Por que violência e impunidade assolam o Brasil? Há saída? Livro busca respostas em crime bárbaro


Com o premiado ‘Era Apenas um Presente Para o Meu Irmão’, Bruno Ribeiro tenta compreender como uma violência como a Barbárie de Queimadas pode traumatizar para sempre uma cidade; leia trecho

Por Bruna Meneguetti
Atualização:

A Barbárie de Queimadas foi um crime que ocorreu em 2012 na cidade de mesmo nome, na Paraíba. Na época, Eduardo dos Santos Pereira resolveu organizar o aniversário do irmão, Luciano dos Santos Pereira, com um churrasco em sua casa e um estupro coletivo.

Na ocasião, ele convidou diversos outros homens e algumas mulheres, inclusive suas próprias companheiras. Elas não foram estupradas, mas cinco amigas dos irmãos sofreram violência sexual por parte deles e de outros homens presentes — duas delas não sobreviveram àquela noite. É sobre esse caso que se trata o livro Era Apenas um Presente Para o Meu Irmão, de Bruno Ribeiro (leia trecho abaixo, no fim da reportagem).

Este é o primeiro livro reportagem do autor, que já publicou livros de contos e romances, entre eles Porco de Raça, vencedor do Prêmio Machado DarkSide Books, em 2020.

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Ribeiro conta que lidar apenas com fatos reais foi trabalhoso: “O lado criativo está mais em como você vai organizar os parágrafos, a ordem dos capítulos e a apresentação dos personagens. Foi um desafio para mim não inventar algo pela primeira vez, criar só com o que eu tinha em mãos. Mas também foi muito interessante. A limitação pode ser muito motivadora e inspiradora para um escritor”.

Para além das dificuldades oferecidas por um novo formato de escrita, o autor também precisou de certa resistência para trabalhar com o tema de que o livro trata. “Lidar com assuntos tão violentos e botar no papel é muito difícil. Na ficção, estamos sempre inventando coisas, então fica mais diluído. Agora, lidar com a violência de verdade é bem mais pesado e isso também me afetou bastante.”

O escritor e roteirista Bruno Ribeiro ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção com livro reportagem sobre o estupro coletivo ocorrido em Queimadas, na Paraíba Foto: Marcinha Lima
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Ribeiro afirma que a ideia inicial de escrever sobre a Barbárie das Queimadas partiu de “uma tentativa de entender como um trauma e uma violência daquele porte poderia afetar para sempre uma cidade”. Porém, seu compromisso com o caso se assentou quando o autor ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção, que viabilizou a conclusão da obra.

“Decidi contar [sobre o crime] por achar que os traumas e as violências podem marcar para sempre um local, uma pessoa. Isso é algo que passa na minha ficção também: entender e analisar a violência, as origens dela, por que elas permanecem, quem está por trás. Tudo isso é algo que me atravessa enquanto escritor.”

O livro bebe de uma longa tradição de jornalismo literário, na qual é comum que crimes reais sejam relatos não apenas em uma esfera factual e fria dos acontecimentos, mas com uma estética narrativa mais trabalhada, como ocorre em uma obra de ficção, com uma única diferença: tudo o que está ali é baseado em fatos reais e em entrevistas.

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Nesse sentido, a obra faz referência ao livro A Sangue Frio, de Truman Capote, clássico do gênero. Porém, em vez de humanizar os criminosos, tal como o americano fez, Ribeiro segue para um outro caminho, estando mais interessado em investigar a estrutura da sociedade que permite que um crime como esse ocorra e quais as marcas que ele deixa em todos nós. Além de Capote, o autor menciona Garotas Mortas, de Selva Almada, 2666, de Roberto Bolaño, Hiroshima, de John Hersey, e o trabalho de Chico Felitti e Adriana Negreiros como inspirações para o seu livro.

Machismo, política e hostilidade

O que parece ser um crime de feminicídio, infelizmente tão comum em nosso país, esconde também raízes machistas e problemáticas na política local — um ponto em comum presente em tantas outras cidades brasileiras. Assim, Ribeiro teve que realizar sua investigação em um ambiente hostil e politicamente inflamado, ao mesmo tempo em que a pandemia ocorria, deixando milhares de mortos.

