‘Precisamos lembrar que tudo vai acabar para podermos viver de verdade’, diz Natalia Timerman


Psiquiatra e escritora, ela lança ‘As Pequenas Chances’, autoficção sobre a morte de seu pai, a descoberta do judaísmo e a busca de suas raízes; escritora falou com o Estadão na Flip

Por Maria Fernanda Rodrigues
Entrevista comNatalia TimermanEscritora

PARATY - “Foram dias bonitos. A tristeza era avassaladora, devastadora: mas estávamos inteiros ali, todos nós”. A frase, da narradora de As Pequenas Chances, novo livro de Natalia Timerman, traduz o clima daqueles dias de espera - de espera pela morte. Natalia é a narradora, a personagem, a filha deste homem, um médico, que não se entrega ao câncer, que quer viver - mas vai morrer.

Natalia estudou Medicina, mas queria ser escritora. No segundo ano, chegou a fazer Letras também - mas largou. Quando os amigos já estavam se encaminhando para a residência médica, cogitou prestar de novo vestibular para Letras, e se encantou com a psiquiatria. A retomada do sonho começou quando ela fez o curso de formação de escritor no Instituto Vera Cruz. O trabalho final era um romance, e Copo Vazio (Todavia, 2021) conquistou muitos leitores. Seu novo livro, ela assume, é biográfico. E é ficção. Autoficção. E também ensaio. Foi escrito sob lágrimas, e pode fazer chorar o leitor que já viveu, está vivendo ou tem consciência de que um dia vai viver um luto.

As Pequenas Chances aborda os últimos dias de vida de seu pai, seu encontro com os o judaísmo que ela sempre renegou (e cujos rituais foram essenciais no processo de elaboração do luto) e sua busca pelas origens de sua família no leste europeu - algo que só passou a interessar-lhe quando ela percebeu que já não havia mais quem pudesse saber o que aconteceu. Não havia mais ninguém para contar.

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O livro é dividido em três partes. Ele começa com o encontro, no aeroporto, entre Natalia e o médico de cuidados paliativos que acompanhou seu pai. Há uma tensão pela chegada da sua irmã, que precisa atravessar o mundo para dar um último abraço no pai. Há uma road-trip familiar, e um ensaio sobre os possíveis motivos que fizeram seus ancestrais desembarcarem no Brasil.

Psiquiatra e escritora, Natalia Timerman é autora de Copo Vazio e As Pequenas Chances  Foto: Nathalia Bergocce

O leitor vai encontrar referências a outras obras, principalmente sobre luto, como Morreste-me, de José Luis Peixoto, e O Quarto Branco, de Gabriela Aguerre, vai entrever outras histórias, como O Arquivo das Crianças Perdidas, de Valeria Luiselli, e autores, como Lucia Berlin e, talvez, Ali Smith. “Não sofro com a angústia da influência”, explicou a escritora que, neste momento, está estudando Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard - ela, que se esconde; ele, que expõe a si a a sua família - e também escrevendo um livro sobre sua mãe. “Tenho dificuldade de inventar. Eu invento, mas preciso da realidade como um trampolim.”

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Natalia Timerman, 42 anos, mãe de duas crianças e autora também de Desterros - Historias de Um Hospital-Prisão, conversou com o Estadão em Paraty, num fim de tarde pós-tempestade. Ela foi uma das convidadas da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que se encerra neste domingo, 26. Leia a seguir trechos da conversa.

Por que a literatura? E que lugar ela ocupa na sua vida?

Eu sempre quis ser escritora. A medicina é que foi um desvio. Mas às vezes penso: por que fui inventar essa história de ser escritora? É muita demanda. Não dá para romantizar ser escritora e trabalhar - agora entendo a literatura como trabalho -, porque é quase uma maldição. Mais uma maldição: algo que preciso fazer, que me toma muito tempo, me faz sentir culpada e dividida o tempo todo. Mas sem isso parece falta uma coisa muito essencial. Preciso escrever. Enfim, minha vida é uma administração de culpas. E eu também gosto da psiquiatria. É um campo fascinante. E um acaba iluminando o outro. Escrevemos com tudo o que somos. Literatura e clínica, de psicoterapia e psiquiatria, têm relação no sentido de que ambas são hermenêuticas, têm algo interpretativo na escuta do outro e na literatura.

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O que você busca quando você escreve?

Escrevo porque preciso escrever. Mas tem um custo muito alto, como a superexposição. Depois que lanço um livro, me dá uma ressaca. Eu me viro do avesso. É algo muito íntimo que ofereço para o mundo.

Você classifica sua literatura como autoficção?

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Se fosse para dar um nome seria uma narrativa de filiação, um conceito que nem pegou muito no Brasil. Mas pode ser enquadrado como autoficção.

Como surgiu As Pequenas Chance?

No banho. Eu ganhei uma bolsa numa residência literária com um projeto que questionava a maternidade. E então meu pai morreu. Eu estava vivendo uma dor tão grande, e meus filhos eram muito importantes que eu não conseguia questioná-los nem na ficção. Então mudei o projeto inteiro. E o livro me veio num bloco assim. Eu tinha vivido muito de perto os últimos dias de vida do meu pai, mas não tinha anotado nada. Escrevi dois terços do livro três meses depois que ele morreu, durante sete ou oito dias nessa residência. Estava tudo muito fresco na memória. A terceira parte eu escrevi três anos depois. Eu tinha essa experiência muito real, importante e determinante na minha vida que era estar perto do meu pai quando ele morreu e precisei da ficção para sustentar essa história. É material muito autobiográfico sustentado por uma ficção.

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Você sabia qual seria o destino e fez o que estava ao seu alcance. Para não ficar com nenhum arrependimento?

Vivi completamente, e sem anotar nenhuma linha. Diferente da minha mãe, que agora está com Alzheimer. É um outro processo de luto e estou anotando tudo. Quando o meu pai estava morrendo, a gente sabia. Filmamos, ficamos perto, nos despedimos. Da minha mãe, não. Com ela foi gradualmente - mas como parece que vai demorar muito vamos perdendo esse tempo. Foi muito doloroso ter essa noção. Fui mostrar para o meu filho como era a minha mãe bem e percebi que não a tinha filmado - porque ela estava ali. Eu não a vi indo embora. Vi, mas ao mesmo tempo não vi. Eu vi as chamadas não atendidas dela, quando ela tentava me ligar e eu estava ocupada fazendo outra coisa e eu pensava ‘nossa, minha mãe de novo ligando’ e tudo o que o que eu queria agora é que minha mãe pudesse me ligar mil vezes por dia para me perguntar as coisas mais banais.

