Escritor captura o terror da vida sob um estado autoritário na China: ‘A dor ainda está crua’


Um livro de memórias de Tahir Hamut Izgil, um intelectual da minoria étnica uigur que fugiu da China, explora o efeito corrosivo da repressão e da vigilância em sua comunidade

Por Tiffany May

THE NEW YORK TIMES - Tahir Hamut Izgil viu os parques ficarem vazios, as padarias de naan fecharem as janelas com tábuas e, um depois do outro, os amigos serem levados embora.

A repressão do governo chinês aos uigures, a minoria étnica predominantemente muçulmana à qual ele pertencia, era velha de anos em Xinjiang, pátria ancestral do grupo no noroeste da China. Mas, em 2017, transformou-se em algo mais aterrorizante: um sistema de internamento em massa sob o qual centenas de milhares de pessoas estavam desaparecendo. Milhões viviam sob intensa e crescente vigilância.

Izgil, proeminente poeta e diretor de cinema, temia que um dia as autoridades viessem buscá-lo. Então fez o que poucos conseguiram: no verão de 2017, escapou com a família e, uma vez estabelecido nos subúrbios da Virgínia, escreveu sobre a experiência.

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Em seu livro de memórias, Waiting to Be Arrested at Night [algo como “Esperando para ser preso à noite”, em tradução livre], publicado na semana passada pela Penguin Press, Izgil traz seu olhar atento aos detalhes para descrever o impacto das políticas chinesas sobre as pessoas que vivem sob elas.

Capa de 'Waiting to Be Arrested at Night', livro de Tahir Hamut Izgil, publicado pela Penguin Press Foto: Penguin Press

Estudiosos e jornalistas já haviam detalhado a arquitetura do sistema de vigilância contra os uigures. Também houvera memórias de autores e intelectuais uigures no exílio. Mas poucos detêm o conhecimento de primeira mão e a acuidade analítica de Izgil, disse Darren Byler, importante estudioso da cultura uigur e da vigilância chinesa e professor da Simon Fraser University em British Columbia, Canadá.

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“É o relato definidor de como é viver este momento”, disse Byler. “E será o livro a que as pessoas irão recorrer daqui a dez ou vinte anos se quiserem compreender este momento”.

Numa época em que a perspectiva de viagens ao exterior estava se fechando para a maioria dos uigures, Izgil conseguiu garantir passaportes para a família depois de enfrentar meses de burocracia excruciante e explorar uma pequena brecha. Assim que saiu do país, escreveu as memórias rapidamente, disse ele, porque as lembranças ainda estavam vívidas e o trauma, recente. “Lágrimas rolavam enquanto eu escrevia”, disse. “A dor ainda está crua”.

Joshua Freeman, historiador e tradutor da poesia e das memórias de Izgil, disse que Izgil trouxe grandes nuances à sua narrativa.

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O livro, disse ele, revelou “os paradoxos e ambiguidades e escolhas impossíveis e tons de cinza que são encontrados tanto pelas pessoas esmagadas por esse sistema quanto pelas pessoas que fazem parte desse sistema”.

Joshua Freeman, à esquerda, historiador que traduziu um livro de memórias e poesia de Tahir Hamut Izgil, à direita, em Fairfax, Virgínia, em 27 de julho de 2023 Foto: Lexey Swall/The New York Times

De uma maneira que evoca Primo Levi e Elie Wiesel, Izgil fez intrincados estudos de caráter dos funcionários uigures de baixo escalão que aplicam as políticas da China.

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Entre eles estava Güljan, uma jovem que aspirava a se tornar funcionária pública, mas que, sem ter outras oportunidades, vigiava os residentes do complexo de apartamentos de Izgil por um salário irrisório. Izgil e a esposa a observavam com pena quando ela entrava e saía dos apartamentos das pessoas segurando uma pasta, mas sentiam um calafrio quando ela assumia o tom meticuloso dos burocratas comunistas. (Ele usou pseudônimos e alterou detalhes de identificação da maioria das personagens no esforço para protegê-las de represálias na China).

