve. Estamos falando aqui de um gesto editorial rastreado por Chartier: os livros foram editados com mapas ilustrativos, em alguma edição, mas não em todas. Essa recorrência é significativa?

Imagem do livro 'Mapas e Ficções', de Roger Chartier, com mapa presente em 'Dom Quixote'. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Chartier começa com o D. Quixote, de Cervantes, livro no qual não havia originalmente nenhum mapa, mas que no século 18 teve a inclusão dos mapas que tentam reconstruir as três jornadas do anacrônico cavaleiro andante pelas terras da Espanha. Tal recurso levou o historiador oitocentista Juan Antonio Pellicer a apontar as inconsistências do escritor: “aqui cometeu Cervantes um notável erro de geografia (...) não é possível que Rocinante e o asno percorressem uma distância tão grande em tão pouco tempo.”

Ao que Chartier é categórico, restituindo ao literário o que lhe é próprio: “Decididamente a geografia de Cervantes não tem nada de cartográfica”. Diz isso para logo adiante mostra como os caminhos de Quixote e os de Persiles e Sigismunda respondem, em grande medida, aos trajetos percorridos pelo próprio autor, em sua vida pregressa. Uma geografia pessoal, portanto.

Outro exemplo presente no livro de Chartier é o de que ele lança mão ao abordar a Utopia (1516), de Tomas Morus. Livro que, segundo ele, teria inspirado uma série de outras obras de viagens, como Robinson Crusoé (1719), de Daniel Dafoe, e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. Ora, uma vez mais, o paradoxo se apresenta: em sua primeira edição, o livro de Morus é acompanhado de um mapa da ilha de Utopia. Como é possível, afinal, pergunta-se Louis Marin, citado por Chartier, traçar “um mapa que não está nos mapas”?

Porém, há mais, a ideia do mapa ganha ainda outra dimensão quando chegamos a livros que dão conta de um território outro, como O Mapa da Ternura (1654), obra coletiva francesa, a cargo de Mademoiselle de Scudéry: lá há um mapa onde estão o Lago da Indiferença, o Mar Perigoso e as Terras Desconhecidas, entre outros territórios mentais. O livro é acompanhado de leituras alegóricas do mapa. Tal tipo de leitura, no entanto, não é mais interessante. Chartier o diz: “Poderia ser que sua composição (...) tanto quanto os possíveis efeitos sobre os leitores, sejam regidos por associações de significações que escapam ao discurso”.

Imagem do Mapa de Ternura, presente no livro 'Mapas e ficções', de Roger Chartier. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Tal ideia, a da associação em detrimento da decifração, fica ainda mais evidente quando chegamos a San Juan de la Cruz (1542-1591), o carmelita descalço espanhol, autor de poemas em que se cruzam o sentimento amoroso - espiritual e carnal - e a religião.

O frei teve muitos problemas com a Igreja, pois seus poemas davam margem a interpretações que não as religiosas: influenciados por obras como o Cântico dos Cânticos, traziam imagens perturbadoras - tanto no século 16 quanto hoje - como “regalada chaga, cautério suave, toque delicado”, as quais precisavam ser infinitamente glosadas para expor a interpretação correta, segundo os ditames da religião. Tratava-se, no limite, de fazer com que o casal que surgia nos poemas fosse interpretado como a alma humana (ela) e Deus (ele).

Portanto é significativo e curioso que as edições póstumas das obras do frei Juan, publicadas na França, em 1621 e 1641, incluam já mapas da Subida ao Monte Carmelo, indicando as virtudes que a alma humana deve alcançar para chegar a Deus. Um mapa para o leitor se achar, enquanto talvez a experiência mística, como a experiência amorosa, seja primordialmente a de se perder.

O historiador francês Roger Chartier. Foto: Michael Wögerbauer/Divulgação

Em Mapas e Ficções, uma obra tão curta quanto ricamente ilustrada, o grande mérito de Chartier é o de mostrar não apenas os caminhos da imaginação narrativa de diversos escritores europeus, mas também o dos editores que, quando da publicação, inseriram nas obras os mapas, produzindo singulares tensões entre texto e imagem.

Ao plasmar cartograficamente as quimeras do texto, há uma opção na direção de modernizar o que é da ordem da escrita, racionalizá-la num diagrama. Porém, o mais intrigante é notar como o desejo fabulador triunfa, pois o tempo e o espaço da literatura sempre estão além ou aquém do mapa, transbordando-o.