Ela aparece pouco em As Pequenas Chances.

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Alguém contou e ela aparece três vezes. Ela nomeia o livro. As Pequenas Chances vem numa frase com ela. Ela vai ter o livro dela. Esse é o livro que estou escrevendo agora.

E o luto? Como foi escrever sobre a morte do seu pai, reviver e recriar, ou criar uma coisa nova - um novo lugar para a pessoa?

No momento da escrita, foi muito intenso, doloroso e prazeroso ao mesmo tempo. E muito fluido; eu escrevi muito rápido. Eu estava com um material muito forte, incandescente. Aquela morte estava muito viva em mim. Na hora não pensamos em nada disso, mas, sim, foi um jeito de estar, de fixar o que aconteceu. O livro ficou três anos na gaveta. Quando eu fui reler, fiquei muito grata a mim mesma por ter escrito porque eu não lembrava muito daquelas coisas. Já tinha esquecido todos os detalhes. E pude ler meu livro como uma estranha, com o meu luto já num outro momento, com uma distância daquela pessoa que escreveu e podendo distinguir que dor era do livro e que dor era minha. Em alguns momentos essas dores coincidem, mas nem sempre.

E como foi o processo de escrever tão pouco tempo depois da morte do seu pai?

Eu escrevia chorando, e chorei muitas vezes. A escrita também é uma investigação. Descubro coisas escrevendo uma história.

O que descobriu sobre o luto?

Que ele é composto por algo que passa e por algo que não passa. É a junção dessas duas coisas. Mas a descoberta é o próprio livro.

Escrever te ajudou?

Ajudou e atrapalhou. Tudo fica muito em carne viva de novo. Quando o livro foi lançado, voltei a sonhar com meu pai, a ter o ímpeto de ligar para ele. Se eu queria distância daquela dor, atrapalhou. Mas talvez eu não quisesse totalmente distância da dor, porque a dor também é a presença.

E essa situação de envolver a família, meio Knausgard, como foi recebida?

Nem todos os nomes são verdadeiros. Eu me senti muito Knausgard tendo que mudar alguns nomes. Vou dar um exemplo da Martha, que é mais tranquilo de falar. Ela é uma personagem que adorou o livro, mas que me disse que tinha visto e vivido aquilo de um jeito muito diferente de mim. Essa é a minha versão da história, naquele momento. Ela escreveria outra coisa. E eu, passado o tempo, escreveria outro livro.

Por que o luto vai mudando?

Sim.

As pessoas devem procurar seu livro justamente por causa desse tema.

Talvez elas se decepcionem um pouco com os meus livros. Escrevo como uma escritora, porém sou chamada a falar como psiquiatra. Mas eu escrevo muito mais sobre o que eu não sei. A escrita é a partir de uma insuficiência, de uma vulnerabilidade, de algo que vou descobrindo. Algumas pessoas podem ler meus livros atrás de respostas, mas eu não acho que a literatura dê respostas. Talvez ela nomeie, consiga sustentar a complexidade das coisas e isso nem sempre é cômodo.

Você escreve sobre os rituais judaicos, sobre cada etapa que se segue à morte.

Foi impressionante e acolhedor o fato de que os rituais judaicos foram tão cruciais. E, ao mesmo tempo, eu me distraía da minha própria dor investigando esses rituais e tendo que fazê-los. Pela primeira vez eu me senti muito conectada com alguma religião e, com isso, digo uma conexão com os meus ancestrais, mais do que com Deus. Não sei se acredito em Deus. Às vezes sim, às vezes não.

Você acha que esse interesse pelo judaísmo foi porque ele te acolheu e amparou?

Sim, e também porque eu me senti interpelada a saber mais sobre a história da minha família, porque eu percebi que não tinha mais a quem perguntar.

Isso é angustiante.

Muito. Eu nunca vou saber o que meu pai e minha mãe sabiam. Perdi essa chance.

A literatura ajuda, de alguma forma, a viver com esses silêncios?

Talvez ela nos faça conseguir escutar esse silêncio.

O impulso é de ler o livro como uma não ficção, e, lendo assim, me parece que foi uma despedida muito bonita, pacífica. Quando alguém se vai, o que fica, muitas vezes, é um sentimento de culpa - por não ter dito ou por não ter resolvido alguma coisa, ou por não ter tentado mais resolver alguma situação. Com tudo o que viveu com seu pai e está vivendo com sua mãe, com o que aprendeu com o judaísmo, o que diria sobre esse processo?

A despedida foi muito bonita mesmo. Quando alguém muito próximo morre, por mais que seja uma morte prevista, é sempre uma interrupção. E sempre vamos ter a sensação de insuficiência, de que não foi o bastante, que faltou. Vamos nos sentir culpados porque a culpa é uma dívida com a gente mesmo. Sempre vai parecer que faltou alguma coisa, e de fato faltou. Nossa vida também é feita de faltas. Somos também o que não fizemos, o que não fomos. Também contamos nossas histórias a partir das nossas falhas. A morte escancara a verdade da nossa insuficiência com a gente mesmo e com as nossas relações. Só podemos estar em um lugar de cada vez e fazendo uma coisa em cada momento. Então, o fato de sermos mortais não quer dizer só que a vamos morrer. Quer dizer que somos o tempo todo essa insuficiência e, diante da morte de alguém, esse é o primeiro aprendizado. O outro é que a rotina é uma farsa de que precisamos. Vivemos como se não fosse acabar, e fazemos isso para conseguirmos viver; mas também precisamos lembrar - para conseguirmos viver de verdade.

Ter tido a chance de se despedir foi um privilégio.

Com certeza. Comecei a escrever antes da pandemia e terminei depois da pandemia e percebi mais ainda o quanto tinha sido um privilégio.

Se não tivesse escrito o livro, teria sido um luto diferente? Estaria em um outro lugar nessa relação com a morte do seu pai?

Talvez eu estivesse mais distante, talvez eu tivesse esquecido mais. Escrever o livro me fez ganhar e perder muita coisa. Ganhei esse registro, e perdi esse registro como algo só meu e como algo suscetível à mudança. Por mais que um livro seja poroso, ele é fixo, está escrito. Tem algo dessa experiência que está cristalizada agora, quase como quando a gente fazia álbum de fotografia e a lembrança da viagem passava a ser a lembrança das fotos. Tenho medo que a lembrança da morte seja a lembrança do que eu escrevi, e não mais da experiência. E como é um livro de ficção, tem coisa que inventei e me pego pensando: será que isso aconteceu?