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“A apuração foi muito complexa, muito difícil. Falei com várias pessoas, porque Queimadas é uma cidade do lado de onde eu moro, que é Campina Grande, então muitas pessoas que eu conhecia tinham alguma familiaridade com o caso ou conheciam alguma das meninas, ou algum dos culpados e os familiares deles. Então, foi algo que atravessou a minha vida literalmente. O tempo inteiro eu me sentia invadindo a privacidade de 45 mil pessoas”.

Imagem aérea de Queimadas, na Paraíba, em 2020; em 2012, a cidade virou notícia quando um caso de estupro coletivo ocorrido lá chocou o País Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República

Anos depois do crime, Eduardo, a mente por trás da Barbárie, escapou da prisão e permanece foragido. Ribeiro mostra no livro como essa fuga pode ter sido facilitada por relações políticas que o criminoso mantinha na cidade e chega a indícios sobre seu atual paradeiro. “Queimadas é um lugar muito corrupto, de fato há um nível de poder que os políticos têm lá e que é acima da normalidade do Brasil”, afirma o autor.

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Era Apenas um Presente para o Meu Irmão vai além do relato de uma barbárie para revelar como esse episódio se relaciona com as entranhas de um país cujas contradições nunca se resolveram plenamente. “Tudo o que acontece em Queimadas acontece em todo lugar. A questão é que em cidades pequenas isso fica mais concentrado”, acredita Ribeiro. “Queimadas é uma metonímia das criminalidades e impunidades do Brasil.”

Leia o trecho inicial do livro

Cidade de Queimadas, Paraíba. A madrugada do dia 12 de fevereiro de 2012 caiu em um domingo. No sábado, Luciano dos Santos Pereira comemorava mais um ano de vida em um churrasco na sua casa, organizado por seu irmão, Eduardo dos Santos Pereira, que tinha em mente um presente inesquecível. Para realizá-lo, no entanto, Eduardo precisaria de muitos homens dispostos. Então convidou José Jardel Souza Araújo, Fábio Ferreira da Silva Júnior, Ewerton José da Silva, Luan Barbosa Cassimiro, Abraão César da Cunha, Fernando de França Silva Júnior, Diego Rêgo Domingues e Jacó de Sousa.

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Na noite do churrasco, quatro homens encapuzados invadiram a casa dos irmãos, apagaram as luzes, agrediram e amarraram os convidados no que pareceu um assalto. Cinco mulheres foram levadas para um quarto e violentadas. Exceto por Lilian Maria Martins da Silva e Sheila Barbosa Calafange, as respectivas companheiras de Eduardo e Luciano, todas as mulheres presentes foram submetidas à violência. O ataque fazia parte do plano arquitetado por Eduardo para “presentear” o irmão com um estupro coletivo. Os dois desejavam algumas daquelas mulheres, e a festa de aniversário seria a oportunidade ideal para obtê-las. Mas o plano não saiu como o esperado.

As convidadas Izabella Pajuçara Frazão Monteiro, professora, e Michelle Domingos da Silva, recepcionista, reconheceram Eduardo mesmo de capuz e, enquanto eram estupradas, imploravam ao amigo para parar. As súplicas levaram o organizador da festa a posteriormente executá-las a tiros. E não só. Além das duas, Eduardo, Luciano e oito homens, entre eles convidados, também estupraram mais três mulheres: Joelma Tavares Marinho, Lucivane Bernardino da Silva e Pabola das Neves Frazão Monteiro, conhecida como Pryscila, irmã de Izabella. Elas sobreviveram.

Outra irmã de Izabella e Pryscila, Isânia Petrúcia Frazão Monteiro, que não estava no aniversário de Luciano, relata, com o semblante duro, olhos grandes e despertos, a tragédia que sua família sofreu na madrugada de 12 de fevereiro de 2012, quando ocorreu o episódio conhecido nacionalmente como a Barbárie de Queimadas: “Muita gente na cidade não queria que a notícia vazasse, então começaram a se incomodar com a minha presença nos lugares, na mídia, nos jornais. Mas eu nunca iria me calar, jamais”. E até hoje, nem ela nem a irmã sobrevivente se calaram.