Havia também Ekber e Mijit, os dois policiais que vigiavam Izgil e seus amigos, insistindo repetidas vezes para que se encontrassem para refeições e bebidas e esperando que pagassem a conta.

No verão de 2017, a repressão piorou. Izgil recebeu notícias de sucessivos amigos sendo levados para campos de concentração, muitas vezes de pijama. Izgil começou a pendurar casacos pesados perto da porta depois que as filhas iam dormir, esperando horas pelo som das batidas. Queria estar preparado caso chegasse sua vez.

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“Se alguém batesse à porta no meio da noite, eu planejava vestir essas roupas quentes e sapatos de outono antes de atender”, escreveu ele nas memórias.

Manifestantes exibem cartazes de apoio à comunidade chinesa uigur em frente à Torre Eiffel, em Paris, em 8 de julho de 2009 Foto: GARETH WATKINS

A perspectiva de Izgil foi pelo menos em parte informada por sua criação em ambientes hiperpolíticos, disse ele. Nascido no auge da Revolução Cultural em um vilarejo perto da cidade de Kashgar, Izgil fez faculdade em Pequim e se jogou no ativismo quando o movimento pró-democracia liderado por estudantes decolou na Praça da Paz Celestial. Depois que o movimento foi debelado, ele começou a trabalhar como instrutor de língua uigur na Escola Central do Partido em Pequim, que educava futuros burocratas. A posição o sufocava e ele saiu pouco depois.

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Ele planejava estudar na Turquia, longe da censura chinesa, mas foi detido na fronteira em 1996. Já naquela época os uigures que deixavam o país eram vistos com desconfiança. Acusado de tentar contrabandear segredos de estado para fora do país, ele foi condenado a 18 meses de detenção e 18 meses de trabalhos forçados – uma experiência que, segundo ele, o ajudou a antecipar aspectos da repressão que estava por vir.

Em 2017, quando a repressão do estado ficou mais avançada com o auxílio da tecnologia digital, ele tentou subverter alguns dos mecanismos de controle: quando seu rosto foi digitalizado e sua voz gravada para integrar um banco de dados de DNA para rastreamento de ativistas, ele adotou uma enunciação clara de radialista, na tentativa de enganar as autoridades. Mas, depois, ele e sua esposa perceberam que estava na hora de encontrar um jeito de sair do país.

Tahir Hamut Izgil, autor do livro de memórias 'Waiting to Be Arrested at Night' Foto: Lexey Swall/The New York Times

Byler, antropólogo e autor de In the Camps e Terror Capitalism, que descrevem a vigilância e a detenção em massa de uigures na China, disse que Izgil tinha uma capacidade incrível de reconhecer os parâmetros e enfrentar um sistema altamente obscuro.

Notícias de familiares e amigos sendo presos e levados para campos de concentração encheram Izgil de tristeza e culpa. Durante meses, ele não conseguiu se livrar dos pesadelos nos quais era caçado. “Embora vivamos em segurança nos Estados Unidos, não posso dizer que nos libertamos”, disse ele.

Muitos leitores podem se sentir distantes das histórias contadas nas memórias, disse ele, vendo-as como o destino de pessoas que vivem em países autoritários. Mas ele aprendeu que não existe segurança absoluta, disse.

“O mundo é pequeno e os destinos das pessoas estão cada vez mais interligados”, afirmou. “Espero que os leitores não se esqueçam de que esses infortúnios podem chegar sem aviso.”

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Tahir Hamut Izgil viu os parques ficarem vazios, as padarias de naan fecharem as janelas com tábuas e, um depois do outro, os amigos serem levados embora.

A repressão do governo chinês aos uigures, a minoria étnica predominantemente muçulmana à qual ele pertencia, era velha de anos em Xinjiang, pátria ancestral do grupo no noroeste da China. Mas, em 2017, transformou-se em algo mais aterrorizante: um sistema de internamento em massa sob o qual centenas de milhares de pessoas estavam desaparecendo. Milhões viviam sob intensa e crescente vigilância.

Izgil, proeminente poeta e diretor de cinema, temia que um dia as autoridades viessem buscá-lo. Então fez o que poucos conseguiram: no verão de 2017, escapou com a família e, uma vez estabelecido nos subúrbios da Virgínia, escreveu sobre a experiência.