PARATY - “Foram dias bonitos. A tristeza era avassaladora, devastadora: mas estávamos inteiros ali, todos nós”. A frase, da narradora de As Pequenas Chances, novo livro de Natalia Timerman, traduz o clima daqueles dias de espera - de espera pela morte. Natalia é a narradora, a personagem, a filha deste homem, um médico, que não se entrega ao câncer, que quer viver - mas vai morrer.

Natalia estudou Medicina, mas queria ser escritora. No segundo ano, chegou a fazer Letras também - mas largou. Quando os amigos já estavam se encaminhando para a residência médica, cogitou prestar de novo vestibular para Letras, e se encantou com a psiquiatria. A retomada do sonho começou quando ela fez o curso de formação de escritor no Instituto Vera Cruz. O trabalho final era um romance, e Copo Vazio (Todavia, 2021) conquistou muitos leitores. Seu novo livro, ela assume, é biográfico. E é ficção. Autoficção. E também ensaio. Foi escrito sob lágrimas, e pode fazer chorar o leitor que já viveu, está vivendo ou tem consciência de que um dia vai viver um luto.

As Pequenas Chances aborda os últimos dias de vida de seu pai, seu encontro com os o judaísmo que ela sempre renegou (e cujos rituais foram essenciais no processo de elaboração do luto) e sua busca pelas origens de sua família no leste europeu - algo que só passou a interessar-lhe quando ela percebeu que já não havia mais quem pudesse saber o que aconteceu. Não havia mais ninguém para contar.

O livro é dividido em três partes. Ele começa com o encontro, no aeroporto, entre Natalia e o médico de cuidados paliativos que acompanhou seu pai. Há uma tensão pela chegada da sua irmã, que precisa atravessar o mundo para dar um último abraço no pai. Há uma road-trip familiar, e um ensaio sobre os possíveis motivos que fizeram seus ancestrais desembarcarem no Brasil.

Psiquiatra e escritora, Natalia Timerman é autora de Copo Vazio e As Pequenas Chances  Foto: Nathalia Bergocce

O leitor vai encontrar referências a outras obras, principalmente sobre luto, como Morreste-me, de José Luis Peixoto, e O Quarto Branco, de Gabriela Aguerre, vai entrever outras histórias, como O Arquivo das Crianças Perdidas, de Valeria Luiselli, e autores, como Lucia Berlin e, talvez, Ali Smith. “Não sofro com a angústia da influência”, explicou a escritora que, neste momento, está estudando Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard - ela, que se esconde; ele, que expõe a si a a sua família - e também escrevendo um livro sobre sua mãe. “Tenho dificuldade de inventar. Eu invento, mas preciso da realidade como um trampolim.”

Natalia Timerman, 42 anos, mãe de duas crianças e autora também de Desterros - Historias de Um Hospital-Prisão, conversou com o Estadão em Paraty, num fim de tarde pós-tempestade. Ela foi uma das convidadas da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que se encerra neste domingo, 26. Leia a seguir trechos da conversa.

Por que a literatura? E que lugar ela ocupa na sua vida?

Eu sempre quis ser escritora. A medicina é que foi um desvio. Mas às vezes penso: por que fui inventar essa história de ser escritora? É muita demanda. Não dá para romantizar ser escritora e trabalhar - agora entendo a literatura como trabalho -, porque é quase uma maldição. Mais uma maldição: algo que preciso fazer, que me toma muito tempo, me faz sentir culpada e dividida o tempo todo. Mas sem isso parece falta uma coisa muito essencial. Preciso escrever. Enfim, minha vida é uma administração de culpas. E eu também gosto da psiquiatria. É um campo fascinante. E um acaba iluminando o outro. Escrevemos com tudo o que somos. Literatura e clínica, de psicoterapia e psiquiatria, têm relação no sentido de que ambas são hermenêuticas, têm algo interpretativo na escuta do outro e na literatura.

O que você busca quando você escreve?

Escrevo porque preciso escrever. Mas tem um custo muito alto, como a superexposição. Depois que lanço um livro, me dá uma ressaca. Eu me viro do avesso. É algo muito íntimo que ofereço para o mundo.

Você classifica sua literatura como autoficção?

Se fosse para dar um nome seria uma narrativa de filiação, um conceito que nem pegou muito no Brasil. Mas pode ser enquadrado como autoficção.

Como surgiu As Pequenas Chance?

No banho. Eu ganhei uma bolsa numa residência literária com um projeto que questionava a maternidade. E então meu pai morreu. Eu estava vivendo uma dor tão grande, e meus filhos eram muito importantes que eu não conseguia questioná-los nem na ficção. Então mudei o projeto inteiro. E o livro me veio num bloco assim. Eu tinha vivido muito de perto os últimos dias de vida do meu pai, mas não tinha anotado nada. Escrevi dois terços do livro três meses depois que ele morreu, durante sete ou oito dias nessa residência. Estava tudo muito fresco na memória. A terceira parte eu escrevi três anos depois. Eu tinha essa experiência muito real, importante e determinante na minha vida que era estar perto do meu pai quando ele morreu e precisei da ficção para sustentar essa história. É material muito autobiográfico sustentado por uma ficção.

Você sabia qual seria o destino e fez o que estava ao seu alcance. Para não ficar com nenhum arrependimento?

Vivi completamente, e sem anotar nenhuma linha. Diferente da minha mãe, que agora está com Alzheimer. É um outro processo de luto e estou anotando tudo. Quando o meu pai estava morrendo, a gente sabia. Filmamos, ficamos perto, nos despedimos. Da minha mãe, não. Com ela foi gradualmente - mas como parece que vai demorar muito vamos perdendo esse tempo. Foi muito doloroso ter essa noção. Fui mostrar para o meu filho como era a minha mãe bem e percebi que não a tinha filmado - porque ela estava ali. Eu não a vi indo embora. Vi, mas ao mesmo tempo não vi. Eu vi as chamadas não atendidas dela, quando ela tentava me ligar e eu estava ocupada fazendo outra coisa e eu pensava ‘nossa, minha mãe de novo ligando’ e tudo o que o que eu queria agora é que minha mãe pudesse me ligar mil vezes por dia para me perguntar as coisas mais banais.