Uma cidade familiar

Queimadas não é uma terra de grandiosidades. Localizada no agreste paraibano, a 133 km da capital João Pessoa, a cidade fica em uma região marcada pela chegada do gado ao interior da Paraíba, no século XVIII, e por seu rico patrimônio cultural, riqueza de vegetação, sítios arqueológicos pré-históricos, edificações antigas e uma paisagem com céu azul estourado, muitas vezes sem nuvens. Há em Queimadas uma aparência pesada de cidade plana, sem construções altas. O horizonte limpo permite que seja vista de longe do alto das diversas pedras que a contornam, uma congregação de rochas que servem também de ponto turístico. Quem vem de Campina Grande, consegue ver as pedras em sua plenitude: grandes e pequenas, muitas desafiam a própria gravidade se equilibrando em morros pequenos, pedaços mínimos de terra. Das montanhas rochosas mais conhecidas há a Pedra do Touro, Pedra do Cachorro, Caverna da Loca, Itacoatiaras dos Macacos, entre ou- tras. Com uma média de 40 mil habitantes, sendo metade dela vivendo na área rural, Queimadas está em primeiro lugar no ranking de maior população rural do estado na frente das mais conhecidas zonas de Baixa Verde, Castanho de Baixo, Pedra do Sino, Malhada Grande, Olho d’Água, Zé Velho, Zumbi.

O vazio na área urbana da cidade, tão pequena, apertada, meio abandonada e insólita torna Queimadas uma paisagem curiosa. Talvez por ser tão diminuta, a área urbana da cidade parece estar dentro de um buraco. E a metáfora não é à toa, já que a cidade realmente fica dentro de um enorme buraco, rodeada de pedras, seca, verde escasso, natureza agreste.

É um local de passagem, uma cidade fronteiriça. A rodovia BR-104 corta a cidade inteira, permitindo que ela se desenvolva no seu entorno e seja ligada às inúmeras outras cidades circunvizinhas de Campina Grande e região. Os viajantes param para descansar nas pousadas à margem da BR e se refrescar em barzinhos. Na entrada da cidade já vemos os diversos caminhões estacionados, atraídos pelo pernoite mais barato que em Campina Grande; há veraneios, vans e kombis que fazem diariamente as viagens para cidades próximas. Moto-taxistas também encon- tram um canto de vigília até seguirem destino. Queimadas é transição: as pessoas fazem o que querem e vão embora.

Dentro do buraco, da rota, dos faróis de veraneios, do tumulto da entrada e por dentro do totem vertical e azul escrito Queimadas, passam-se as vidas na cidade das pedras, do trabalho e da superação.

Queimadas esconde muitos dos seus problemas, mas é um local com “potencialidades”, como afirmou o prefeito eleito em 2020, José Carlos de Sousa Rêgo, conhecido como Carlinhos. Sua família tem dominado a política local por muitas décadas, desde que o pai, Tião do Rêgo, assumiu a prefeitura local. (...)

Era Apenas um Presente para o Meu Irmão: A Barbárie de Queimadas

  • Autor: Bruno Ribeiro
  • Editora: Todavia (264 págs.; R$ 74,90; R$ 49,90 o e-book)

A Barbárie de Queimadas foi um crime que ocorreu em 2012 na cidade de mesmo nome, na Paraíba. Na época, Eduardo dos Santos Pereira resolveu organizar o aniversário do irmão, Luciano dos Santos Pereira, com um churrasco em sua casa e um estupro coletivo.

Na ocasião, ele convidou diversos outros homens e algumas mulheres, inclusive suas próprias companheiras. Elas não foram estupradas, mas cinco amigas dos irmãos sofreram violência sexual por parte deles e de outros homens presentes — duas delas não sobreviveram àquela noite. É sobre esse caso que se trata o livro Era Apenas um Presente Para o Meu Irmão, de Bruno Ribeiro (leia trecho abaixo, no fim da reportagem).

Este é o primeiro livro reportagem do autor, que já publicou livros de contos e romances, entre eles Porco de Raça, vencedor do Prêmio Machado DarkSide Books, em 2020.

Ribeiro conta que lidar apenas com fatos reais foi trabalhoso: “O lado criativo está mais em como você vai organizar os parágrafos, a ordem dos capítulos e a apresentação dos personagens. Foi um desafio para mim não inventar algo pela primeira vez, criar só com o que eu tinha em mãos. Mas também foi muito interessante. A limitação pode ser muito motivadora e inspiradora para um escritor”.

