A Câmera Brasileira do Livro (CBL), responsável pela organização do Prêmio Jabuti, está estudando possíveis mudanças no regulamento da premiação e considera a criação de uma categoria exclusiva para obras feitas com a inteligência artificial (IA). O debate acontece após a polêmica envolvendo a indicação de um livro feito com IA para a categoria de melhor ilustração do ano.
A obra em questão é uma edição do clássico Frankenstein, de Mary Shelley, lançado pela editora Clube de Literatura Clássica em 2022. Nesta sexta-feira, 10, a CBL anunciou que o livro havia sido desclassificado. Ao Estadão, o designer responsável pela criação, Vicente Pessôa, chamou de “covardia” a decisão tomada pela organização.
A CBL ainda não sabe como vai tratar as obras feitas com o auxílio da IA em 2024, mas não descarta a criação de uma categoria exclusiva para livros feitos com a tecnologia, como sugerido por André Dahmer, um dos jurados da categoria ilustração, nas redes sociais.
“Estamos num momento de debate sobre esse tema. Várias opções estão em aberto. Uma seria permitir a inteligência artificial, outra seria criar prêmios específicos para quem faz uso dessa tecnologia”, disse Hubert Alquéres, curador da 65ª edição do Prêmio Jabuti, ao Estadão.
Hubert Alquéres
O curador explicou que o regulamento da premiação começa a ser feito com muita antecedência. “Na época, [que fizemos o regulamento de 2023], essa questão da inteligência artificial, principalmente a chamada IA generativa, que ajuda a criar, estava sendo muito pouco debatida. Então, na ocasião, isso ainda não existia como questão”, afirmou.
“Até o momento da divulgação do regulamento do próximo Jabuti, com certeza, o tema estará mais pacificado. Queremos fazer um debate amplo envolvendo autores, artistas, mundo jurídico e até mundo parlamentar”, completou.
Entenda o caso
A CBL anunciou nesta sexta-feira, 10, que a edição de Frankenstein lançado pela editora Clube de Literatura Clássica em 2022 seria desclassificada do Prêmio Jabuti.
“A Câmara Brasileira do Livro, organizadora do Prêmio Jabuti, informa que a obra Frankenstein, editada pelo Clube de Literatura Clássica, que utilizou ferramentas de inteligência artificial (IA), foi revista e desclassificada”, informou a nota da instituição. “As regras da premiação estabelecem que casos não previstos no Regulamento sejam deliberados pela Curadoria, e a avaliação de obras que utilizam IA em sua produção não estava contemplada nessas regras”.
A CBL ainda afirmou que casos como esse deverão ser debatidos para os próximos anos. “A utilização de ferramentas de inteligência artificial tem sido objeto de discussão em todo o mundo, em razão dos princípios de defesa dos direitos autorais. Considerando a nova realidade de avanços dessas novas tecnologias, a organização do prêmio esclarece que a utilização dessas novas ferramentas será objeto de discussão para as próximas edições da premiação”, finalizou a nota.
Ao Estadão, o designer responsável pela criação, Vicente Pessôa, criticou a decisão tomada pela CBL. “Eu acho muito estranho que a CBL não tenha especificado no edital que não poderia haver ilustrações feitas com IA”, disse.
“Em jogos, disputas, competições na esfera pública, se não é proibido, é permitido. Se eles desclassificaram agora, mudaram a regra no meio do jogo. E a organização está me punindo pelo seu próprio descuido, o que não é exatamente justo”, completou.
“Eles fizeram isso por medo da opinião pública. Isso para mim tem um nome: covardia”, reforçou. “Aconteça o que acontecer, já ganhei com essa edição.
Vicente Pessôa
Pessôa se refere à grande repercussão que a indicação teve nas redes sociais. Após a divulgação de que o livro estava entre os semifinalistas do Jabuti, o assunto rendeu muita conversa. “Estou achando legal demais. Gosto de polêmica, gosto de gente chorando, esperneando, rasgando as vestes. Divulga meu nome e o Clube. Eu só acho que os ilustradores que estão achando realmente ruim vão ficar para trás. O IA está aí e veio para ficar”, disse Pessôa, antes da desclassificação.
“A gente não falou, mas havíamos falado longamente na nossa divulgação no ano passado que esse era o primeiro livro da história do universo que foi inteiramente ilustrado por IA”, explicou o designer sobre a inscrição.
No lançamento da obra, a editora promoveu uma live do designer com Zé Lima, o gerente editorial do Clube. A transmissão ao vivo explicou o processo de desenvolvimento da capa e das ilustrações do livro.
Pessôa disse, ainda, que não via necessidade em informar o Jabuti sobre a criação com IA. “Seria a mesma coisa que informar que utilizei uma câmera fotográfica, utilizei photoshop, illustrator ou xilogravura. É um negocio meio estranho”.
A escolha dos indicados e dos vencedores da categoria ilustração é feita por três jurados especialistas na área: André Dahmer, Eduardo Baptistão e Lucia Mindlin Loeb. Nesta sexta-feira, Dahmer escreveu em seu Twitter (X) que não sabia que o livro havia usado a tecnologia, assim como declarou Baptistão.
“Quem atua como jurado sabe que isso iria acontecer em algum momento. Infelizmente, aconteceu cedo. Falo por mim, não sei o voto dos outros jurados. Evidente que eu não teria selecionado o livro se tivesse essa informação. As ilustrações me impressionaram pela qualidade, e havia uma unidade estética entre elas. Eu não tinha como saber que foram feitas por IA”, disse Eduardo.
Eduardo Baptistão
O jurado ainda explicou que “o regulamento diz que o autor responde pela originalidade, autenticidade e/ou autoria do material inscrito”. “Na minha opinião, a IA não se enquadra nesses critérios”. Ele lembrou, no entanto, que a decisão caberia à CBL.
Segundo Pessôa, as ilustrações do livro foram realizadas com o software Midjourney através de “prompts” - comandos dados por escrito à inteligência artificial. “Foram feitas mais de 1.200 imagens, das quais a gente aproveitou 50. Talvez fosse menos trabalhoso ilustrar na mão″, explica.
*Estagiária sob supervisão de Charlise Morais