Ela aparece pouco em As Pequenas Chances.

Alguém contou e ela aparece três vezes. Ela nomeia o livro. As Pequenas Chances vem numa frase com ela. Ela vai ter o livro dela. Esse é o livro que estou escrevendo agora.

E o luto? Como foi escrever sobre a morte do seu pai, reviver e recriar, ou criar uma coisa nova - um novo lugar para a pessoa?

No momento da escrita, foi muito intenso, doloroso e prazeroso ao mesmo tempo. E muito fluido; eu escrevi muito rápido. Eu estava com um material muito forte, incandescente. Aquela morte estava muito viva em mim. Na hora não pensamos em nada disso, mas, sim, foi um jeito de estar, de fixar o que aconteceu. O livro ficou três anos na gaveta. Quando eu fui reler, fiquei muito grata a mim mesma por ter escrito porque eu não lembrava muito daquelas coisas. Já tinha esquecido todos os detalhes. E pude ler meu livro como uma estranha, com o meu luto já num outro momento, com uma distância daquela pessoa que escreveu e podendo distinguir que dor era do livro e que dor era minha. Em alguns momentos essas dores coincidem, mas nem sempre.

E como foi o processo de escrever tão pouco tempo depois da morte do seu pai?

Eu escrevia chorando, e chorei muitas vezes. A escrita também é uma investigação. Descubro coisas escrevendo uma história.

O que descobriu sobre o luto?

Que ele é composto por algo que passa e por algo que não passa. É a junção dessas duas coisas. Mas a descoberta é o próprio livro.

Escrever te ajudou?

Ajudou e atrapalhou. Tudo fica muito em carne viva de novo. Quando o livro foi lançado, voltei a sonhar com meu pai, a ter o ímpeto de ligar para ele. Se eu queria distância daquela dor, atrapalhou. Mas talvez eu não quisesse totalmente distância da dor, porque a dor também é a presença.

E essa situação de envolver a família, meio Knausgard, como foi recebida?

Nem todos os nomes são verdadeiros. Eu me senti muito Knausgard tendo que mudar alguns nomes. Vou dar um exemplo da Martha, que é mais tranquilo de falar. Ela é uma personagem que adorou o livro, mas que me disse que tinha visto e vivido aquilo de um jeito muito diferente de mim. Essa é a minha versão da história, naquele momento. Ela escreveria outra coisa. E eu, passado o tempo, escreveria outro livro.

Por que o luto vai mudando?

Sim.

As pessoas devem procurar seu livro justamente por causa desse tema.

Talvez elas se decepcionem um pouco com os meus livros. Escrevo como uma escritora, porém sou chamada a falar como psiquiatra. Mas eu escrevo muito mais sobre o que eu não sei. A escrita é a partir de uma insuficiência, de uma vulnerabilidade, de algo que vou descobrindo. Algumas pessoas podem ler meus livros atrás de respostas, mas eu não acho que a literatura dê respostas. Talvez ela nomeie, consiga sustentar a complexidade das coisas e isso nem sempre é cômodo.

Você escreve sobre os rituais judaicos, sobre cada etapa que se segue à morte.

Foi impressionante e acolhedor o fato de que os rituais judaicos foram tão cruciais. E, ao mesmo tempo, eu me distraía da minha própria dor investigando esses rituais e tendo que fazê-los. Pela primeira vez eu me senti muito conectada com alguma religião e, com isso, digo uma conexão com os meus ancestrais, mais do que com Deus. Não sei se acredito em Deus. Às vezes sim, às vezes não.

Você acha que esse interesse pelo judaísmo foi porque ele te acolheu e amparou?

Sim, e também porque eu me senti interpelada a saber mais sobre a história da minha família, porque eu percebi que não tinha mais a quem perguntar.

Isso é angustiante.

Muito. Eu nunca vou saber o que meu pai e minha mãe sabiam. Perdi essa chance.

A literatura ajuda, de alguma forma, a viver com esses silêncios?

Talvez ela nos faça conseguir escutar esse silêncio.

O impulso é de ler o livro como uma não ficção, e, lendo assim, me parece que foi uma despedida muito bonita, pacífica. Quando alguém se vai, o que fica, muitas vezes, é um sentimento de culpa - por não ter dito ou por não ter resolvido alguma coisa, ou por não ter tentado mais resolver alguma situação. Com tudo o que viveu com seu pai e está vivendo com sua mãe, com o que aprendeu com o judaísmo, o que diria sobre esse processo?

A despedida foi muito bonita mesmo. Quando alguém muito próximo morre, por mais que seja uma morte prevista, é sempre uma interrupção. E sempre vamos ter a sensação de insuficiência, de que não foi o bastante, que faltou. Vamos nos sentir culpados porque a culpa é uma dívida com a gente mesmo. Sempre vai parecer que faltou alguma coisa, e de fato faltou. Nossa vida também é feita de faltas. Somos também o que não fizemos, o que não fomos. Também contamos nossas histórias a partir das nossas falhas. A morte escancara a verdade da nossa insuficiência com a gente mesmo e com as nossas relações. Só podemos estar em um lugar de cada vez e fazendo uma coisa em cada momento. Então, o fato de sermos mortais não quer dizer só que a vamos morrer. Quer dizer que somos o tempo todo essa insuficiência e, diante da morte de alguém, esse é o primeiro aprendizado. O outro é que a rotina é uma farsa de que precisamos. Vivemos como se não fosse acabar, e fazemos isso para conseguirmos viver; mas também precisamos lembrar - para conseguirmos viver de verdade.

Ter tido a chance de se despedir foi um privilégio.

Com certeza. Comecei a escrever antes da pandemia e terminei depois da pandemia e percebi mais ainda o quanto tinha sido um privilégio.

Se não tivesse escrito o livro, teria sido um luto diferente? Estaria em um outro lugar nessa relação com a morte do seu pai?

Talvez eu estivesse mais distante, talvez eu tivesse esquecido mais. Escrever o livro me fez ganhar e perder muita coisa. Ganhei esse registro, e perdi esse registro como algo só meu e como algo suscetível à mudança. Por mais que um livro seja poroso, ele é fixo, está escrito. Tem algo dessa experiência que está cristalizada agora, quase como quando a gente fazia álbum de fotografia e a lembrança da viagem passava a ser a lembrança das fotos. Tenho medo que a lembrança da morte seja a lembrança do que eu escrevi, e não mais da experiência. E como é um livro de ficção, tem coisa que inventei e me pego pensando: será que isso aconteceu?

