Quem é Luiza Romão, a poeta que vai de ‘Ilíada’ ao futebol, está na lista da Forbes e da Flip 2023


Ela tem 31 anos, se formou nos slams, é autora de ‘Também Guardamos Pedras Aqui’, grande vencedor do Prêmio Jabuti, e está começando a ler a Bíblia para escrever sobre futebol; veja vídeo

Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Entrevista comLuiza RomãoPoeta

O susto que Luiza Romão levou ao ser anunciada como a grande vencedora do Prêmio Jabuti em 2022 não passou e ela ainda está aprendendo a lidar com toda a exposição. Luiza tem 31 anos, é poeta, e o livro que lhe rendeu fama nada menos é do que uma revisão da Ilíada, poema épico de Homero, do século IX, sobre a Guerra de Troia, a partir de uma leitura feminista e para os dias atuais. Mesmo assustada com tudo isso, ela curte o momento - e o prêmio de R$ 100 mil para Também Guardamos Pedras Aqui é só um detalhe perto de todo o resto.

O Jabuti foi em novembro. Depois Luiza figurou na lista Forbes Under 30, como uma das jovens que se destacaram em diversas áreas em 2022. Tem participado de eventos literários e, a partir de outubro, terá uma agenda internacional concorrida. A turnê começa na França, com o lançamento do livro pela Nossa Éditions e participação no Salão Feminista. De lá, ela segue para a Feira do Livro de Frankfurt, o mais importante encontro do mercado editorial do mundo. A viagem continua em Portugal - ao Festival Folio, em Óbidos.

De volta à América do Sul, lança Nadine (o livro posterior ao Também Guardamos Pedras Aqui) na Argentina em novembro e faz sua estreia no palco principal da Festa Literária Internacional de Paraty. Luiza Romão é a mais recente autora confirmada para o evento, que será entre os dias 22 e 26, e está feliz por isso acontecer justamente na Flip que vai homenagear Pagu. Lá, lança o audiolivro de sua obra premiada - narrado por ela mesma. Em dezembro, fechando o ciclo de um grande ano, ela parte para o México, para o lançamento do livro em espanhol e participação na Feira de Guadalajara.

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Luiza Romão é autora de Também Guardamos Pedras Aqui e Nadine, entre outros livros de poesia Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O começo

Também Guardamos Pedras Aqui (Nós) foi o terceiro livro que Luiza Romão publicou - antes vieram Coquetel Motolove (2014) e Sangria (2017), ambos pelo Selo Doburro, e depois, Nadine (2022), pela Quelônio.

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O primeiro livro, porém, que Luiza Romão escreveu, aos 10 anos, como uma brincadeira de criança, se chama Gotas de Poesia, tem um belo desenho na capa, dela mesma, edição artesanal e acabamento em pasta plástica com canaleta, daquelas de trabalho escolar, e é guardado na casa de seus pais em Ribeirão Preto junto com outras memórias dessa família de quatro irmãos artistas. Luiza e Caetano são poetas (aos 12, ela prefaciou o primeiro livro dele, que tinha 8). Chico é artista visual e a caçula Bethânia é fotógrafa.

Luiza é a mais velha. Seu nome foi emprestado da música que Tom Jobim fez como tema de Vera Fischer na novela Brilhante (1981). Sua primeira decepção infantil, ela conta. Preferia que tivesse sido por causa do Samba de Maria Luiza, tem uma energia mais a ver com a sua. E foi escolhido também por causa de Luiza Erundina, então prefeita de São Paulo. A ideia de homenagear os músicos que os pais admiravam veio a partir do Chico.

Luiza Romão brincava de escrever livros na infância e produziu Gotas de Poesia aos 9 anos Foto: Acervo pessoal/Luiza Romão
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“Nossos nomes são uma síntese da infância que tivemos e da forma como meus pais educaram a gente - uma educação pensada a partir da emancipação, da cultura, do encontro, do imaginário e do lúdico. Sempre li muito desde pequena, brincava de fazer cena, de colorir. Uma educação a la Paulo Freire”, ela resume em conversa com o Estadão, na Livraria da Tarde, em Pinheiros.

Filha de uma professora de redação que enveredou para a psicanálise depois de anos de sala de aula e de um professor de filosofia, Luiza nasceu em Ribeirão em 1992. Cresceu nesse ambiente, onde também era ensinado que a terra e a educação são direitos de todos, se envolveu com teatro amador e se mudou para São Paulo em 2010, para estudar Artes Cênicas na USP. Aqui, descobriu a poesia falada, participou de suas primeiras batalhas, escreveu. Foi estudar na Espanha, voltou.

Luiza Romão já vendeu 3 mil exemplares de Sangria, de mão em mão, e cerca de 4 mil de Também Guardamos Pedras Aqui, que já é lido até em escolas. Bons números, em se tratando de poesia. Nesta entrevista, ela revela as motivações para trazer a Ilíada para os dias atuais, critica o clássico fundador da literatura ocidental, fala de slams e do encontro com seu irmão na semifinal do Prêmio Oceanos e conta que seu próximo livro será sobre futebol. Confira trechos da conversa.

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Você escrevia poesia na infância, depois estuda teatro. Em que momento, já adulta, volta a escrever poesia?

No final da faculdade de Artes Cênicas, em 2013, eu conheci os slams, essas batalhas de poesia que surgiram em Chicago na década de 1980 e que têm um formato bem simples: as pessoas apresentam poemas autorais de até três minutos, sem figurino ou música. Só ela e o microfone, quando tem - porque no Brasil geralmente eles ocorrem em espaços públicos. Então eu caio meio que por acaso no Slam da Guilhermina e fico completamente apaixonada. Foi um arrebatamento completo. O slam tem algo de uma paixão próxima da paixão do futebol. Quando vi, eu estava batalhando também. Esse é outro outro ponto muito interessante dos movimentos de poesia falada: eles estimulam muito a escrever, a performar, a romper com essa dicotomia entre o espectador e artista. Fui a primeira mina a chegar na final do Slam BR e fui vice-campeã. Depois, a partir de 2016, o slam estoura, quase dobra o número de comunidades do País.

