Um dos principais escritores da segunda metade do século 20 e do início do 21, Philip Roth (que morreu em 2018) completaria 90 anos neste domingo, 19 de março. Newark, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, não era apenas a cidade natal do autor – era também, transformada em ficção, o frequente palco sobre o qual esse autor formulava e encenava diferentes interações humanas.
O território dispõe-se tão vívido e importante na obra de Roth que, dentro de seus livros, quase conseguimos divisar as ruas de um mapa da cidade – entrelaçadas com as linhas das páginas ou com as veias dos personagens (quem diria que aqueles personagens, construídos com tanta profundidade, não têm veias e órgãos e ossos?) que por ali caminham, conversam, discutem, trabalham, gracejam, copulam, enganam-se, odeiam, traem, sonham, fracassam, envelhecem, morrem.
Não poderia ser diferente: Newark preparou, para 2023, uma homenagem à altura de seu narrador de maior expressão. Com participação de Christian Lorentzen, Alexandra Marshall e Elisa Albert, por exemplo, na conferência Roth@90, organizada pela Philip Roth Society, além de Claudia Roth Pierpont, Morgan Spector e S. Epatha Merkerson no festival Philip Roth Unbound, e também com a apresentação da prévia de uma adaptação para o teatro, por John Turturro e Ariel Levy, do romance O Teatro de Sabbath.
Além do Philip Roth Bus Tours of Newark, o ônibus que percorre (com paradas) diversos pontos relacionados ao escritor (a casa em que ele nasceu, a escola em que estudou, etc.), existe um tour audioguiado pela sua biblioteca pessoal, a The Philip Roth Personal Library. Em vida, o autor de O Complexo de Portnoy doou cerca de sete mil livros para a Biblioteca Pública de Newark. Roth chegou a escolher a sala em que os livros ficariam expostos após sua morte.
Lá estão. E, entre muitos volumes de Bellow, Kundera, Faulkner, Chekhov, Camus, Joyce, Kafka, e ainda de conterrâneos contemporâneos como Don DeLillo, Paul Auster, Nathan Englander (todos, por sinal, estiveram em sua festa de aniversário de 80 anos, no Newark Museum) e Edna O’Brien (também presente na festa), há autores latino-americanos, Borges, García Márquez, Vargas Llosa, Carlos Fuentes, e três brasileiros.
Em traduções para o inglês: de Carmen L. Oliveira, Flores Raras e Banalíssimas (nenhuma publicação individual, entretanto, de Elizabeth Bishop); de Clarice Lispector, Paixão Segundo G.H. (somada à biografia de Clarice por Benjamin Moser); e, de Machado de Assis, duas edições iguais de Quincas Borba, em tradução de Clotilde Wilson, Dom Casmurro, em tradução de Helen Caldwell, e duas edições diferentes da tradução de William L. Grossman de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Brás Cubas
Dos autores brasileiros, somente a edição de 1985 de Brás Cubas foi marcada. Esparsos grifos. Logo na introdução, Roth sublinhou: “Privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião”; depois, junto a outros firmes traços de caneta preta, o início do sexto capítulo e a pergunta “Ainda visitando os defuntos?”.
Segundo Nadine Giron, bibliotecária responsável pela coleção, Roth anotava os livros que, enquanto foi professor, utilizava em sala de aula – sem deixar de marcar, porém, livros que eventualmente resenhava ou que lia por prazer. Para quem está habituado ao estilo de Roth, não é difícil vincular sua voz (da brutal segunda metade de sua obra, sobretudo) às frases de Machado sublinhadas; e não seria difícil imaginar em Pastoral Americana ou em Casei Com um Comunista algum personagem (daqueles com veias, órgãos e ossos) andando pelo palco ficcional de Newark e dizendo “a coisa é divertida, mas digere-me”.