PARATY - “Foram dias bonitos. A tristeza era avassaladora, devastadora: mas estávamos inteiros ali, todos nós”. A frase, da narradora de As Pequenas Chances, novo livro de Natalia Timerman, traduz o clima daqueles dias de espera - de espera pela morte. Natalia é a narradora, a personagem, a filha deste homem, um médico, que não se entrega ao câncer, que quer viver - mas vai morrer.

Natalia estudou Medicina, mas queria ser escritora. No segundo ano, chegou a fazer Letras também - mas largou. Quando os amigos já estavam se encaminhando para a residência médica, cogitou prestar de novo vestibular para Letras, e se encantou com a psiquiatria. A retomada do sonho começou quando ela fez o curso de formação de escritor no Instituto Vera Cruz. O trabalho final era um romance, e Copo Vazio (Todavia, 2021) conquistou muitos leitores. Seu novo livro, ela assume, é biográfico. E é ficção. Autoficção. E também ensaio. Foi escrito sob lágrimas, e pode fazer chorar o leitor que já viveu, está vivendo ou tem consciência de que um dia vai viver um luto.

As Pequenas Chances aborda os últimos dias de vida de seu pai, seu encontro com os o judaísmo que ela sempre renegou (e cujos rituais foram essenciais no processo de elaboração do luto) e sua busca pelas origens de sua família no leste europeu - algo que só passou a interessar-lhe quando ela percebeu que já não havia mais quem pudesse saber o que aconteceu. Não havia mais ninguém para contar.

O livro é dividido em três partes. Ele começa com o encontro, no aeroporto, entre Natalia e o médico de cuidados paliativos que acompanhou seu pai. Há uma tensão pela chegada da sua irmã, que precisa atravessar o mundo para dar um último abraço no pai. Há uma road-trip familiar, e um ensaio sobre os possíveis motivos que fizeram seus ancestrais desembarcarem no Brasil.

Psiquiatra e escritora, Natalia Timerman é autora de Copo Vazio e As Pequenas Chances  Foto: Nathalia Bergocce

O leitor vai encontrar referências a outras obras, principalmente sobre luto, como Morreste-me, de José Luis Peixoto, e O Quarto Branco, de Gabriela Aguerre, vai entrever outras histórias, como O Arquivo das Crianças Perdidas, de Valeria Luiselli, e autores, como Lucia Berlin e, talvez, Ali Smith. “Não sofro com a angústia da influência”, explicou a escritora que, neste momento, está estudando Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard - ela, que se esconde; ele, que expõe a si a a sua família - e também escrevendo um livro sobre sua mãe. “Tenho dificuldade de inventar. Eu invento, mas preciso da realidade como um trampolim.”

Natalia Timerman, 42 anos, mãe de duas crianças e autora também de Desterros - Historias de Um Hospital-Prisão, conversou com o Estadão em Paraty, num fim de tarde pós-tempestade. Ela foi uma das convidadas da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que se encerra neste domingo, 26. Leia a seguir trechos da conversa.

Por que a literatura? E que lugar ela ocupa na sua vida?

Eu sempre quis ser escritora. A medicina é que foi um desvio. Mas às vezes penso: por que fui inventar essa história de ser escritora? É muita demanda. Não dá para romantizar ser escritora e trabalhar - agora entendo a literatura como trabalho -, porque é quase uma maldição. Mais uma maldição: algo que preciso fazer, que me toma muito tempo, me faz sentir culpada e dividida o tempo todo. Mas sem isso parece falta uma coisa muito essencial. Preciso escrever. Enfim, minha vida é uma administração de culpas. E eu também gosto da psiquiatria. É um campo fascinante. E um acaba iluminando o outro. Escrevemos com tudo o que somos. Literatura e clínica, de psicoterapia e psiquiatria, têm relação no sentido de que ambas são hermenêuticas, têm algo interpretativo na escuta do outro e na literatura.

O que você busca quando você escreve?

Escrevo porque preciso escrever. Mas tem um custo muito alto, como a superexposição. Depois que lanço um livro, me dá uma ressaca. Eu me viro do avesso. É algo muito íntimo que ofereço para o mundo.

Você classifica sua literatura como autoficção?

Se fosse para dar um nome seria uma narrativa de filiação, um conceito que nem pegou muito no Brasil. Mas pode ser enquadrado como autoficção.

Como surgiu As Pequenas Chance?

No banho. Eu ganhei uma bolsa numa residência literária com um projeto que questionava a maternidade. E então meu pai morreu. Eu estava vivendo uma dor tão grande, e meus filhos eram muito importantes que eu não conseguia questioná-los nem na ficção. Então mudei o projeto inteiro. E o livro me veio num bloco assim. Eu tinha vivido muito de perto os últimos dias de vida do meu pai, mas não tinha anotado nada. Escrevi dois terços do livro três meses depois que ele morreu, durante sete ou oito dias nessa residência. Estava tudo muito fresco na memória. A terceira parte eu escrevi três anos depois. Eu tinha essa experiência muito real, importante e determinante na minha vida que era estar perto do meu pai quando ele morreu e precisei da ficção para sustentar essa história. É material muito autobiográfico sustentado por uma ficção.

Você sabia qual seria o destino e fez o que estava ao seu alcance. Para não ficar com nenhum arrependimento?

Vivi completamente, e sem anotar nenhuma linha. Diferente da minha mãe, que agora está com Alzheimer. É um outro processo de luto e estou anotando tudo. Quando o meu pai estava morrendo, a gente sabia. Filmamos, ficamos perto, nos despedimos. Da minha mãe, não. Com ela foi gradualmente - mas como parece que vai demorar muito vamos perdendo esse tempo. Foi muito doloroso ter essa noção. Fui mostrar para o meu filho como era a minha mãe bem e percebi que não a tinha filmado - porque ela estava ali. Eu não a vi indo embora. Vi, mas ao mesmo tempo não vi. Eu vi as chamadas não atendidas dela, quando ela tentava me ligar e eu estava ocupada fazendo outra coisa e eu pensava ‘nossa, minha mãe de novo ligando’ e tudo o que o que eu queria agora é que minha mãe pudesse me ligar mil vezes por dia para me perguntar as coisas mais banais.