O que a poesia significa para você?

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Eu não sei o que ela significa. É um processo de significação constante e que vai se transformando ao longo do tempo. Comecei a escrever e, principalmente, a performar - porque a escrita, para mim, é quase que secundária ao momento de criação, e eu crio muito na fala - nessa primeira fase em que eu estava imersa nos saraus e slams. Em geral, eu decorava o poema e depois escrevia. Só para não esquecer. Isso mudou, embora eu sempre escreva falando. Eu preciso que a palavra caiba na minha boca.

Sua poesia tem voz, corpo, palavra e também tem um fio narrativo. Que história você quer contar e como busca fazer isso?

Por mais que eu esteja no campo da lírica, da lírica entre aspas, de um gênero que não necessariamente precisa contar uma história, sou apaixonada por histórias. E sou uma leitora voraz de prosa. Meus projetos de livro tentam dar conta de alguma narrativa.

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Poderia comentar esses projetos?

O Sangria, meu segundo livro, de 2017, que é bastante performativo e tem 28 poemas e 28 fotografias, lembra a estrutura de um calendário. Naquele momento eu estava interessada em investigar os ciclos do meu corpo e os ciclos políticos e econômicos do Brasil e tentando recontar um pouco essa história nacional desde uma perspectiva feministas - de como a cultura do estupro e a violência de gênero são algo que vão fundar essa ideia de nação. É um livro com uma visualidade muito forte, com fotografias de Sérgio Silva do meu corpo nu, e costurado com linha vermelha. Os poemas do Pedras compõem uma narrativa que perpassa cada um dos textos. E no Nadine, meu último, eu mergulho de fato em uma ideia de narrativa. São vários poemas de uma história detetivesca. Pouco a pouco a questão da narrativa vai ocupando mais espaço e estou assumindo que gosto muito disso.

Nos livros tem também uma revolta e a violência sempre aparece. O que te faz escrever?

Olhando para o Sangria, o Pedras e o Nadine vejo que são três livros que tentam responder ao horror. Tomei consciência disso recentemente. Eu tenho uma dificuldade muito grande de elaborar a experiência da violência. O poema-chave do Sangria fala do caso do estupro de uma garota por 33 caras. Um caso de violência extrema que aconteceu em 2016. Eu estava há muito tempo perseguindo esse poema, foram três ou quatro meses pensando essa coisa do Brasil - do pau Brasil, de um país que se nomeia a partir de uma mercadoria para exportação, e dessa experiência colonial que é uma experiência de estupro. Quando aconteceu esse caso, eu escrevi o poema numa madrugada porque meu corpo não estava dando conta de escutar essa notícia. Foi uma busca por tentar elaborar isso e revidar de alguma forma.

Já o Pedras também nasce de uma experiência de espanto. Eu estava lendo a Ilíada na virada de 2016 para 2017, durante uma viagem pelo interior da Bolívia, quando passei pela região onde o Che Guevara foi assassinado. O corpo dele ficou desaparecido por 30 anos. O canto final da Ilíada narra o momento em que o Príamo (rei de Troia) vai recuperar o corpo do Heitor. Uma cena muito densa, que me deixou emocionada. Por mais ódio que existia, eles devolveram o corpo de Heitor e você imagina o pai beijando as mãos do cara que matou seu filho, mas carregando de volta para casa o filho. Eu estava no lugar onde um corpo ficou 30 anos desaparecido. Se olharmos para a história da América Latina, é uma prática muito recorrente. Dos períodos coloniais, passando pelas ditaduras e que continua nos dias de hoje com as polícias militarizadas e as milícias - do México ao extremo sul da América do Sul. Aqui no Brasil são muitas as famílias que não têm direito aos corpos de seus mortos e a simbolizar essas mortes. Foi então a partir dessa experiência de espanto que nasce o Pedras, mas eu só vou conseguir escrever o livro em 2019.

Por que levar a Ilíada para as férias?

Eu gosto de carregar peso. (risos). Já tinha lido A Odisseia e muitas tragédias. Faltava a Ilíada. Eu gosto de narrativas longas. Amo ficar com uma mesma narrativa por meses. Sou apaixonada por Elena Ferrante, Octavia Butler, adoro histórias seriadas. E em viagem gosto de pegar um livro longo para fazer o percurso todo com ele. Pensei: por que não a Ilíada? (risos). Levei o exemplar do meu irmão Caetano, que fez Letras, e tinha todas as anotações dele. Foi um bom guia para me ajudar a entrar.

Para tem tem medo de encarar a Ilíada e poderia evitar seu livro por isso, o que diria em defesa dele?

A grande questão que eu coloco no Pedras é pensar por que esses clássicos são esses clássicos, quem define isso e por que o Ocidente escolhe uma obra tão violenta e sanguinária, a obra que é um relato de um massacre, como pedra fundamental de sua literatura. Se formos ler Ilíada, que seja com esse olhar muito afiado e com essas pedras na mão. Eu sabia que eu estava lidando com uma tradição muito inacessível e distante, mas pensando numa embocadura contemporânea. Muita gente disse que depois de ler o Pedras foi pesquisar as figuras. E tenho ido a escolas para discutir o livro com alunos do 7º ano, por exemplo. E rola. É muito massa. Querendo ou não a nossa cultura está muito fundamentada no referencial greco-latino. A mitologia grega, nem que seja por séries da Netflix ou da Disney, está no imaginário.

Poderia comentar o verso ‘a destruição é rápida, mas inferno é contínuo’?