Para além das dificuldades oferecidas por um novo formato de escrita, o autor também precisou de certa resistência para trabalhar com o tema de que o livro trata. “Lidar com assuntos tão violentos e botar no papel é muito difícil. Na ficção, estamos sempre inventando coisas, então fica mais diluído. Agora, lidar com a violência de verdade é bem mais pesado e isso também me afetou bastante.”

O escritor e roteirista Bruno Ribeiro ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção com livro reportagem sobre o estupro coletivo ocorrido em Queimadas, na Paraíba Foto: Marcinha Lima

Ribeiro afirma que a ideia inicial de escrever sobre a Barbárie das Queimadas partiu de “uma tentativa de entender como um trauma e uma violência daquele porte poderia afetar para sempre uma cidade”. Porém, seu compromisso com o caso se assentou quando o autor ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção, que viabilizou a conclusão da obra.

“Decidi contar [sobre o crime] por achar que os traumas e as violências podem marcar para sempre um local, uma pessoa. Isso é algo que passa na minha ficção também: entender e analisar a violência, as origens dela, por que elas permanecem, quem está por trás. Tudo isso é algo que me atravessa enquanto escritor.”

O livro bebe de uma longa tradição de jornalismo literário, na qual é comum que crimes reais sejam relatos não apenas em uma esfera factual e fria dos acontecimentos, mas com uma estética narrativa mais trabalhada, como ocorre em uma obra de ficção, com uma única diferença: tudo o que está ali é baseado em fatos reais e em entrevistas.

Nesse sentido, a obra faz referência ao livro A Sangue Frio, de Truman Capote, clássico do gênero. Porém, em vez de humanizar os criminosos, tal como o americano fez, Ribeiro segue para um outro caminho, estando mais interessado em investigar a estrutura da sociedade que permite que um crime como esse ocorra e quais as marcas que ele deixa em todos nós. Além de Capote, o autor menciona Garotas Mortas, de Selva Almada, 2666, de Roberto Bolaño, Hiroshima, de John Hersey, e o trabalho de Chico Felitti e Adriana Negreiros como inspirações para o seu livro.

Machismo, política e hostilidade

O que parece ser um crime de feminicídio, infelizmente tão comum em nosso país, esconde também raízes machistas e problemáticas na política local — um ponto em comum presente em tantas outras cidades brasileiras. Assim, Ribeiro teve que realizar sua investigação em um ambiente hostil e politicamente inflamado, ao mesmo tempo em que a pandemia ocorria, deixando milhares de mortos.

“A apuração foi muito complexa, muito difícil. Falei com várias pessoas, porque Queimadas é uma cidade do lado de onde eu moro, que é Campina Grande, então muitas pessoas que eu conhecia tinham alguma familiaridade com o caso ou conheciam alguma das meninas, ou algum dos culpados e os familiares deles. Então, foi algo que atravessou a minha vida literalmente. O tempo inteiro eu me sentia invadindo a privacidade de 45 mil pessoas”.

Imagem aérea de Queimadas, na Paraíba, em 2020; em 2012, a cidade virou notícia quando um caso de estupro coletivo ocorrido lá chocou o País Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República

Anos depois do crime, Eduardo, a mente por trás da Barbárie, escapou da prisão e permanece foragido. Ribeiro mostra no livro como essa fuga pode ter sido facilitada por relações políticas que o criminoso mantinha na cidade e chega a indícios sobre seu atual paradeiro. “Queimadas é um lugar muito corrupto, de fato há um nível de poder que os políticos têm lá e que é acima da normalidade do Brasil”, afirma o autor.

Era Apenas um Presente para o Meu Irmão vai além do relato de uma barbárie para revelar como esse episódio se relaciona com as entranhas de um país cujas contradições nunca se resolveram plenamente. “Tudo o que acontece em Queimadas acontece em todo lugar. A questão é que em cidades pequenas isso fica mais concentrado”, acredita Ribeiro. “Queimadas é uma metonímia das criminalidades e impunidades do Brasil.”