Ela aparece pouco em As Pequenas Chances.

Alguém contou e ela aparece três vezes. Ela nomeia o livro. As Pequenas Chances vem numa frase com ela. Ela vai ter o livro dela. Esse é o livro que estou escrevendo agora.

E o luto? Como foi escrever sobre a morte do seu pai, reviver e recriar, ou criar uma coisa nova - um novo lugar para a pessoa?

No momento da escrita, foi muito intenso, doloroso e prazeroso ao mesmo tempo. E muito fluido; eu escrevi muito rápido. Eu estava com um material muito forte, incandescente. Aquela morte estava muito viva em mim. Na hora não pensamos em nada disso, mas, sim, foi um jeito de estar, de fixar o que aconteceu. O livro ficou três anos na gaveta. Quando eu fui reler, fiquei muito grata a mim mesma por ter escrito porque eu não lembrava muito daquelas coisas. Já tinha esquecido todos os detalhes. E pude ler meu livro como uma estranha, com o meu luto já num outro momento, com uma distância daquela pessoa que escreveu e podendo distinguir que dor era do livro e que dor era minha. Em alguns momentos essas dores coincidem, mas nem sempre.

E como foi o processo de escrever tão pouco tempo depois da morte do seu pai?

Eu escrevia chorando, e chorei muitas vezes. A escrita também é uma investigação. Descubro coisas escrevendo uma história.

O que descobriu sobre o luto?

Que ele é composto por algo que passa e por algo que não passa. É a junção dessas duas coisas. Mas a descoberta é o próprio livro.

Escrever te ajudou?

Ajudou e atrapalhou. Tudo fica muito em carne viva de novo. Quando o livro foi lançado, voltei a sonhar com meu pai, a ter o ímpeto de ligar para ele. Se eu queria distância daquela dor, atrapalhou. Mas talvez eu não quisesse totalmente distância da dor, porque a dor também é a presença.

E essa situação de envolver a família, meio Knausgard, como foi recebida?

Nem todos os nomes são verdadeiros. Eu me senti muito Knausgard tendo que mudar alguns nomes. Vou dar um exemplo da Martha, que é mais tranquilo de falar. Ela é uma personagem que adorou o livro, mas que me disse que tinha visto e vivido aquilo de um jeito muito diferente de mim. Essa é a minha versão da história, naquele momento. Ela escreveria outra coisa. E eu, passado o tempo, escreveria outro livro.

Por que o luto vai mudando?

Sim.

As pessoas devem procurar seu livro justamente por causa desse tema.

Talvez elas se decepcionem um pouco com os meus livros. Escrevo como uma escritora, porém sou chamada a falar como psiquiatra. Mas eu escrevo muito mais sobre o que eu não sei. A escrita é a partir de uma insuficiência, de uma vulnerabilidade, de algo que vou descobrindo. Algumas pessoas podem ler meus livros atrás de respostas, mas eu não acho que a literatura dê respostas. Talvez ela nomeie, consiga sustentar a complexidade das coisas e isso nem sempre é cômodo.

Você escreve sobre os rituais judaicos, sobre cada etapa que se segue à morte.

Foi impressionante e acolhedor o fato de que os rituais judaicos foram tão cruciais. E, ao mesmo tempo, eu me distraía da minha própria dor investigando esses rituais e tendo que fazê-los. Pela primeira vez eu me senti muito conectada com alguma religião e, com isso, digo uma conexão com os meus ancestrais, mais do que com Deus. Não sei se acredito em Deus. Às vezes sim, às vezes não.

Você acha que esse interesse pelo judaísmo foi porque ele te acolheu e amparou?

Sim, e também porque eu me senti interpelada a saber mais sobre a história da minha família, porque eu percebi que não tinha mais a quem perguntar.

Isso é angustiante.

Muito. Eu nunca vou saber o que meu pai e minha mãe sabiam. Perdi essa chance.

A literatura ajuda, de alguma forma, a viver com esses silêncios?

Talvez ela nos faça conseguir escutar esse silêncio.

O impulso é de ler o livro como uma não ficção, e, lendo assim, me parece que foi uma despedida muito bonita, pacífica. Quando alguém se vai, o que fica, muitas vezes, é um sentimento de culpa - por não ter dito ou por não ter resolvido alguma coisa, ou por não ter tentado mais resolver alguma situação. Com tudo o que viveu com seu pai e está vivendo com sua mãe, com o que aprendeu com o judaísmo, o que diria sobre esse processo?

A despedida foi muito bonita mesmo. Quando alguém muito próximo morre, por mais que seja uma morte prevista, é sempre uma interrupção. E sempre vamos ter a sensação de insuficiência, de que não foi o bastante, que faltou. Vamos nos sentir culpados porque a culpa é uma dívida com a gente mesmo. Sempre vai parecer que faltou alguma coisa, e de fato faltou. Nossa vida também é feita de faltas. Somos também o que não fizemos, o que não fomos. Também contamos nossas histórias a partir das nossas falhas. A morte escancara a verdade da nossa insuficiência com a gente mesmo e com as nossas relações. Só podemos estar em um lugar de cada vez e fazendo uma coisa em cada momento. Então, o fato de sermos mortais não quer dizer só que a vamos morrer. Quer dizer que somos o tempo todo essa insuficiência e, diante da morte de alguém, esse é o primeiro aprendizado. O outro é que a rotina é uma farsa de que precisamos. Vivemos como se não fosse acabar, e fazemos isso para conseguirmos viver; mas também precisamos lembrar - para conseguirmos viver de verdade.

Ter tido a chance de se despedir foi um privilégio.

Com certeza. Comecei a escrever antes da pandemia e terminei depois da pandemia e percebi mais ainda o quanto tinha sido um privilégio.

Se não tivesse escrito o livro, teria sido um luto diferente? Estaria em um outro lugar nessa relação com a morte do seu pai?

Talvez eu estivesse mais distante, talvez eu tivesse esquecido mais. Escrever o livro me fez ganhar e perder muita coisa. Ganhei esse registro, e perdi esse registro como algo só meu e como algo suscetível à mudança. Por mais que um livro seja poroso, ele é fixo, está escrito. Tem algo dessa experiência que está cristalizada agora, quase como quando a gente fazia álbum de fotografia e a lembrança da viagem passava a ser a lembrança das fotos. Tenho medo que a lembrança da morte seja a lembrança do que eu escrevi, e não mais da experiência. E como é um livro de ficção, tem coisa que inventei e me pego pensando: será que isso aconteceu?