O Pedras foi escrito no primeiro ano do governo Bolsonaro e é muito atravessado por essa destruição e barbárie que o País viveu. No poema Cassandra (leia abaixo), por exemplo, que foi o segundo que escrevi, depois de Homero, era a gente falando: ‘está podre, ainda assim eles palitam os dedos do pé'. Cassandra é uma pitonisa, tem uma história de que Apolo tenta se deitar com ela e ela recusa. Já tem uma questão de violência sexual. Então ele cospe nos lábios de Cassandra e fala ‘você vai profetizar, mas ninguém vai te entender e ninguém vai te acreditar’. Eu sinto que durante as eleições para presidência em 2018 éramos Cassandra, com dados, com relatórios do Ibama, etc, dizendo vai haver uma destruição e projeto de desmonte de tudo o que é política pública, de descaso com a vida e com o outro. E ainda assim esse programa foi eleito democraticamente. Ainda hoje estamos lidando com os destroços. Essa frase foi uma tentativa de falar desse momento histórico no qual o livro foi escrito.

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Formada nos slams, a poeta ganhou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano em 2022 com uma releitura política de 'Ilíada' para os dias atuais

Você fala, em algum momento, em ‘meninas que inventam epopeias’. O que diria para essas meninas?

Respondo com o verso que vem antes: ‘você nos inflou coragem’. Se eu posso dizer alguma coisa é: coragem. Se eu posso fazer algo é tentar insuflar coragem para desconstruir algumas epopeias e, talvez a partir das ruínas dessa grande tradição, inventar outras narrativas.

Como os slams e os saraus transformaram a poesia, abriram espaço para novas vozes e conquistaram um público leitor?

Tem algo sobre recuperar um aspecto coletivo da poesia. A poesia é por excelência um gênero que não dissocia palavra e voz, sentido e som. Quando falamos de voz, é sobre falar algo para alguém. Necessariamente implica o outro e a outra. Os movimentos de poesia, com toda a sua diversidade e multiplicidade que tem no Brasil, recuperam essa dimensão da poesia como encontro, como um ato coletivo, como corpo e voz.

Luiza Romão estudou teatro e começou a escrever poesia com mais frequência depois de conhecer os slams Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O que você lê?

De tudo, leio muito. Desde literatura policial - e Nadine é de certa forma uma homenagem crítica a esse gênero que sou fissurada, com todas as contradições possíveis. O gênero policial, em geral, é muito conservador - ele é um elogio à racionalidade. Geralmente tem um detetive, que é uma figura majoritariamente masculina, que vai resolver o mundo através da racionalidade, da conexão de pistas. Ele resolve o enigma e o mundo volta à normalidade. Um gênero que acaba reiterando vários estereótipos e termina em geral como elogio à polícia, essa instituição que salvou o mundo. A questão de gênero também é problemática. As mulheres só são representadas como cadáveres, e os feminicídios aparecem de uma forma muito desrespeitosa, sanguinolenta, espetacularizada. E sabemos que a resolução punitivista não resolve a questão da violência de gênero. Há, aí, uma contradição de forma e conteúdo que eu tento resolver no Nadine. Mas eu leio muita coisa, prosa, teoria, tudo, e agora estou apaixonada por diários. Comecei a ler os do Piglia e estou apaixonada. É um gênero íntimo e de certa forma você vê que outras pessoas já passaram pelas crises que eu passo como escritora. Você se irmana com os escritores.

O que seriam essas crises?

Dar conta dessa visibilidade toda.

De 2022 para cá? Como foi ganhar o Jabuti?

Sim. O prêmio foi uma surpresa total e eu não estava esperando esse reconhecimento agora. Não esperava ganhar nem na categoria poesia, quem diria em Livro do Ano. O principal do prêmio é que o livro está chegando em leitoras e leitores a quem provavelmente não chegaria. Principalmente em se tratando de poesia, que não tem tanta visibilidade. Chegar numa livraria e meu livro estar lá, receber a notícia de que alguma professora indicou meu livro... Meu público até então eram pessoas que tinham ido aos saraus e slams. Ter leitores e leitoras que eu não conheço é a principal coisa.

E como foi em casa?

Foi uma uma escalada de euforia porque primeiro eu fui indicada para o Oceanos com meu irmão Caetano, que estava lançando seu primeiro livro de poemas (Um Nome Inteiro Disposto a Montarias, 7Letras). Somos melhores amigos e ele é meu grande leitor crítico. Fomos semifinalistas juntos e foi uma grande festa em casa. E então veio a indicação para o Jabuti. O ápice foi ser semifinalista. Ali era onde o meu imaginário conseguia alcançar. Depois disso, nem nos meus maiores delírios.

Você publicou seus livros por editoras independentes. Foi procurada por casas maiores depois do prêmio? Pretende seguir com as menores?

Sim, fui procurada. Sou muito grata às editoras pequenas e de médio porte. É gente que está fazendo de fato a poesia ser publicada e circular nesse País. Sou muito grata a Simone Paulino e à Nós. Era uma coisa tão distante - ‘por que a Luiza quer falar de Troia, dos gregos, por que quer recuperar a Ilíada?’ - mas ela me abriu as portas, lançamos durante a pandemia, sem ter os espaços em que em geral eu circulo. Também sou grata à Quelônio, que tem feito um trabalho muito cuidadoso com os livros, e a Silvia Nastari, que assinou o projeto gráfico do Nadine. Enfim, sim, tive convites, mas meu próximo livro sai pela Nós.

O que será esse novo livro?

Os três anteriores são sobre o espanto, o horror e a violência. Esse é sobre a paixão. Vai ser sobre futebol. Eu escrevi um folhetim para o Sesc Pompeia, em seis episódios, que estão disponíveis online, e eu vou desenvolver mais para virar uma história. Mas para além da história, o que estou tentando entender é essa dimensão da paixão, e também da violência. A narrativa é a história de um menino que é assassinado durante uma briga quando está tentando entrar no estádio. É só a primeira ideia, não faço ideia do que vai virar. O que posso falar é que é sobre futebol, é sobre paixão e que eu estou começando a ler a Bíblia.

Por quê?

Sempre busco trabalhar com alguma tradição. Eu ainda estou entendendo, mas tem a ver com futebol, com paixão e também com uma certa dimensão do acontecimento, que talvez a gente possa chamar de milagre. Estou interessada nessa dimensão do inesperado no futebol, que é por que a gente ama no fim das contas.

Você ama?