Cervantes não errou. Os cartógrafos não erraram. Descobrir os caminhos de Gulliver, achar uma rota para a Utopia ou tentar cartografar um território interior são desejos legítimos e demasiado humanos. Não há erro. Erram sim aqueles que abandonam as potencialidades fabuladoras em nome da fantasia totalitária do fim da História.

Mapas e ficções

Séculos XVI a XVIII

  • Autor: Roger Chartier
  • Tradução: Pedro Paulo Pimenta
  • Editora Unesp (198 págs.; R$69,00)

O globo terrestre estar totalmente cartografado, fotografado por empresas transnacionais de tecnologia e acessível em qualquer dispositivo não impede que, mundo afora, obscuros pensadores digam que o planeta é, no entanto, plano como uma folha de papel.

Da mesma forma, ao longo da Idade Moderna, quanto mais a ciência cartográfica se desenvolvia, diversas e memoráveis obras de ficção situavam-se no espaço, enganchava-se na ideia do mapa mas não se contentavam com a cartografia: torciam, tencionavam, contradiziam a razão. Entre a fabulação criadora da literatura e o obscurantismo destruidor, vê-se: a ciência jamais deu conta do imaginário.

Essa talvez seja a primeira, mas não a única, ideia presente no novo livro do historiador francês Roger Chartier, Mapas e Ficções. Ele situa sua pesquisa entre os séculos 16 e 18, o período das grandes navegações europeias na exploração de outros mundos, mas também um período fértil da cartografia, com a incorporação do Novo Mundo ao mapa mental europeu.

A proposta do livro é “realizar uma genealogia histórica da presença dos mapas em histórias de ficção”, como ele escreve. Estamos falando aqui de um gesto editorial rastreado por Chartier: os livros foram editados com mapas ilustrativos, em alguma edição, mas não em todas. Essa recorrência é significativa?

Imagem do livro 'Mapas e Ficções', de Roger Chartier, com mapa presente em 'Dom Quixote'. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Chartier começa com o D. Quixote, de Cervantes, livro no qual não havia originalmente nenhum mapa, mas que no século 18 teve a inclusão dos mapas que tentam reconstruir as três jornadas do anacrônico cavaleiro andante pelas terras da Espanha. Tal recurso levou o historiador oitocentista Juan Antonio Pellicer a apontar as inconsistências do escritor: “aqui cometeu Cervantes um notável erro de geografia (...) não é possível que Rocinante e o asno percorressem uma distância tão grande em tão pouco tempo.”

Ao que Chartier é categórico, restituindo ao literário o que lhe é próprio: “Decididamente a geografia de Cervantes não tem nada de cartográfica”. Diz isso para logo adiante mostra como os caminhos de Quixote e os de Persiles e Sigismunda respondem, em grande medida, aos trajetos percorridos pelo próprio autor, em sua vida pregressa. Uma geografia pessoal, portanto.

Outro exemplo presente no livro de Chartier é o de que ele lança mão ao abordar a Utopia (1516), de Tomas Morus. Livro que, segundo ele, teria inspirado uma série de outras obras de viagens, como Robinson Crusoé (1719), de Daniel Dafoe, e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. Ora, uma vez mais, o paradoxo se apresenta: em sua primeira edição, o livro de Morus é acompanhado de um mapa da ilha de Utopia. Como é possível, afinal, pergunta-se Louis Marin, citado por Chartier, traçar “um mapa que não está nos mapas”?

Porém, há mais, a ideia do mapa ganha ainda outra dimensão quando chegamos a livros que dão conta de um território outro, como O Mapa da Ternura (1654), obra coletiva francesa, a cargo de Mademoiselle de Scudéry: lá há um mapa onde estão o Lago da Indiferença, o Mar Perigoso e as Terras Desconhecidas, entre outros territórios mentais. O livro é acompanhado de leituras alegóricas do mapa. Tal tipo de leitura, no entanto, não é mais interessante. Chartier o diz: “Poderia ser que sua composição (...) tanto quanto os possíveis efeitos sobre os leitores, sejam regidos por associações de significações que escapam ao discurso”.