PARATY - “Foram dias bonitos. A tristeza era avassaladora, devastadora: mas estávamos inteiros ali, todos nós”. A frase, da narradora de As Pequenas Chances, novo livro de Natalia Timerman, traduz o clima daqueles dias de espera - de espera pela morte. Natalia é a narradora, a personagem, a filha deste homem, um médico, que não se entrega ao câncer, que quer viver - mas vai morrer.

Natalia estudou Medicina, mas queria ser escritora. No segundo ano, chegou a fazer Letras também - mas largou. Quando os amigos já estavam se encaminhando para a residência médica, cogitou prestar de novo vestibular para Letras, e se encantou com a psiquiatria. A retomada do sonho começou quando ela fez o curso de formação de escritor no Instituto Vera Cruz. O trabalho final era um romance, e Copo Vazio (Todavia, 2021) conquistou muitos leitores. Seu novo livro, ela assume, é biográfico. E é ficção. Autoficção. E também ensaio. Foi escrito sob lágrimas, e pode fazer chorar o leitor que já viveu, está vivendo ou tem consciência de que um dia vai viver um luto.

As Pequenas Chances aborda os últimos dias de vida de seu pai, seu encontro com os o judaísmo que ela sempre renegou (e cujos rituais foram essenciais no processo de elaboração do luto) e sua busca pelas origens de sua família no leste europeu - algo que só passou a interessar-lhe quando ela percebeu que já não havia mais quem pudesse saber o que aconteceu. Não havia mais ninguém para contar.

O livro é dividido em três partes. Ele começa com o encontro, no aeroporto, entre Natalia e o médico de cuidados paliativos que acompanhou seu pai. Há uma tensão pela chegada da sua irmã, que precisa atravessar o mundo para dar um último abraço no pai. Há uma road-trip familiar, e um ensaio sobre os possíveis motivos que fizeram seus ancestrais desembarcarem no Brasil.

Psiquiatra e escritora, Natalia Timerman é autora de Copo Vazio e As Pequenas Chances  Foto: Nathalia Bergocce

O leitor vai encontrar referências a outras obras, principalmente sobre luto, como Morreste-me, de José Luis Peixoto, e O Quarto Branco, de Gabriela Aguerre, vai entrever outras histórias, como O Arquivo das Crianças Perdidas, de Valeria Luiselli, e autores, como Lucia Berlin e, talvez, Ali Smith. “Não sofro com a angústia da influência”, explicou a escritora que, neste momento, está estudando Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard - ela, que se esconde; ele, que expõe a si a a sua família - e também escrevendo um livro sobre sua mãe. “Tenho dificuldade de inventar. Eu invento, mas preciso da realidade como um trampolim.”

Natalia Timerman, 42 anos, mãe de duas crianças e autora também de Desterros - Historias de Um Hospital-Prisão, conversou com o Estadão em Paraty, num fim de tarde pós-tempestade. Ela foi uma das convidadas da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que se encerra neste domingo, 26. Leia a seguir trechos da conversa.

Por que a literatura? E que lugar ela ocupa na sua vida?

Eu sempre quis ser escritora. A medicina é que foi um desvio. Mas às vezes penso: por que fui inventar essa história de ser escritora? É muita demanda. Não dá para romantizar ser escritora e trabalhar - agora entendo a literatura como trabalho -, porque é quase uma maldição. Mais uma maldição: algo que preciso fazer, que me toma muito tempo, me faz sentir culpada e dividida o tempo todo. Mas sem isso parece falta uma coisa muito essencial. Preciso escrever. Enfim, minha vida é uma administração de culpas. E eu também gosto da psiquiatria. É um campo fascinante. E um acaba iluminando o outro. Escrevemos com tudo o que somos. Literatura e clínica, de psicoterapia e psiquiatria, têm relação no sentido de que ambas são hermenêuticas, têm algo interpretativo na escuta do outro e na literatura.

O que você busca quando você escreve?

Escrevo porque preciso escrever. Mas tem um custo muito alto, como a superexposição. Depois que lanço um livro, me dá uma ressaca. Eu me viro do avesso. É algo muito íntimo que ofereço para o mundo.

Você classifica sua literatura como autoficção?

Se fosse para dar um nome seria uma narrativa de filiação, um conceito que nem pegou muito no Brasil. Mas pode ser enquadrado como autoficção.

Como surgiu As Pequenas Chance?

No banho. Eu ganhei uma bolsa numa residência literária com um projeto que questionava a maternidade. E então meu pai morreu. Eu estava vivendo uma dor tão grande, e meus filhos eram muito importantes que eu não conseguia questioná-los nem na ficção. Então mudei o projeto inteiro. E o livro me veio num bloco assim. Eu tinha vivido muito de perto os últimos dias de vida do meu pai, mas não tinha anotado nada. Escrevi dois terços do livro três meses depois que ele morreu, durante sete ou oito dias nessa residência. Estava tudo muito fresco na memória. A terceira parte eu escrevi três anos depois. Eu tinha essa experiência muito real, importante e determinante na minha vida que era estar perto do meu pai quando ele morreu e precisei da ficção para sustentar essa história. É material muito autobiográfico sustentado por uma ficção.

Você sabia qual seria o destino e fez o que estava ao seu alcance. Para não ficar com nenhum arrependimento?

Vivi completamente, e sem anotar nenhuma linha. Diferente da minha mãe, que agora está com Alzheimer. É um outro processo de luto e estou anotando tudo. Quando o meu pai estava morrendo, a gente sabia. Filmamos, ficamos perto, nos despedimos. Da minha mãe, não. Com ela foi gradualmente - mas como parece que vai demorar muito vamos perdendo esse tempo. Foi muito doloroso ter essa noção. Fui mostrar para o meu filho como era a minha mãe bem e percebi que não a tinha filmado - porque ela estava ali. Eu não a vi indo embora. Vi, mas ao mesmo tempo não vi. Eu vi as chamadas não atendidas dela, quando ela tentava me ligar e eu estava ocupada fazendo outra coisa e eu pensava ‘nossa, minha mãe de novo ligando’ e tudo o que o que eu queria agora é que minha mãe pudesse me ligar mil vezes por dia para me perguntar as coisas mais banais.

Ela aparece pouco em As Pequenas Chances.