Amo muito. Sou leonina com ascendente em áries e luz em sagitário. Sou fogo, fogo, fogo. Sou muito apaixonada pela vida.

Pelo futebol também?

Sim! Sou palmeirense apaixonada. Conheci o Abel Ferreira dias atrás e ainda estou flutuando.

Leia ‘Cassandra’

entenda sis anunciar a desgraça

não é o mesmo que remediá-la

primeiro você dirá está podre

depois com perícia

raspará da casca a polpa gosmenta

o chorume se espalha

há fungos pré-históricos

há fungos abençoados

está podre repetirá didática

eles continuarão a palitar os dedos do pé

talvez você chore talvez arranque

do púbis ao queixo todos os pelos

uma mulher carbonizada no meio da avenida

talvez mostre relatórios do ibama

a fotografia aérea de crianças vietnamitas

fatos antes incontestáveis

fatos antes never more

eles continuarão a palitar os dedos dos pés

talvez te chamem de louca ou naive

são incontáveis as formas

de rebaixar uma mulher

what? você tá falando grego

está podre seus seios em chama

ainda assim

eles se lambuzarão

O susto que Luiza Romão levou ao ser anunciada como a grande vencedora do Prêmio Jabuti em 2022 não passou e ela ainda está aprendendo a lidar com toda a exposição. Luiza tem 31 anos, é poeta, e o livro que lhe rendeu fama nada menos é do que uma revisão da Ilíada, poema épico de Homero, do século IX, sobre a Guerra de Troia, a partir de uma leitura feminista e para os dias atuais. Mesmo assustada com tudo isso, ela curte o momento - e o prêmio de R$ 100 mil para Também Guardamos Pedras Aqui é só um detalhe perto de todo o resto.

O Jabuti foi em novembro. Depois Luiza figurou na lista Forbes Under 30, como uma das jovens que se destacaram em diversas áreas em 2022. Tem participado de eventos literários e, a partir de outubro, terá uma agenda internacional concorrida. A turnê começa na França, com o lançamento do livro pela Nossa Éditions e participação no Salão Feminista. De lá, ela segue para a Feira do Livro de Frankfurt, o mais importante encontro do mercado editorial do mundo. A viagem continua em Portugal - ao Festival Folio, em Óbidos.

De volta à América do Sul, lança Nadine (o livro posterior ao Também Guardamos Pedras Aqui) na Argentina em novembro e faz sua estreia no palco principal da Festa Literária Internacional de Paraty. Luiza Romão é a mais recente autora confirmada para o evento, que será entre os dias 22 e 26, e está feliz por isso acontecer justamente na Flip que vai homenagear Pagu. Lá, lança o audiolivro de sua obra premiada - narrado por ela mesma. Em dezembro, fechando o ciclo de um grande ano, ela parte para o México, para o lançamento do livro em espanhol e participação na Feira de Guadalajara.

Luiza Romão é autora de Também Guardamos Pedras Aqui e Nadine, entre outros livros de poesia Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O começo

Também Guardamos Pedras Aqui (Nós) foi o terceiro livro que Luiza Romão publicou - antes vieram Coquetel Motolove (2014) e Sangria (2017), ambos pelo Selo Doburro, e depois, Nadine (2022), pela Quelônio.

O primeiro livro, porém, que Luiza Romão escreveu, aos 10 anos, como uma brincadeira de criança, se chama Gotas de Poesia, tem um belo desenho na capa, dela mesma, edição artesanal e acabamento em pasta plástica com canaleta, daquelas de trabalho escolar, e é guardado na casa de seus pais em Ribeirão Preto junto com outras memórias dessa família de quatro irmãos artistas. Luiza e Caetano são poetas (aos 12, ela prefaciou o primeiro livro dele, que tinha 8). Chico é artista visual e a caçula Bethânia é fotógrafa.

Luiza é a mais velha. Seu nome foi emprestado da música que Tom Jobim fez como tema de Vera Fischer na novela Brilhante (1981). Sua primeira decepção infantil, ela conta. Preferia que tivesse sido por causa do Samba de Maria Luiza, tem uma energia mais a ver com a sua. E foi escolhido também por causa de Luiza Erundina, então prefeita de São Paulo. A ideia de homenagear os músicos que os pais admiravam veio a partir do Chico.

Luiza Romão brincava de escrever livros na infância e produziu Gotas de Poesia aos 9 anos Foto: Acervo pessoal/Luiza Romão

“Nossos nomes são uma síntese da infância que tivemos e da forma como meus pais educaram a gente - uma educação pensada a partir da emancipação, da cultura, do encontro, do imaginário e do lúdico. Sempre li muito desde pequena, brincava de fazer cena, de colorir. Uma educação a la Paulo Freire”, ela resume em conversa com o Estadão, na Livraria da Tarde, em Pinheiros.

Filha de uma professora de redação que enveredou para a psicanálise depois de anos de sala de aula e de um professor de filosofia, Luiza nasceu em Ribeirão em 1992. Cresceu nesse ambiente, onde também era ensinado que a terra e a educação são direitos de todos, se envolveu com teatro amador e se mudou para São Paulo em 2010, para estudar Artes Cênicas na USP. Aqui, descobriu a poesia falada, participou de suas primeiras batalhas, escreveu. Foi estudar na Espanha, voltou.

Luiza Romão já vendeu 3 mil exemplares de Sangria, de mão em mão, e cerca de 4 mil de Também Guardamos Pedras Aqui, que já é lido até em escolas. Bons números, em se tratando de poesia. Nesta entrevista, ela revela as motivações para trazer a Ilíada para os dias atuais, critica o clássico fundador da literatura ocidental, fala de slams e do encontro com seu irmão na semifinal do Prêmio Oceanos e conta que seu próximo livro será sobre futebol. Confira trechos da conversa.

Você escrevia poesia na infância, depois estuda teatro. Em que momento, já adulta, volta a escrever poesia?