Leia o trecho inicial do livro

Cidade de Queimadas, Paraíba. A madrugada do dia 12 de fevereiro de 2012 caiu em um domingo. No sábado, Luciano dos Santos Pereira comemorava mais um ano de vida em um churrasco na sua casa, organizado por seu irmão, Eduardo dos Santos Pereira, que tinha em mente um presente inesquecível. Para realizá-lo, no entanto, Eduardo precisaria de muitos homens dispostos. Então convidou José Jardel Souza Araújo, Fábio Ferreira da Silva Júnior, Ewerton José da Silva, Luan Barbosa Cassimiro, Abraão César da Cunha, Fernando de França Silva Júnior, Diego Rêgo Domingues e Jacó de Sousa.

Na noite do churrasco, quatro homens encapuzados invadiram a casa dos irmãos, apagaram as luzes, agrediram e amarraram os convidados no que pareceu um assalto. Cinco mulheres foram levadas para um quarto e violentadas. Exceto por Lilian Maria Martins da Silva e Sheila Barbosa Calafange, as respectivas companheiras de Eduardo e Luciano, todas as mulheres presentes foram submetidas à violência. O ataque fazia parte do plano arquitetado por Eduardo para “presentear” o irmão com um estupro coletivo. Os dois desejavam algumas daquelas mulheres, e a festa de aniversário seria a oportunidade ideal para obtê-las. Mas o plano não saiu como o esperado.

As convidadas Izabella Pajuçara Frazão Monteiro, professora, e Michelle Domingos da Silva, recepcionista, reconheceram Eduardo mesmo de capuz e, enquanto eram estupradas, imploravam ao amigo para parar. As súplicas levaram o organizador da festa a posteriormente executá-las a tiros. E não só. Além das duas, Eduardo, Luciano e oito homens, entre eles convidados, também estupraram mais três mulheres: Joelma Tavares Marinho, Lucivane Bernardino da Silva e Pabola das Neves Frazão Monteiro, conhecida como Pryscila, irmã de Izabella. Elas sobreviveram.

Outra irmã de Izabella e Pryscila, Isânia Petrúcia Frazão Monteiro, que não estava no aniversário de Luciano, relata, com o semblante duro, olhos grandes e despertos, a tragédia que sua família sofreu na madrugada de 12 de fevereiro de 2012, quando ocorreu o episódio conhecido nacionalmente como a Barbárie de Queimadas: “Muita gente na cidade não queria que a notícia vazasse, então começaram a se incomodar com a minha presença nos lugares, na mídia, nos jornais. Mas eu nunca iria me calar, jamais”. E até hoje, nem ela nem a irmã sobrevivente se calaram.

Uma cidade familiar

Queimadas não é uma terra de grandiosidades. Localizada no agreste paraibano, a 133 km da capital João Pessoa, a cidade fica em uma região marcada pela chegada do gado ao interior da Paraíba, no século XVIII, e por seu rico patrimônio cultural, riqueza de vegetação, sítios arqueológicos pré-históricos, edificações antigas e uma paisagem com céu azul estourado, muitas vezes sem nuvens. Há em Queimadas uma aparência pesada de cidade plana, sem construções altas. O horizonte limpo permite que seja vista de longe do alto das diversas pedras que a contornam, uma congregação de rochas que servem também de ponto turístico. Quem vem de Campina Grande, consegue ver as pedras em sua plenitude: grandes e pequenas, muitas desafiam a própria gravidade se equilibrando em morros pequenos, pedaços mínimos de terra. Das montanhas rochosas mais conhecidas há a Pedra do Touro, Pedra do Cachorro, Caverna da Loca, Itacoatiaras dos Macacos, entre ou- tras. Com uma média de 40 mil habitantes, sendo metade dela vivendo na área rural, Queimadas está em primeiro lugar no ranking de maior população rural do estado na frente das mais conhecidas zonas de Baixa Verde, Castanho de Baixo, Pedra do Sino, Malhada Grande, Olho d’Água, Zé Velho, Zumbi.

O vazio na área urbana da cidade, tão pequena, apertada, meio abandonada e insólita torna Queimadas uma paisagem curiosa. Talvez por ser tão diminuta, a área urbana da cidade parece estar dentro de um buraco. E a metáfora não é à toa, já que a cidade realmente fica dentro de um enorme buraco, rodeada de pedras, seca, verde escasso, natureza agreste.