Alguém contou e ela aparece três vezes. Ela nomeia o livro. As Pequenas Chances vem numa frase com ela. Ela vai ter o livro dela. Esse é o livro que estou escrevendo agora.

E o luto? Como foi escrever sobre a morte do seu pai, reviver e recriar, ou criar uma coisa nova - um novo lugar para a pessoa?

No momento da escrita, foi muito intenso, doloroso e prazeroso ao mesmo tempo. E muito fluido; eu escrevi muito rápido. Eu estava com um material muito forte, incandescente. Aquela morte estava muito viva em mim. Na hora não pensamos em nada disso, mas, sim, foi um jeito de estar, de fixar o que aconteceu. O livro ficou três anos na gaveta. Quando eu fui reler, fiquei muito grata a mim mesma por ter escrito porque eu não lembrava muito daquelas coisas. Já tinha esquecido todos os detalhes. E pude ler meu livro como uma estranha, com o meu luto já num outro momento, com uma distância daquela pessoa que escreveu e podendo distinguir que dor era do livro e que dor era minha. Em alguns momentos essas dores coincidem, mas nem sempre.

E como foi o processo de escrever tão pouco tempo depois da morte do seu pai?

Eu escrevia chorando, e chorei muitas vezes. A escrita também é uma investigação. Descubro coisas escrevendo uma história.

O que descobriu sobre o luto?

Que ele é composto por algo que passa e por algo que não passa. É a junção dessas duas coisas. Mas a descoberta é o próprio livro.

Escrever te ajudou?

Ajudou e atrapalhou. Tudo fica muito em carne viva de novo. Quando o livro foi lançado, voltei a sonhar com meu pai, a ter o ímpeto de ligar para ele. Se eu queria distância daquela dor, atrapalhou. Mas talvez eu não quisesse totalmente distância da dor, porque a dor também é a presença.

E essa situação de envolver a família, meio Knausgard, como foi recebida?

Nem todos os nomes são verdadeiros. Eu me senti muito Knausgard tendo que mudar alguns nomes. Vou dar um exemplo da Martha, que é mais tranquilo de falar. Ela é uma personagem que adorou o livro, mas que me disse que tinha visto e vivido aquilo de um jeito muito diferente de mim. Essa é a minha versão da história, naquele momento. Ela escreveria outra coisa. E eu, passado o tempo, escreveria outro livro.

Por que o luto vai mudando?

Sim.

As pessoas devem procurar seu livro justamente por causa desse tema.

Talvez elas se decepcionem um pouco com os meus livros. Escrevo como uma escritora, porém sou chamada a falar como psiquiatra. Mas eu escrevo muito mais sobre o que eu não sei. A escrita é a partir de uma insuficiência, de uma vulnerabilidade, de algo que vou descobrindo. Algumas pessoas podem ler meus livros atrás de respostas, mas eu não acho que a literatura dê respostas. Talvez ela nomeie, consiga sustentar a complexidade das coisas e isso nem sempre é cômodo.

Você escreve sobre os rituais judaicos, sobre cada etapa que se segue à morte.

Foi impressionante e acolhedor o fato de que os rituais judaicos foram tão cruciais. E, ao mesmo tempo, eu me distraía da minha própria dor investigando esses rituais e tendo que fazê-los. Pela primeira vez eu me senti muito conectada com alguma religião e, com isso, digo uma conexão com os meus ancestrais, mais do que com Deus. Não sei se acredito em Deus. Às vezes sim, às vezes não.

Você acha que esse interesse pelo judaísmo foi porque ele te acolheu e amparou?

Sim, e também porque eu me senti interpelada a saber mais sobre a história da minha família, porque eu percebi que não tinha mais a quem perguntar.

Isso é angustiante.

Muito. Eu nunca vou saber o que meu pai e minha mãe sabiam. Perdi essa chance.

A literatura ajuda, de alguma forma, a viver com esses silêncios?

Talvez ela nos faça conseguir escutar esse silêncio.

O impulso é de ler o livro como uma não ficção, e, lendo assim, me parece que foi uma despedida muito bonita, pacífica. Quando alguém se vai, o que fica, muitas vezes, é um sentimento de culpa - por não ter dito ou por não ter resolvido alguma coisa, ou por não ter tentado mais resolver alguma situação. Com tudo o que viveu com seu pai e está vivendo com sua mãe, com o que aprendeu com o judaísmo, o que diria sobre esse processo?

A despedida foi muito bonita mesmo. Quando alguém muito próximo morre, por mais que seja uma morte prevista, é sempre uma interrupção. E sempre vamos ter a sensação de insuficiência, de que não foi o bastante, que faltou. Vamos nos sentir culpados porque a culpa é uma dívida com a gente mesmo. Sempre vai parecer que faltou alguma coisa, e de fato faltou. Nossa vida também é feita de faltas. Somos também o que não fizemos, o que não fomos. Também contamos nossas histórias a partir das nossas falhas. A morte escancara a verdade da nossa insuficiência com a gente mesmo e com as nossas relações. Só podemos estar em um lugar de cada vez e fazendo uma coisa em cada momento. Então, o fato de sermos mortais não quer dizer só que a vamos morrer. Quer dizer que somos o tempo todo essa insuficiência e, diante da morte de alguém, esse é o primeiro aprendizado. O outro é que a rotina é uma farsa de que precisamos. Vivemos como se não fosse acabar, e fazemos isso para conseguirmos viver; mas também precisamos lembrar - para conseguirmos viver de verdade.

Ter tido a chance de se despedir foi um privilégio.

Com certeza. Comecei a escrever antes da pandemia e terminei depois da pandemia e percebi mais ainda o quanto tinha sido um privilégio.

Se não tivesse escrito o livro, teria sido um luto diferente? Estaria em um outro lugar nessa relação com a morte do seu pai?

Talvez eu estivesse mais distante, talvez eu tivesse esquecido mais. Escrever o livro me fez ganhar e perder muita coisa. Ganhei esse registro, e perdi esse registro como algo só meu e como algo suscetível à mudança. Por mais que um livro seja poroso, ele é fixo, está escrito. Tem algo dessa experiência que está cristalizada agora, quase como quando a gente fazia álbum de fotografia e a lembrança da viagem passava a ser a lembrança das fotos. Tenho medo que a lembrança da morte seja a lembrança do que eu escrevi, e não mais da experiência. E como é um livro de ficção, tem coisa que inventei e me pego pensando: será que isso aconteceu?

Entrevista por Maria Fernanda Rodrigues

Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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