No final da faculdade de Artes Cênicas, em 2013, eu conheci os slams, essas batalhas de poesia que surgiram em Chicago na década de 1980 e que têm um formato bem simples: as pessoas apresentam poemas autorais de até três minutos, sem figurino ou música. Só ela e o microfone, quando tem - porque no Brasil geralmente eles ocorrem em espaços públicos. Então eu caio meio que por acaso no Slam da Guilhermina e fico completamente apaixonada. Foi um arrebatamento completo. O slam tem algo de uma paixão próxima da paixão do futebol. Quando vi, eu estava batalhando também. Esse é outro outro ponto muito interessante dos movimentos de poesia falada: eles estimulam muito a escrever, a performar, a romper com essa dicotomia entre o espectador e artista. Fui a primeira mina a chegar na final do Slam BR e fui vice-campeã. Depois, a partir de 2016, o slam estoura, quase dobra o número de comunidades do País.

O que a poesia significa para você?

Eu não sei o que ela significa. É um processo de significação constante e que vai se transformando ao longo do tempo. Comecei a escrever e, principalmente, a performar - porque a escrita, para mim, é quase que secundária ao momento de criação, e eu crio muito na fala - nessa primeira fase em que eu estava imersa nos saraus e slams. Em geral, eu decorava o poema e depois escrevia. Só para não esquecer. Isso mudou, embora eu sempre escreva falando. Eu preciso que a palavra caiba na minha boca.

Sua poesia tem voz, corpo, palavra e também tem um fio narrativo. Que história você quer contar e como busca fazer isso?

Por mais que eu esteja no campo da lírica, da lírica entre aspas, de um gênero que não necessariamente precisa contar uma história, sou apaixonada por histórias. E sou uma leitora voraz de prosa. Meus projetos de livro tentam dar conta de alguma narrativa.

Poderia comentar esses projetos?

O Sangria, meu segundo livro, de 2017, que é bastante performativo e tem 28 poemas e 28 fotografias, lembra a estrutura de um calendário. Naquele momento eu estava interessada em investigar os ciclos do meu corpo e os ciclos políticos e econômicos do Brasil e tentando recontar um pouco essa história nacional desde uma perspectiva feministas - de como a cultura do estupro e a violência de gênero são algo que vão fundar essa ideia de nação. É um livro com uma visualidade muito forte, com fotografias de Sérgio Silva do meu corpo nu, e costurado com linha vermelha. Os poemas do Pedras compõem uma narrativa que perpassa cada um dos textos. E no Nadine, meu último, eu mergulho de fato em uma ideia de narrativa. São vários poemas de uma história detetivesca. Pouco a pouco a questão da narrativa vai ocupando mais espaço e estou assumindo que gosto muito disso.

Nos livros tem também uma revolta e a violência sempre aparece. O que te faz escrever?

Olhando para o Sangria, o Pedras e o Nadine vejo que são três livros que tentam responder ao horror. Tomei consciência disso recentemente. Eu tenho uma dificuldade muito grande de elaborar a experiência da violência. O poema-chave do Sangria fala do caso do estupro de uma garota por 33 caras. Um caso de violência extrema que aconteceu em 2016. Eu estava há muito tempo perseguindo esse poema, foram três ou quatro meses pensando essa coisa do Brasil - do pau Brasil, de um país que se nomeia a partir de uma mercadoria para exportação, e dessa experiência colonial que é uma experiência de estupro. Quando aconteceu esse caso, eu escrevi o poema numa madrugada porque meu corpo não estava dando conta de escutar essa notícia. Foi uma busca por tentar elaborar isso e revidar de alguma forma.

Já o Pedras também nasce de uma experiência de espanto. Eu estava lendo a Ilíada na virada de 2016 para 2017, durante uma viagem pelo interior da Bolívia, quando passei pela região onde o Che Guevara foi assassinado. O corpo dele ficou desaparecido por 30 anos. O canto final da Ilíada narra o momento em que o Príamo (rei de Troia) vai recuperar o corpo do Heitor. Uma cena muito densa, que me deixou emocionada. Por mais ódio que existia, eles devolveram o corpo de Heitor e você imagina o pai beijando as mãos do cara que matou seu filho, mas carregando de volta para casa o filho. Eu estava no lugar onde um corpo ficou 30 anos desaparecido. Se olharmos para a história da América Latina, é uma prática muito recorrente. Dos períodos coloniais, passando pelas ditaduras e que continua nos dias de hoje com as polícias militarizadas e as milícias - do México ao extremo sul da América do Sul. Aqui no Brasil são muitas as famílias que não têm direito aos corpos de seus mortos e a simbolizar essas mortes. Foi então a partir dessa experiência de espanto que nasce o Pedras, mas eu só vou conseguir escrever o livro em 2019.

Por que levar a Ilíada para as férias?

Eu gosto de carregar peso. (risos). Já tinha lido A Odisseia e muitas tragédias. Faltava a Ilíada. Eu gosto de narrativas longas. Amo ficar com uma mesma narrativa por meses. Sou apaixonada por Elena Ferrante, Octavia Butler, adoro histórias seriadas. E em viagem gosto de pegar um livro longo para fazer o percurso todo com ele. Pensei: por que não a Ilíada? (risos). Levei o exemplar do meu irmão Caetano, que fez Letras, e tinha todas as anotações dele. Foi um bom guia para me ajudar a entrar.

Para tem tem medo de encarar a Ilíada e poderia evitar seu livro por isso, o que diria em defesa dele?

A grande questão que eu coloco no Pedras é pensar por que esses clássicos são esses clássicos, quem define isso e por que o Ocidente escolhe uma obra tão violenta e sanguinária, a obra que é um relato de um massacre, como pedra fundamental de sua literatura. Se formos ler Ilíada, que seja com esse olhar muito afiado e com essas pedras na mão. Eu sabia que eu estava lidando com uma tradição muito inacessível e distante, mas pensando numa embocadura contemporânea. Muita gente disse que depois de ler o Pedras foi pesquisar as figuras. E tenho ido a escolas para discutir o livro com alunos do 7º ano, por exemplo. E rola. É muito massa. Querendo ou não a nossa cultura está muito fundamentada no referencial greco-latino. A mitologia grega, nem que seja por séries da Netflix ou da Disney, está no imaginário.