É um local de passagem, uma cidade fronteiriça. A rodovia BR-104 corta a cidade inteira, permitindo que ela se desenvolva no seu entorno e seja ligada às inúmeras outras cidades circunvizinhas de Campina Grande e região. Os viajantes param para descansar nas pousadas à margem da BR e se refrescar em barzinhos. Na entrada da cidade já vemos os diversos caminhões estacionados, atraídos pelo pernoite mais barato que em Campina Grande; há veraneios, vans e kombis que fazem diariamente as viagens para cidades próximas. Moto-taxistas também encon- tram um canto de vigília até seguirem destino. Queimadas é transição: as pessoas fazem o que querem e vão embora.

Dentro do buraco, da rota, dos faróis de veraneios, do tumulto da entrada e por dentro do totem vertical e azul escrito Queimadas, passam-se as vidas na cidade das pedras, do trabalho e da superação.

Queimadas esconde muitos dos seus problemas, mas é um local com “potencialidades”, como afirmou o prefeito eleito em 2020, José Carlos de Sousa Rêgo, conhecido como Carlinhos. Sua família tem dominado a política local por muitas décadas, desde que o pai, Tião do Rêgo, assumiu a prefeitura local. (...)

Era Apenas um Presente para o Meu Irmão: A Barbárie de Queimadas

  • Autor: Bruno Ribeiro
  • Editora: Todavia (264 págs.; R$ 74,90; R$ 49,90 o e-book)

A Barbárie de Queimadas foi um crime que ocorreu em 2012 na cidade de mesmo nome, na Paraíba. Na época, Eduardo dos Santos Pereira resolveu organizar o aniversário do irmão, Luciano dos Santos Pereira, com um churrasco em sua casa e um estupro coletivo.

Na ocasião, ele convidou diversos outros homens e algumas mulheres, inclusive suas próprias companheiras. Elas não foram estupradas, mas cinco amigas dos irmãos sofreram violência sexual por parte deles e de outros homens presentes — duas delas não sobreviveram àquela noite. É sobre esse caso que se trata o livro Era Apenas um Presente Para o Meu Irmão, de Bruno Ribeiro (leia trecho abaixo, no fim da reportagem).

Este é o primeiro livro reportagem do autor, que já publicou livros de contos e romances, entre eles Porco de Raça, vencedor do Prêmio Machado DarkSide Books, em 2020.

Ribeiro conta que lidar apenas com fatos reais foi trabalhoso: “O lado criativo está mais em como você vai organizar os parágrafos, a ordem dos capítulos e a apresentação dos personagens. Foi um desafio para mim não inventar algo pela primeira vez, criar só com o que eu tinha em mãos. Mas também foi muito interessante. A limitação pode ser muito motivadora e inspiradora para um escritor”.

Para além das dificuldades oferecidas por um novo formato de escrita, o autor também precisou de certa resistência para trabalhar com o tema de que o livro trata. “Lidar com assuntos tão violentos e botar no papel é muito difícil. Na ficção, estamos sempre inventando coisas, então fica mais diluído. Agora, lidar com a violência de verdade é bem mais pesado e isso também me afetou bastante.”

O escritor e roteirista Bruno Ribeiro ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção com livro reportagem sobre o estupro coletivo ocorrido em Queimadas, na Paraíba Foto: Marcinha Lima

Ribeiro afirma que a ideia inicial de escrever sobre a Barbárie das Queimadas partiu de “uma tentativa de entender como um trauma e uma violência daquele porte poderia afetar para sempre uma cidade”. Porém, seu compromisso com o caso se assentou quando o autor ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção, que viabilizou a conclusão da obra.

“Decidi contar [sobre o crime] por achar que os traumas e as violências podem marcar para sempre um local, uma pessoa. Isso é algo que passa na minha ficção também: entender e analisar a violência, as origens dela, por que elas permanecem, quem está por trás. Tudo isso é algo que me atravessa enquanto escritor.”

O livro bebe de uma longa tradição de jornalismo literário, na qual é comum que crimes reais sejam relatos não apenas em uma esfera factual e fria dos acontecimentos, mas com uma estética narrativa mais trabalhada, como ocorre em uma obra de ficção, com uma única diferença: tudo o que está ali é baseado em fatos reais e em entrevistas.