Imagem do Mapa de Ternura, presente no livro 'Mapas e ficções', de Roger Chartier. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Tal ideia, a da associação em detrimento da decifração, fica ainda mais evidente quando chegamos a San Juan de la Cruz (1542-1591), o carmelita descalço espanhol, autor de poemas em que se cruzam o sentimento amoroso - espiritual e carnal - e a religião.

O frei teve muitos problemas com a Igreja, pois seus poemas davam margem a interpretações que não as religiosas: influenciados por obras como o Cântico dos Cânticos, traziam imagens perturbadoras - tanto no século 16 quanto hoje - como “regalada chaga, cautério suave, toque delicado”, as quais precisavam ser infinitamente glosadas para expor a interpretação correta, segundo os ditames da religião. Tratava-se, no limite, de fazer com que o casal que surgia nos poemas fosse interpretado como a alma humana (ela) e Deus (ele).

Portanto é significativo e curioso que as edições póstumas das obras do frei Juan, publicadas na França, em 1621 e 1641, incluam já mapas da Subida ao Monte Carmelo, indicando as virtudes que a alma humana deve alcançar para chegar a Deus. Um mapa para o leitor se achar, enquanto talvez a experiência mística, como a experiência amorosa, seja primordialmente a de se perder.

O historiador francês Roger Chartier. Foto: Michael Wögerbauer/Divulgação

Em Mapas e Ficções, uma obra tão curta quanto ricamente ilustrada, o grande mérito de Chartier é o de mostrar não apenas os caminhos da imaginação narrativa de diversos escritores europeus, mas também o dos editores que, quando da publicação, inseriram nas obras os mapas, produzindo singulares tensões entre texto e imagem.

Ao plasmar cartograficamente as quimeras do texto, há uma opção na direção de modernizar o que é da ordem da escrita, racionalizá-la num diagrama. Porém, o mais intrigante é notar como o desejo fabulador triunfa, pois o tempo e o espaço da literatura sempre estão além ou aquém do mapa, transbordando-o.

Cervantes não errou. Os cartógrafos não erraram. Descobrir os caminhos de Gulliver, achar uma rota para a Utopia ou tentar cartografar um território interior são desejos legítimos e demasiado humanos. Não há erro. Erram sim aqueles que abandonam as potencialidades fabuladoras em nome da fantasia totalitária do fim da História.

Mapas e ficções

Séculos XVI a XVIII

  • Autor: Roger Chartier
  • Tradução: Pedro Paulo Pimenta
  • Editora Unesp (198 págs.; R$69,00)

O globo terrestre estar totalmente cartografado, fotografado por empresas transnacionais de tecnologia e acessível em qualquer dispositivo não impede que, mundo afora, obscuros pensadores digam que o planeta é, no entanto, plano como uma folha de papel.

Da mesma forma, ao longo da Idade Moderna, quanto mais a ciência cartográfica se desenvolvia, diversas e memoráveis obras de ficção situavam-se no espaço, enganchava-se na ideia do mapa mas não se contentavam com a cartografia: torciam, tencionavam, contradiziam a razão. Entre a fabulação criadora da literatura e o obscurantismo destruidor, vê-se: a ciência jamais deu conta do imaginário.

Essa talvez seja a primeira, mas não a única, ideia presente no novo livro do historiador francês Roger Chartier, Mapas e Ficções. Ele situa sua pesquisa entre os séculos 16 e 18, o período das grandes navegações europeias na exploração de outros mundos, mas também um período fértil da cartografia, com a incorporação do Novo Mundo ao mapa mental europeu.

A proposta do livro é “realizar uma genealogia histórica da presença dos mapas em histórias de ficção”, como ele escreve. Estamos falando aqui de um gesto editorial rastreado por Chartier: os livros foram editados com mapas ilustrativos, em alguma edição, mas não em todas. Essa recorrência é significativa?

Imagem do livro 'Mapas e Ficções', de Roger Chartier, com mapa presente em 'Dom Quixote'. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Chartier começa com o D. Quixote, de Cervantes, livro no qual não havia originalmente nenhum mapa, mas que no século 18 teve a inclusão dos mapas que tentam reconstruir as três jornadas do anacrônico cavaleiro andante pelas terras da Espanha. Tal recurso levou o historiador oitocentista Juan Antonio Pellicer a apontar as inconsistências do escritor: “aqui cometeu Cervantes um notável erro de geografia (...) não é possível que Rocinante e o asno percorressem uma distância tão grande em tão pouco tempo.”