Poderia comentar o verso ‘a destruição é rápida, mas inferno é contínuo’?

O Pedras foi escrito no primeiro ano do governo Bolsonaro e é muito atravessado por essa destruição e barbárie que o País viveu. No poema Cassandra (leia abaixo), por exemplo, que foi o segundo que escrevi, depois de Homero, era a gente falando: ‘está podre, ainda assim eles palitam os dedos do pé'. Cassandra é uma pitonisa, tem uma história de que Apolo tenta se deitar com ela e ela recusa. Já tem uma questão de violência sexual. Então ele cospe nos lábios de Cassandra e fala ‘você vai profetizar, mas ninguém vai te entender e ninguém vai te acreditar’. Eu sinto que durante as eleições para presidência em 2018 éramos Cassandra, com dados, com relatórios do Ibama, etc, dizendo vai haver uma destruição e projeto de desmonte de tudo o que é política pública, de descaso com a vida e com o outro. E ainda assim esse programa foi eleito democraticamente. Ainda hoje estamos lidando com os destroços. Essa frase foi uma tentativa de falar desse momento histórico no qual o livro foi escrito.

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Formada nos slams, a poeta ganhou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano em 2022 com uma releitura política de 'Ilíada' para os dias atuais

Você fala, em algum momento, em ‘meninas que inventam epopeias’. O que diria para essas meninas?

Respondo com o verso que vem antes: ‘você nos inflou coragem’. Se eu posso dizer alguma coisa é: coragem. Se eu posso fazer algo é tentar insuflar coragem para desconstruir algumas epopeias e, talvez a partir das ruínas dessa grande tradição, inventar outras narrativas.

Como os slams e os saraus transformaram a poesia, abriram espaço para novas vozes e conquistaram um público leitor?

Tem algo sobre recuperar um aspecto coletivo da poesia. A poesia é por excelência um gênero que não dissocia palavra e voz, sentido e som. Quando falamos de voz, é sobre falar algo para alguém. Necessariamente implica o outro e a outra. Os movimentos de poesia, com toda a sua diversidade e multiplicidade que tem no Brasil, recuperam essa dimensão da poesia como encontro, como um ato coletivo, como corpo e voz.

Luiza Romão estudou teatro e começou a escrever poesia com mais frequência depois de conhecer os slams Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O que você lê?

De tudo, leio muito. Desde literatura policial - e Nadine é de certa forma uma homenagem crítica a esse gênero que sou fissurada, com todas as contradições possíveis. O gênero policial, em geral, é muito conservador - ele é um elogio à racionalidade. Geralmente tem um detetive, que é uma figura majoritariamente masculina, que vai resolver o mundo através da racionalidade, da conexão de pistas. Ele resolve o enigma e o mundo volta à normalidade. Um gênero que acaba reiterando vários estereótipos e termina em geral como elogio à polícia, essa instituição que salvou o mundo. A questão de gênero também é problemática. As mulheres só são representadas como cadáveres, e os feminicídios aparecem de uma forma muito desrespeitosa, sanguinolenta, espetacularizada. E sabemos que a resolução punitivista não resolve a questão da violência de gênero. Há, aí, uma contradição de forma e conteúdo que eu tento resolver no Nadine. Mas eu leio muita coisa, prosa, teoria, tudo, e agora estou apaixonada por diários. Comecei a ler os do Piglia e estou apaixonada. É um gênero íntimo e de certa forma você vê que outras pessoas já passaram pelas crises que eu passo como escritora. Você se irmana com os escritores.

O que seriam essas crises?

Dar conta dessa visibilidade toda.

De 2022 para cá? Como foi ganhar o Jabuti?

Sim. O prêmio foi uma surpresa total e eu não estava esperando esse reconhecimento agora. Não esperava ganhar nem na categoria poesia, quem diria em Livro do Ano. O principal do prêmio é que o livro está chegando em leitoras e leitores a quem provavelmente não chegaria. Principalmente em se tratando de poesia, que não tem tanta visibilidade. Chegar numa livraria e meu livro estar lá, receber a notícia de que alguma professora indicou meu livro... Meu público até então eram pessoas que tinham ido aos saraus e slams. Ter leitores e leitoras que eu não conheço é a principal coisa.

E como foi em casa?

Foi uma uma escalada de euforia porque primeiro eu fui indicada para o Oceanos com meu irmão Caetano, que estava lançando seu primeiro livro de poemas (Um Nome Inteiro Disposto a Montarias, 7Letras). Somos melhores amigos e ele é meu grande leitor crítico. Fomos semifinalistas juntos e foi uma grande festa em casa. E então veio a indicação para o Jabuti. O ápice foi ser semifinalista. Ali era onde o meu imaginário conseguia alcançar. Depois disso, nem nos meus maiores delírios.

Você publicou seus livros por editoras independentes. Foi procurada por casas maiores depois do prêmio? Pretende seguir com as menores?

Sim, fui procurada. Sou muito grata às editoras pequenas e de médio porte. É gente que está fazendo de fato a poesia ser publicada e circular nesse País. Sou muito grata a Simone Paulino e à Nós. Era uma coisa tão distante - ‘por que a Luiza quer falar de Troia, dos gregos, por que quer recuperar a Ilíada?’ - mas ela me abriu as portas, lançamos durante a pandemia, sem ter os espaços em que em geral eu circulo. Também sou grata à Quelônio, que tem feito um trabalho muito cuidadoso com os livros, e a Silvia Nastari, que assinou o projeto gráfico do Nadine. Enfim, sim, tive convites, mas meu próximo livro sai pela Nós.

O que será esse novo livro?

Os três anteriores são sobre o espanto, o horror e a violência. Esse é sobre a paixão. Vai ser sobre futebol. Eu escrevi um folhetim para o Sesc Pompeia, em seis episódios, que estão disponíveis online, e eu vou desenvolver mais para virar uma história. Mas para além da história, o que estou tentando entender é essa dimensão da paixão, e também da violência. A narrativa é a história de um menino que é assassinado durante uma briga quando está tentando entrar no estádio. É só a primeira ideia, não faço ideia do que vai virar. O que posso falar é que é sobre futebol, é sobre paixão e que eu estou começando a ler a Bíblia.