Nesse sentido, a obra faz referência ao livro A Sangue Frio, de Truman Capote, clássico do gênero. Porém, em vez de humanizar os criminosos, tal como o americano fez, Ribeiro segue para um outro caminho, estando mais interessado em investigar a estrutura da sociedade que permite que um crime como esse ocorra e quais as marcas que ele deixa em todos nós. Além de Capote, o autor menciona Garotas Mortas, de Selva Almada, 2666, de Roberto Bolaño, Hiroshima, de John Hersey, e o trabalho de Chico Felitti e Adriana Negreiros como inspirações para o seu livro.

Machismo, política e hostilidade

O que parece ser um crime de feminicídio, infelizmente tão comum em nosso país, esconde também raízes machistas e problemáticas na política local — um ponto em comum presente em tantas outras cidades brasileiras. Assim, Ribeiro teve que realizar sua investigação em um ambiente hostil e politicamente inflamado, ao mesmo tempo em que a pandemia ocorria, deixando milhares de mortos.

“A apuração foi muito complexa, muito difícil. Falei com várias pessoas, porque Queimadas é uma cidade do lado de onde eu moro, que é Campina Grande, então muitas pessoas que eu conhecia tinham alguma familiaridade com o caso ou conheciam alguma das meninas, ou algum dos culpados e os familiares deles. Então, foi algo que atravessou a minha vida literalmente. O tempo inteiro eu me sentia invadindo a privacidade de 45 mil pessoas”.

Imagem aérea de Queimadas, na Paraíba, em 2020; em 2012, a cidade virou notícia quando um caso de estupro coletivo ocorrido lá chocou o País Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República

Anos depois do crime, Eduardo, a mente por trás da Barbárie, escapou da prisão e permanece foragido. Ribeiro mostra no livro como essa fuga pode ter sido facilitada por relações políticas que o criminoso mantinha na cidade e chega a indícios sobre seu atual paradeiro. “Queimadas é um lugar muito corrupto, de fato há um nível de poder que os políticos têm lá e que é acima da normalidade do Brasil”, afirma o autor.

Era Apenas um Presente para o Meu Irmão vai além do relato de uma barbárie para revelar como esse episódio se relaciona com as entranhas de um país cujas contradições nunca se resolveram plenamente. “Tudo o que acontece em Queimadas acontece em todo lugar. A questão é que em cidades pequenas isso fica mais concentrado”, acredita Ribeiro. “Queimadas é uma metonímia das criminalidades e impunidades do Brasil.”

Leia o trecho inicial do livro

Cidade de Queimadas, Paraíba. A madrugada do dia 12 de fevereiro de 2012 caiu em um domingo. No sábado, Luciano dos Santos Pereira comemorava mais um ano de vida em um churrasco na sua casa, organizado por seu irmão, Eduardo dos Santos Pereira, que tinha em mente um presente inesquecível. Para realizá-lo, no entanto, Eduardo precisaria de muitos homens dispostos. Então convidou José Jardel Souza Araújo, Fábio Ferreira da Silva Júnior, Ewerton José da Silva, Luan Barbosa Cassimiro, Abraão César da Cunha, Fernando de França Silva Júnior, Diego Rêgo Domingues e Jacó de Sousa.

Na noite do churrasco, quatro homens encapuzados invadiram a casa dos irmãos, apagaram as luzes, agrediram e amarraram os convidados no que pareceu um assalto. Cinco mulheres foram levadas para um quarto e violentadas. Exceto por Lilian Maria Martins da Silva e Sheila Barbosa Calafange, as respectivas companheiras de Eduardo e Luciano, todas as mulheres presentes foram submetidas à violência. O ataque fazia parte do plano arquitetado por Eduardo para “presentear” o irmão com um estupro coletivo. Os dois desejavam algumas daquelas mulheres, e a festa de aniversário seria a oportunidade ideal para obtê-las. Mas o plano não saiu como o esperado.