Ao que Chartier é categórico, restituindo ao literário o que lhe é próprio: “Decididamente a geografia de Cervantes não tem nada de cartográfica”. Diz isso para logo adiante mostra como os caminhos de Quixote e os de Persiles e Sigismunda respondem, em grande medida, aos trajetos percorridos pelo próprio autor, em sua vida pregressa. Uma geografia pessoal, portanto.

Outro exemplo presente no livro de Chartier é o de que ele lança mão ao abordar a Utopia (1516), de Tomas Morus. Livro que, segundo ele, teria inspirado uma série de outras obras de viagens, como Robinson Crusoé (1719), de Daniel Dafoe, e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. Ora, uma vez mais, o paradoxo se apresenta: em sua primeira edição, o livro de Morus é acompanhado de um mapa da ilha de Utopia. Como é possível, afinal, pergunta-se Louis Marin, citado por Chartier, traçar “um mapa que não está nos mapas”?

Porém, há mais, a ideia do mapa ganha ainda outra dimensão quando chegamos a livros que dão conta de um território outro, como O Mapa da Ternura (1654), obra coletiva francesa, a cargo de Mademoiselle de Scudéry: lá há um mapa onde estão o Lago da Indiferença, o Mar Perigoso e as Terras Desconhecidas, entre outros territórios mentais. O livro é acompanhado de leituras alegóricas do mapa. Tal tipo de leitura, no entanto, não é mais interessante. Chartier o diz: “Poderia ser que sua composição (...) tanto quanto os possíveis efeitos sobre os leitores, sejam regidos por associações de significações que escapam ao discurso”.

Imagem do Mapa de Ternura, presente no livro 'Mapas e ficções', de Roger Chartier. Foto: Editora da Unesp/Divulgação

Tal ideia, a da associação em detrimento da decifração, fica ainda mais evidente quando chegamos a San Juan de la Cruz (1542-1591), o carmelita descalço espanhol, autor de poemas em que se cruzam o sentimento amoroso - espiritual e carnal - e a religião.

O frei teve muitos problemas com a Igreja, pois seus poemas davam margem a interpretações que não as religiosas: influenciados por obras como o Cântico dos Cânticos, traziam imagens perturbadoras - tanto no século 16 quanto hoje - como “regalada chaga, cautério suave, toque delicado”, as quais precisavam ser infinitamente glosadas para expor a interpretação correta, segundo os ditames da religião. Tratava-se, no limite, de fazer com que o casal que surgia nos poemas fosse interpretado como a alma humana (ela) e Deus (ele).

Portanto é significativo e curioso que as edições póstumas das obras do frei Juan, publicadas na França, em 1621 e 1641, incluam já mapas da Subida ao Monte Carmelo, indicando as virtudes que a alma humana deve alcançar para chegar a Deus. Um mapa para o leitor se achar, enquanto talvez a experiência mística, como a experiência amorosa, seja primordialmente a de se perder.

O historiador francês Roger Chartier. Foto: Michael Wögerbauer/Divulgação

Em Mapas e Ficções, uma obra tão curta quanto ricamente ilustrada, o grande mérito de Chartier é o de mostrar não apenas os caminhos da imaginação narrativa de diversos escritores europeus, mas também o dos editores que, quando da publicação, inseriram nas obras os mapas, produzindo singulares tensões entre texto e imagem.

Ao plasmar cartograficamente as quimeras do texto, há uma opção na direção de modernizar o que é da ordem da escrita, racionalizá-la num diagrama. Porém, o mais intrigante é notar como o desejo fabulador triunfa, pois o tempo e o espaço da literatura sempre estão além ou aquém do mapa, transbordando-o.

Cervantes não errou. Os cartógrafos não erraram. Descobrir os caminhos de Gulliver, achar uma rota para a Utopia ou tentar cartografar um território interior são desejos legítimos e demasiado humanos. Não há erro. Erram sim aqueles que abandonam as potencialidades fabuladoras em nome da fantasia totalitária do fim da História.

Mapas e ficções

Séculos XVI a XVIII

  • Autor: Roger Chartier
  • Tradução: Pedro Paulo Pimenta
  • Editora Unesp (198 págs.; R$69,00)
Análise por Wilson Alves-Bezerra

Escritor, tradutor e professor do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal de São Carlos

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