Por quê?

Sempre busco trabalhar com alguma tradição. Eu ainda estou entendendo, mas tem a ver com futebol, com paixão e também com uma certa dimensão do acontecimento, que talvez a gente possa chamar de milagre. Estou interessada nessa dimensão do inesperado no futebol, que é por que a gente ama no fim das contas.

Você ama?

Amo muito. Sou leonina com ascendente em áries e luz em sagitário. Sou fogo, fogo, fogo. Sou muito apaixonada pela vida.

Pelo futebol também?

Sim! Sou palmeirense apaixonada. Conheci o Abel Ferreira dias atrás e ainda estou flutuando.

Leia ‘Cassandra’

entenda sis anunciar a desgraça

não é o mesmo que remediá-la

primeiro você dirá está podre

depois com perícia

raspará da casca a polpa gosmenta

o chorume se espalha

há fungos pré-históricos

há fungos abençoados

está podre repetirá didática

eles continuarão a palitar os dedos do pé

talvez você chore talvez arranque

do púbis ao queixo todos os pelos

uma mulher carbonizada no meio da avenida

talvez mostre relatórios do ibama

a fotografia aérea de crianças vietnamitas

fatos antes incontestáveis

fatos antes never more

eles continuarão a palitar os dedos dos pés

talvez te chamem de louca ou naive

são incontáveis as formas

de rebaixar uma mulher

what? você tá falando grego

está podre seus seios em chama

ainda assim

eles se lambuzarão

O susto que Luiza Romão levou ao ser anunciada como a grande vencedora do Prêmio Jabuti em 2022 não passou e ela ainda está aprendendo a lidar com toda a exposição. Luiza tem 31 anos, é poeta, e o livro que lhe rendeu fama nada menos é do que uma revisão da Ilíada, poema épico de Homero, do século IX, sobre a Guerra de Troia, a partir de uma leitura feminista e para os dias atuais. Mesmo assustada com tudo isso, ela curte o momento - e o prêmio de R$ 100 mil para Também Guardamos Pedras Aqui é só um detalhe perto de todo o resto.

O Jabuti foi em novembro. Depois Luiza figurou na lista Forbes Under 30, como uma das jovens que se destacaram em diversas áreas em 2022. Tem participado de eventos literários e, a partir de outubro, terá uma agenda internacional concorrida. A turnê começa na França, com o lançamento do livro pela Nossa Éditions e participação no Salão Feminista. De lá, ela segue para a Feira do Livro de Frankfurt, o mais importante encontro do mercado editorial do mundo. A viagem continua em Portugal - ao Festival Folio, em Óbidos.

De volta à América do Sul, lança Nadine (o livro posterior ao Também Guardamos Pedras Aqui) na Argentina em novembro e faz sua estreia no palco principal da Festa Literária Internacional de Paraty. Luiza Romão é a mais recente autora confirmada para o evento, que será entre os dias 22 e 26, e está feliz por isso acontecer justamente na Flip que vai homenagear Pagu. Lá, lança o audiolivro de sua obra premiada - narrado por ela mesma. Em dezembro, fechando o ciclo de um grande ano, ela parte para o México, para o lançamento do livro em espanhol e participação na Feira de Guadalajara.

Luiza Romão é autora de Também Guardamos Pedras Aqui e Nadine, entre outros livros de poesia Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O começo

Também Guardamos Pedras Aqui (Nós) foi o terceiro livro que Luiza Romão publicou - antes vieram Coquetel Motolove (2014) e Sangria (2017), ambos pelo Selo Doburro, e depois, Nadine (2022), pela Quelônio.

O primeiro livro, porém, que Luiza Romão escreveu, aos 10 anos, como uma brincadeira de criança, se chama Gotas de Poesia, tem um belo desenho na capa, dela mesma, edição artesanal e acabamento em pasta plástica com canaleta, daquelas de trabalho escolar, e é guardado na casa de seus pais em Ribeirão Preto junto com outras memórias dessa família de quatro irmãos artistas. Luiza e Caetano são poetas (aos 12, ela prefaciou o primeiro livro dele, que tinha 8). Chico é artista visual e a caçula Bethânia é fotógrafa.

Luiza é a mais velha. Seu nome foi emprestado da música que Tom Jobim fez como tema de Vera Fischer na novela Brilhante (1981). Sua primeira decepção infantil, ela conta. Preferia que tivesse sido por causa do Samba de Maria Luiza, tem uma energia mais a ver com a sua. E foi escolhido também por causa de Luiza Erundina, então prefeita de São Paulo. A ideia de homenagear os músicos que os pais admiravam veio a partir do Chico.

Luiza Romão brincava de escrever livros na infância e produziu Gotas de Poesia aos 9 anos Foto: Acervo pessoal/Luiza Romão

“Nossos nomes são uma síntese da infância que tivemos e da forma como meus pais educaram a gente - uma educação pensada a partir da emancipação, da cultura, do encontro, do imaginário e do lúdico. Sempre li muito desde pequena, brincava de fazer cena, de colorir. Uma educação a la Paulo Freire”, ela resume em conversa com o Estadão, na Livraria da Tarde, em Pinheiros.

Filha de uma professora de redação que enveredou para a psicanálise depois de anos de sala de aula e de um professor de filosofia, Luiza nasceu em Ribeirão em 1992. Cresceu nesse ambiente, onde também era ensinado que a terra e a educação são direitos de todos, se envolveu com teatro amador e se mudou para São Paulo em 2010, para estudar Artes Cênicas na USP. Aqui, descobriu a poesia falada, participou de suas primeiras batalhas, escreveu. Foi estudar na Espanha, voltou.