As convidadas Izabella Pajuçara Frazão Monteiro, professora, e Michelle Domingos da Silva, recepcionista, reconheceram Eduardo mesmo de capuz e, enquanto eram estupradas, imploravam ao amigo para parar. As súplicas levaram o organizador da festa a posteriormente executá-las a tiros. E não só. Além das duas, Eduardo, Luciano e oito homens, entre eles convidados, também estupraram mais três mulheres: Joelma Tavares Marinho, Lucivane Bernardino da Silva e Pabola das Neves Frazão Monteiro, conhecida como Pryscila, irmã de Izabella. Elas sobreviveram.

Outra irmã de Izabella e Pryscila, Isânia Petrúcia Frazão Monteiro, que não estava no aniversário de Luciano, relata, com o semblante duro, olhos grandes e despertos, a tragédia que sua família sofreu na madrugada de 12 de fevereiro de 2012, quando ocorreu o episódio conhecido nacionalmente como a Barbárie de Queimadas: “Muita gente na cidade não queria que a notícia vazasse, então começaram a se incomodar com a minha presença nos lugares, na mídia, nos jornais. Mas eu nunca iria me calar, jamais”. E até hoje, nem ela nem a irmã sobrevivente se calaram.

Uma cidade familiar

Queimadas não é uma terra de grandiosidades. Localizada no agreste paraibano, a 133 km da capital João Pessoa, a cidade fica em uma região marcada pela chegada do gado ao interior da Paraíba, no século XVIII, e por seu rico patrimônio cultural, riqueza de vegetação, sítios arqueológicos pré-históricos, edificações antigas e uma paisagem com céu azul estourado, muitas vezes sem nuvens. Há em Queimadas uma aparência pesada de cidade plana, sem construções altas. O horizonte limpo permite que seja vista de longe do alto das diversas pedras que a contornam, uma congregação de rochas que servem também de ponto turístico. Quem vem de Campina Grande, consegue ver as pedras em sua plenitude: grandes e pequenas, muitas desafiam a própria gravidade se equilibrando em morros pequenos, pedaços mínimos de terra. Das montanhas rochosas mais conhecidas há a Pedra do Touro, Pedra do Cachorro, Caverna da Loca, Itacoatiaras dos Macacos, entre ou- tras. Com uma média de 40 mil habitantes, sendo metade dela vivendo na área rural, Queimadas está em primeiro lugar no ranking de maior população rural do estado na frente das mais conhecidas zonas de Baixa Verde, Castanho de Baixo, Pedra do Sino, Malhada Grande, Olho d’Água, Zé Velho, Zumbi.

O vazio na área urbana da cidade, tão pequena, apertada, meio abandonada e insólita torna Queimadas uma paisagem curiosa. Talvez por ser tão diminuta, a área urbana da cidade parece estar dentro de um buraco. E a metáfora não é à toa, já que a cidade realmente fica dentro de um enorme buraco, rodeada de pedras, seca, verde escasso, natureza agreste.

É um local de passagem, uma cidade fronteiriça. A rodovia BR-104 corta a cidade inteira, permitindo que ela se desenvolva no seu entorno e seja ligada às inúmeras outras cidades circunvizinhas de Campina Grande e região. Os viajantes param para descansar nas pousadas à margem da BR e se refrescar em barzinhos. Na entrada da cidade já vemos os diversos caminhões estacionados, atraídos pelo pernoite mais barato que em Campina Grande; há veraneios, vans e kombis que fazem diariamente as viagens para cidades próximas. Moto-taxistas também encon- tram um canto de vigília até seguirem destino. Queimadas é transição: as pessoas fazem o que querem e vão embora.

Dentro do buraco, da rota, dos faróis de veraneios, do tumulto da entrada e por dentro do totem vertical e azul escrito Queimadas, passam-se as vidas na cidade das pedras, do trabalho e da superação.

Queimadas esconde muitos dos seus problemas, mas é um local com “potencialidades”, como afirmou o prefeito eleito em 2020, José Carlos de Sousa Rêgo, conhecido como Carlinhos. Sua família tem dominado a política local por muitas décadas, desde que o pai, Tião do Rêgo, assumiu a prefeitura local. (...)

Era Apenas um Presente para o Meu Irmão: A Barbárie de Queimadas

  • Autor: Bruno Ribeiro
  • Editora: Todavia (264 págs.; R$ 74,90; R$ 49,90 o e-book)

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