Em seu livro de memórias, Waiting to Be Arrested at Night [algo como “Esperando para ser preso à noite”, em tradução livre], publicado na semana passada pela Penguin Press, Izgil traz seu olhar atento aos detalhes para descrever o impacto das políticas chinesas sobre as pessoas que vivem sob elas.

Capa de 'Waiting to Be Arrested at Night', livro de Tahir Hamut Izgil, publicado pela Penguin Press Foto: Penguin Press

Estudiosos e jornalistas já haviam detalhado a arquitetura do sistema de vigilância contra os uigures. Também houvera memórias de autores e intelectuais uigures no exílio. Mas poucos detêm o conhecimento de primeira mão e a acuidade analítica de Izgil, disse Darren Byler, importante estudioso da cultura uigur e da vigilância chinesa e professor da Simon Fraser University em British Columbia, Canadá.

“É o relato definidor de como é viver este momento”, disse Byler. “E será o livro a que as pessoas irão recorrer daqui a dez ou vinte anos se quiserem compreender este momento”.

Numa época em que a perspectiva de viagens ao exterior estava se fechando para a maioria dos uigures, Izgil conseguiu garantir passaportes para a família depois de enfrentar meses de burocracia excruciante e explorar uma pequena brecha. Assim que saiu do país, escreveu as memórias rapidamente, disse ele, porque as lembranças ainda estavam vívidas e o trauma, recente. “Lágrimas rolavam enquanto eu escrevia”, disse. “A dor ainda está crua”.

Joshua Freeman, historiador e tradutor da poesia e das memórias de Izgil, disse que Izgil trouxe grandes nuances à sua narrativa.

O livro, disse ele, revelou “os paradoxos e ambiguidades e escolhas impossíveis e tons de cinza que são encontrados tanto pelas pessoas esmagadas por esse sistema quanto pelas pessoas que fazem parte desse sistema”.

Joshua Freeman, à esquerda, historiador que traduziu um livro de memórias e poesia de Tahir Hamut Izgil, à direita, em Fairfax, Virgínia, em 27 de julho de 2023 Foto: Lexey Swall/The New York Times

De uma maneira que evoca Primo Levi e Elie Wiesel, Izgil fez intrincados estudos de caráter dos funcionários uigures de baixo escalão que aplicam as políticas da China.

Entre eles estava Güljan, uma jovem que aspirava a se tornar funcionária pública, mas que, sem ter outras oportunidades, vigiava os residentes do complexo de apartamentos de Izgil por um salário irrisório. Izgil e a esposa a observavam com pena quando ela entrava e saía dos apartamentos das pessoas segurando uma pasta, mas sentiam um calafrio quando ela assumia o tom meticuloso dos burocratas comunistas. (Ele usou pseudônimos e alterou detalhes de identificação da maioria das personagens no esforço para protegê-las de represálias na China).

Havia também Ekber e Mijit, os dois policiais que vigiavam Izgil e seus amigos, insistindo repetidas vezes para que se encontrassem para refeições e bebidas e esperando que pagassem a conta.

No verão de 2017, a repressão piorou. Izgil recebeu notícias de sucessivos amigos sendo levados para campos de concentração, muitas vezes de pijama. Izgil começou a pendurar casacos pesados perto da porta depois que as filhas iam dormir, esperando horas pelo som das batidas. Queria estar preparado caso chegasse sua vez.

“Se alguém batesse à porta no meio da noite, eu planejava vestir essas roupas quentes e sapatos de outono antes de atender”, escreveu ele nas memórias.

Manifestantes exibem cartazes de apoio à comunidade chinesa uigur em frente à Torre Eiffel, em Paris, em 8 de julho de 2009 Foto: GARETH WATKINS

A perspectiva de Izgil foi pelo menos em parte informada por sua criação em ambientes hiperpolíticos, disse ele. Nascido no auge da Revolução Cultural em um vilarejo perto da cidade de Kashgar, Izgil fez faculdade em Pequim e se jogou no ativismo quando o movimento pró-democracia liderado por estudantes decolou na Praça da Paz Celestial. Depois que o movimento foi debelado, ele começou a trabalhar como instrutor de língua uigur na Escola Central do Partido em Pequim, que educava futuros burocratas. A posição o sufocava e ele saiu pouco depois.

