Ao longo dos últimos dias, Mário de Andrade apareceu aqui e ali nas mesas de debate da Flip – e não apenas naquelas dedicadas a discutir os múltiplos aspectos do pensamento do autor homenageado este ano. Ontem, José Miguel Wisnik, professor de literatura, teve a missão de juntar os pedaços desse Mário escritor, modernista, pensador da cultura e do País, na conferência de encerramento da Flip. O público gostou e aplaudiu muito quando Wisnik resumiu o projeto de Mário e o conectou com o Brasil de hoje.
“Vamos ler, hoje, o projeto de Mário para a educação como sendo aquilo que nenhum partido tem assumido com vontade política suficiente e que resulta desta visão da conjunção do melhor e do pior do Brasil, que seria educação e cultura como luxo para todos. Este é o projeto subjacente que faria o Brasil renascer de si mesmo. Essa é a crença de alguém que acredita que somos um povo criador e que seria capaz de proezas civilizacionais incríveis se algum gênio do óbvio oculto tivesse a capacidade de juntar esses dois fios, educação e cultura, em vez que fazer tudo como agora para jogar a juventude pobre, negra e mestiça no esgoto das prisões”, disse.
Ele respondeu ao aplausos cantando os versos de Garoa do Meu São Paulo: “Um negro vem vindo, é branco! / Só bem perto fica negro / Passa e torna a ficar branco”. E, assim, encerrou sua fala e abriu espaço para a reprodução de trecho do áudio em que Mário de Andrade canta – primeiro registro da voz do autor de Macunaíma, divulgado recentemente e antecipado pelo Estado.
Antes disso tudo, porém, Wisnik deu uma aula sobre o intelectual e suas ambivalências. “Sua dualidade é questão fundamental. Mário viveu às voltas com as contradições dele mesmo e que são as contradições do Brasil.” O conferencista comentou que nem sempre é interessante relacionar obra e biografia de um escritor, mas que neste caso há um entrelaçamento e sua vida se torna uma espécie de testemunho. Segundo Wisnik, Mário, era membro de uma “família que guarda o segredo inconfessável do Brasil”. Neto de político e de filha de uma lavadeira, “Mário era mulato, feio. Como se tudo o que a família calava viesse à tona nele”, disso.
Wisnik falou sobre a relação entre ele e Oswald de Andrade – seus “chistes obscenos e agressivos” reproduzidos na Revista de Antropofagia: Miss Macunaíma, boneca de piche, etc. E comentou, claro, a recém-divulgada carta enviada por Mário a Manuel Bandeira, em que ele aborda a sua “tão falada (pelos outros) homossexualidade”.
“Ela foi esperada como fosse revelar a quem foi dedicado o poema Girassol da Madrugada, quem era aquele amor homoerótico que está tão bem expresso ali. No entanto, o que ela traz é um comentário sobre a vida sexual em tempos de misérias, onde a pessoa pode ser apenas um modelo sexual que já está formatado.”
O conferencista citou Lacan: “Ele diz que ninguém sabe a vida sexual de ninguém e o resto é fofoca. O sexo é esse impenetrável. É isso o que a carta está dizendo”. No texto, ressalta Wisnik, Mário fala muito sobre o ridículo de se fazer intrigas com relação a isso. “E quando escreve Poemas da Amiga também tentam adivinhar quem é ela. Ou seja, a fofoca não está apenas ligada à homossexualidade, mas à sexualidade”, completa..