Ele planejava estudar na Turquia, longe da censura chinesa, mas foi detido na fronteira em 1996. Já naquela época os uigures que deixavam o país eram vistos com desconfiança. Acusado de tentar contrabandear segredos de estado para fora do país, ele foi condenado a 18 meses de detenção e 18 meses de trabalhos forçados – uma experiência que, segundo ele, o ajudou a antecipar aspectos da repressão que estava por vir.

Em 2017, quando a repressão do estado ficou mais avançada com o auxílio da tecnologia digital, ele tentou subverter alguns dos mecanismos de controle: quando seu rosto foi digitalizado e sua voz gravada para integrar um banco de dados de DNA para rastreamento de ativistas, ele adotou uma enunciação clara de radialista, na tentativa de enganar as autoridades. Mas, depois, ele e sua esposa perceberam que estava na hora de encontrar um jeito de sair do país.

Tahir Hamut Izgil, autor do livro de memórias 'Waiting to Be Arrested at Night' Foto: Lexey Swall/The New York Times

Byler, antropólogo e autor de In the Camps e Terror Capitalism, que descrevem a vigilância e a detenção em massa de uigures na China, disse que Izgil tinha uma capacidade incrível de reconhecer os parâmetros e enfrentar um sistema altamente obscuro.

Notícias de familiares e amigos sendo presos e levados para campos de concentração encheram Izgil de tristeza e culpa. Durante meses, ele não conseguiu se livrar dos pesadelos nos quais era caçado. “Embora vivamos em segurança nos Estados Unidos, não posso dizer que nos libertamos”, disse ele.

Muitos leitores podem se sentir distantes das histórias contadas nas memórias, disse ele, vendo-as como o destino de pessoas que vivem em países autoritários. Mas ele aprendeu que não existe segurança absoluta, disse.

“O mundo é pequeno e os destinos das pessoas estão cada vez mais interligados”, afirmou. “Espero que os leitores não se esqueçam de que esses infortúnios podem chegar sem aviso.”

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Tahir Hamut Izgil viu os parques ficarem vazios, as padarias de naan fecharem as janelas com tábuas e, um depois do outro, os amigos serem levados embora.

A repressão do governo chinês aos uigures, a minoria étnica predominantemente muçulmana à qual ele pertencia, era velha de anos em Xinjiang, pátria ancestral do grupo no noroeste da China. Mas, em 2017, transformou-se em algo mais aterrorizante: um sistema de internamento em massa sob o qual centenas de milhares de pessoas estavam desaparecendo. Milhões viviam sob intensa e crescente vigilância.

Izgil, proeminente poeta e diretor de cinema, temia que um dia as autoridades viessem buscá-lo. Então fez o que poucos conseguiram: no verão de 2017, escapou com a família e, uma vez estabelecido nos subúrbios da Virgínia, escreveu sobre a experiência.

Em seu livro de memórias, Waiting to Be Arrested at Night [algo como “Esperando para ser preso à noite”, em tradução livre], publicado na semana passada pela Penguin Press, Izgil traz seu olhar atento aos detalhes para descrever o impacto das políticas chinesas sobre as pessoas que vivem sob elas.

Capa de 'Waiting to Be Arrested at Night', livro de Tahir Hamut Izgil, publicado pela Penguin Press Foto: Penguin Press

Estudiosos e jornalistas já haviam detalhado a arquitetura do sistema de vigilância contra os uigures. Também houvera memórias de autores e intelectuais uigures no exílio. Mas poucos detêm o conhecimento de primeira mão e a acuidade analítica de Izgil, disse Darren Byler, importante estudioso da cultura uigur e da vigilância chinesa e professor da Simon Fraser University em British Columbia, Canadá.

“É o relato definidor de como é viver este momento”, disse Byler. “E será o livro a que as pessoas irão recorrer daqui a dez ou vinte anos se quiserem compreender este momento”.

Numa época em que a perspectiva de viagens ao exterior estava se fechando para a maioria dos uigures, Izgil conseguiu garantir passaportes para a família depois de enfrentar meses de burocracia excruciante e explorar uma pequena brecha. Assim que saiu do país, escreveu as memórias rapidamente, disse ele, porque as lembranças ainda estavam vívidas e o trauma, recente. “Lágrimas rolavam enquanto eu escrevia”, disse. “A dor ainda está crua”.

Joshua Freeman, historiador e tradutor da poesia e das memórias de Izgil, disse que Izgil trouxe grandes nuances à sua narrativa.

O livro, disse ele, revelou “os paradoxos e ambiguidades e escolhas impossíveis e tons de cinza que são encontrados tanto pelas pessoas esmagadas por esse sistema quanto pelas pessoas que fazem parte desse sistema”.

Joshua Freeman, à esquerda, historiador que traduziu um livro de memórias e poesia de Tahir Hamut Izgil, à direita, em Fairfax, Virgínia, em 27 de julho de 2023 Foto: Lexey Swall/The New York Times

De uma maneira que evoca Primo Levi e Elie Wiesel, Izgil fez intrincados estudos de caráter dos funcionários uigures de baixo escalão que aplicam as políticas da China.

Entre eles estava Güljan, uma jovem que aspirava a se tornar funcionária pública, mas que, sem ter outras oportunidades, vigiava os residentes do complexo de apartamentos de Izgil por um salário irrisório. Izgil e a esposa a observavam com pena quando ela entrava e saía dos apartamentos das pessoas segurando uma pasta, mas sentiam um calafrio quando ela assumia o tom meticuloso dos burocratas comunistas. (Ele usou pseudônimos e alterou detalhes de identificação da maioria das personagens no esforço para protegê-las de represálias na China).

Havia também Ekber e Mijit, os dois policiais que vigiavam Izgil e seus amigos, insistindo repetidas vezes para que se encontrassem para refeições e bebidas e esperando que pagassem a conta.

No verão de 2017, a repressão piorou. Izgil recebeu notícias de sucessivos amigos sendo levados para campos de concentração, muitas vezes de pijama. Izgil começou a pendurar casacos pesados perto da porta depois que as filhas iam dormir, esperando horas pelo som das batidas. Queria estar preparado caso chegasse sua vez.

“Se alguém batesse à porta no meio da noite, eu planejava vestir essas roupas quentes e sapatos de outono antes de atender”, escreveu ele nas memórias.

Manifestantes exibem cartazes de apoio à comunidade chinesa uigur em frente à Torre Eiffel, em Paris, em 8 de julho de 2009 Foto: GARETH WATKINS

A perspectiva de Izgil foi pelo menos em parte informada por sua criação em ambientes hiperpolíticos, disse ele. Nascido no auge da Revolução Cultural em um vilarejo perto da cidade de Kashgar, Izgil fez faculdade em Pequim e se jogou no ativismo quando o movimento pró-democracia liderado por estudantes decolou na Praça da Paz Celestial. Depois que o movimento foi debelado, ele começou a trabalhar como instrutor de língua uigur na Escola Central do Partido em Pequim, que educava futuros burocratas. A posição o sufocava e ele saiu pouco depois.

Ele planejava estudar na Turquia, longe da censura chinesa, mas foi detido na fronteira em 1996. Já naquela época os uigures que deixavam o país eram vistos com desconfiança. Acusado de tentar contrabandear segredos de estado para fora do país, ele foi condenado a 18 meses de detenção e 18 meses de trabalhos forçados – uma experiência que, segundo ele, o ajudou a antecipar aspectos da repressão que estava por vir.

Em 2017, quando a repressão do estado ficou mais avançada com o auxílio da tecnologia digital, ele tentou subverter alguns dos mecanismos de controle: quando seu rosto foi digitalizado e sua voz gravada para integrar um banco de dados de DNA para rastreamento de ativistas, ele adotou uma enunciação clara de radialista, na tentativa de enganar as autoridades. Mas, depois, ele e sua esposa perceberam que estava na hora de encontrar um jeito de sair do país.

Tahir Hamut Izgil, autor do livro de memórias 'Waiting to Be Arrested at Night' Foto: Lexey Swall/The New York Times

Byler, antropólogo e autor de In the Camps e Terror Capitalism, que descrevem a vigilância e a detenção em massa de uigures na China, disse que Izgil tinha uma capacidade incrível de reconhecer os parâmetros e enfrentar um sistema altamente obscuro.

Notícias de familiares e amigos sendo presos e levados para campos de concentração encheram Izgil de tristeza e culpa. Durante meses, ele não conseguiu se livrar dos pesadelos nos quais era caçado. “Embora vivamos em segurança nos Estados Unidos, não posso dizer que nos libertamos”, disse ele.

Muitos leitores podem se sentir distantes das histórias contadas nas memórias, disse ele, vendo-as como o destino de pessoas que vivem em países autoritários. Mas ele aprendeu que não existe segurança absoluta, disse.

“O mundo é pequeno e os destinos das pessoas estão cada vez mais interligados”, afirmou. “Espero que os leitores não se esqueçam de que esses infortúnios podem chegar sem aviso.”

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Tahir Hamut Izgil viu os parques ficarem vazios, as padarias de naan fecharem as janelas com tábuas e, um depois do outro, os amigos serem levados embora.

A repressão do governo chinês aos uigures, a minoria étnica predominantemente muçulmana à qual ele pertencia, era velha de anos em Xinjiang, pátria ancestral do grupo no noroeste da China. Mas, em 2017, transformou-se em algo mais aterrorizante: um sistema de internamento em massa sob o qual centenas de milhares de pessoas estavam desaparecendo. Milhões viviam sob intensa e crescente vigilância.

Izgil, proeminente poeta e diretor de cinema, temia que um dia as autoridades viessem buscá-lo. Então fez o que poucos conseguiram: no verão de 2017, escapou com a família e, uma vez estabelecido nos subúrbios da Virgínia, escreveu sobre a experiência.

Em seu livro de memórias, Waiting to Be Arrested at Night [algo como “Esperando para ser preso à noite”, em tradução livre], publicado na semana passada pela Penguin Press, Izgil traz seu olhar atento aos detalhes para descrever o impacto das políticas chinesas sobre as pessoas que vivem sob elas.

Capa de 'Waiting to Be Arrested at Night', livro de Tahir Hamut Izgil, publicado pela Penguin Press Foto: Penguin Press

Estudiosos e jornalistas já haviam detalhado a arquitetura do sistema de vigilância contra os uigures. Também houvera memórias de autores e intelectuais uigures no exílio. Mas poucos detêm o conhecimento de primeira mão e a acuidade analítica de Izgil, disse Darren Byler, importante estudioso da cultura uigur e da vigilância chinesa e professor da Simon Fraser University em British Columbia, Canadá.

“É o relato definidor de como é viver este momento”, disse Byler. “E será o livro a que as pessoas irão recorrer daqui a dez ou vinte anos se quiserem compreender este momento”.

Numa época em que a perspectiva de viagens ao exterior estava se fechando para a maioria dos uigures, Izgil conseguiu garantir passaportes para a família depois de enfrentar meses de burocracia excruciante e explorar uma pequena brecha. Assim que saiu do país, escreveu as memórias rapidamente, disse ele, porque as lembranças ainda estavam vívidas e o trauma, recente. “Lágrimas rolavam enquanto eu escrevia”, disse. “A dor ainda está crua”.

Joshua Freeman, historiador e tradutor da poesia e das memórias de Izgil, disse que Izgil trouxe grandes nuances à sua narrativa.

O livro, disse ele, revelou “os paradoxos e ambiguidades e escolhas impossíveis e tons de cinza que são encontrados tanto pelas pessoas esmagadas por esse sistema quanto pelas pessoas que fazem parte desse sistema”.

Joshua Freeman, à esquerda, historiador que traduziu um livro de memórias e poesia de Tahir Hamut Izgil, à direita, em Fairfax, Virgínia, em 27 de julho de 2023 Foto: Lexey Swall/The New York Times

De uma maneira que evoca Primo Levi e Elie Wiesel, Izgil fez intrincados estudos de caráter dos funcionários uigures de baixo escalão que aplicam as políticas da China.

Entre eles estava Güljan, uma jovem que aspirava a se tornar funcionária pública, mas que, sem ter outras oportunidades, vigiava os residentes do complexo de apartamentos de Izgil por um salário irrisório. Izgil e a esposa a observavam com pena quando ela entrava e saía dos apartamentos das pessoas segurando uma pasta, mas sentiam um calafrio quando ela assumia o tom meticuloso dos burocratas comunistas. (Ele usou pseudônimos e alterou detalhes de identificação da maioria das personagens no esforço para protegê-las de represálias na China).

Havia também Ekber e Mijit, os dois policiais que vigiavam Izgil e seus amigos, insistindo repetidas vezes para que se encontrassem para refeições e bebidas e esperando que pagassem a conta.

No verão de 2017, a repressão piorou. Izgil recebeu notícias de sucessivos amigos sendo levados para campos de concentração, muitas vezes de pijama. Izgil começou a pendurar casacos pesados perto da porta depois que as filhas iam dormir, esperando horas pelo som das batidas. Queria estar preparado caso chegasse sua vez.

“Se alguém batesse à porta no meio da noite, eu planejava vestir essas roupas quentes e sapatos de outono antes de atender”, escreveu ele nas memórias.

Manifestantes exibem cartazes de apoio à comunidade chinesa uigur em frente à Torre Eiffel, em Paris, em 8 de julho de 2009 Foto: GARETH WATKINS

A perspectiva de Izgil foi pelo menos em parte informada por sua criação em ambientes hiperpolíticos, disse ele. Nascido no auge da Revolução Cultural em um vilarejo perto da cidade de Kashgar, Izgil fez faculdade em Pequim e se jogou no ativismo quando o movimento pró-democracia liderado por estudantes decolou na Praça da Paz Celestial. Depois que o movimento foi debelado, ele começou a trabalhar como instrutor de língua uigur na Escola Central do Partido em Pequim, que educava futuros burocratas. A posição o sufocava e ele saiu pouco depois.

Ele planejava estudar na Turquia, longe da censura chinesa, mas foi detido na fronteira em 1996. Já naquela época os uigures que deixavam o país eram vistos com desconfiança. Acusado de tentar contrabandear segredos de estado para fora do país, ele foi condenado a 18 meses de detenção e 18 meses de trabalhos forçados – uma experiência que, segundo ele, o ajudou a antecipar aspectos da repressão que estava por vir.

Em 2017, quando a repressão do estado ficou mais avançada com o auxílio da tecnologia digital, ele tentou subverter alguns dos mecanismos de controle: quando seu rosto foi digitalizado e sua voz gravada para integrar um banco de dados de DNA para rastreamento de ativistas, ele adotou uma enunciação clara de radialista, na tentativa de enganar as autoridades. Mas, depois, ele e sua esposa perceberam que estava na hora de encontrar um jeito de sair do país.

Tahir Hamut Izgil, autor do livro de memórias 'Waiting to Be Arrested at Night' Foto: Lexey Swall/The New York Times

Byler, antropólogo e autor de In the Camps e Terror Capitalism, que descrevem a vigilância e a detenção em massa de uigures na China, disse que Izgil tinha uma capacidade incrível de reconhecer os parâmetros e enfrentar um sistema altamente obscuro.

Notícias de familiares e amigos sendo presos e levados para campos de concentração encheram Izgil de tristeza e culpa. Durante meses, ele não conseguiu se livrar dos pesadelos nos quais era caçado. “Embora vivamos em segurança nos Estados Unidos, não posso dizer que nos libertamos”, disse ele.

Muitos leitores podem se sentir distantes das histórias contadas nas memórias, disse ele, vendo-as como o destino de pessoas que vivem em países autoritários. Mas ele aprendeu que não existe segurança absoluta, disse.

“O mundo é pequeno e os destinos das pessoas estão cada vez mais interligados”, afirmou. “Espero que os leitores não se esqueçam de que esses infortúnios podem chegar sem aviso.”

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

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