Luiza Romão já vendeu 3 mil exemplares de Sangria, de mão em mão, e cerca de 4 mil de Também Guardamos Pedras Aqui, que já é lido até em escolas. Bons números, em se tratando de poesia. Nesta entrevista, ela revela as motivações para trazer a Ilíada para os dias atuais, critica o clássico fundador da literatura ocidental, fala de slams e do encontro com seu irmão na semifinal do Prêmio Oceanos e conta que seu próximo livro será sobre futebol. Confira trechos da conversa.

Você escrevia poesia na infância, depois estuda teatro. Em que momento, já adulta, volta a escrever poesia?

No final da faculdade de Artes Cênicas, em 2013, eu conheci os slams, essas batalhas de poesia que surgiram em Chicago na década de 1980 e que têm um formato bem simples: as pessoas apresentam poemas autorais de até três minutos, sem figurino ou música. Só ela e o microfone, quando tem - porque no Brasil geralmente eles ocorrem em espaços públicos. Então eu caio meio que por acaso no Slam da Guilhermina e fico completamente apaixonada. Foi um arrebatamento completo. O slam tem algo de uma paixão próxima da paixão do futebol. Quando vi, eu estava batalhando também. Esse é outro outro ponto muito interessante dos movimentos de poesia falada: eles estimulam muito a escrever, a performar, a romper com essa dicotomia entre o espectador e artista. Fui a primeira mina a chegar na final do Slam BR e fui vice-campeã. Depois, a partir de 2016, o slam estoura, quase dobra o número de comunidades do País.

O que a poesia significa para você?

Eu não sei o que ela significa. É um processo de significação constante e que vai se transformando ao longo do tempo. Comecei a escrever e, principalmente, a performar - porque a escrita, para mim, é quase que secundária ao momento de criação, e eu crio muito na fala - nessa primeira fase em que eu estava imersa nos saraus e slams. Em geral, eu decorava o poema e depois escrevia. Só para não esquecer. Isso mudou, embora eu sempre escreva falando. Eu preciso que a palavra caiba na minha boca.

Sua poesia tem voz, corpo, palavra e também tem um fio narrativo. Que história você quer contar e como busca fazer isso?

Por mais que eu esteja no campo da lírica, da lírica entre aspas, de um gênero que não necessariamente precisa contar uma história, sou apaixonada por histórias. E sou uma leitora voraz de prosa. Meus projetos de livro tentam dar conta de alguma narrativa.

Poderia comentar esses projetos?

O Sangria, meu segundo livro, de 2017, que é bastante performativo e tem 28 poemas e 28 fotografias, lembra a estrutura de um calendário. Naquele momento eu estava interessada em investigar os ciclos do meu corpo e os ciclos políticos e econômicos do Brasil e tentando recontar um pouco essa história nacional desde uma perspectiva feministas - de como a cultura do estupro e a violência de gênero são algo que vão fundar essa ideia de nação. É um livro com uma visualidade muito forte, com fotografias de Sérgio Silva do meu corpo nu, e costurado com linha vermelha. Os poemas do Pedras compõem uma narrativa que perpassa cada um dos textos. E no Nadine, meu último, eu mergulho de fato em uma ideia de narrativa. São vários poemas de uma história detetivesca. Pouco a pouco a questão da narrativa vai ocupando mais espaço e estou assumindo que gosto muito disso.

Nos livros tem também uma revolta e a violência sempre aparece. O que te faz escrever?

Olhando para o Sangria, o Pedras e o Nadine vejo que são três livros que tentam responder ao horror. Tomei consciência disso recentemente. Eu tenho uma dificuldade muito grande de elaborar a experiência da violência. O poema-chave do Sangria fala do caso do estupro de uma garota por 33 caras. Um caso de violência extrema que aconteceu em 2016. Eu estava há muito tempo perseguindo esse poema, foram três ou quatro meses pensando essa coisa do Brasil - do pau Brasil, de um país que se nomeia a partir de uma mercadoria para exportação, e dessa experiência colonial que é uma experiência de estupro. Quando aconteceu esse caso, eu escrevi o poema numa madrugada porque meu corpo não estava dando conta de escutar essa notícia. Foi uma busca por tentar elaborar isso e revidar de alguma forma.

Já o Pedras também nasce de uma experiência de espanto. Eu estava lendo a Ilíada na virada de 2016 para 2017, durante uma viagem pelo interior da Bolívia, quando passei pela região onde o Che Guevara foi assassinado. O corpo dele ficou desaparecido por 30 anos. O canto final da Ilíada narra o momento em que o Príamo (rei de Troia) vai recuperar o corpo do Heitor. Uma cena muito densa, que me deixou emocionada. Por mais ódio que existia, eles devolveram o corpo de Heitor e você imagina o pai beijando as mãos do cara que matou seu filho, mas carregando de volta para casa o filho. Eu estava no lugar onde um corpo ficou 30 anos desaparecido. Se olharmos para a história da América Latina, é uma prática muito recorrente. Dos períodos coloniais, passando pelas ditaduras e que continua nos dias de hoje com as polícias militarizadas e as milícias - do México ao extremo sul da América do Sul. Aqui no Brasil são muitas as famílias que não têm direito aos corpos de seus mortos e a simbolizar essas mortes. Foi então a partir dessa experiência de espanto que nasce o Pedras, mas eu só vou conseguir escrever o livro em 2019.

Por que levar a Ilíada para as férias?

Eu gosto de carregar peso. (risos). Já tinha lido A Odisseia e muitas tragédias. Faltava a Ilíada. Eu gosto de narrativas longas. Amo ficar com uma mesma narrativa por meses. Sou apaixonada por Elena Ferrante, Octavia Butler, adoro histórias seriadas. E em viagem gosto de pegar um livro longo para fazer o percurso todo com ele. Pensei: por que não a Ilíada? (risos). Levei o exemplar do meu irmão Caetano, que fez Letras, e tinha todas as anotações dele. Foi um bom guia para me ajudar a entrar.

Para tem tem medo de encarar a Ilíada e poderia evitar seu livro por isso, o que diria em defesa dele?

A grande questão que eu coloco no Pedras é pensar por que esses clássicos são esses clássicos, quem define isso e por que o Ocidente escolhe uma obra tão violenta e sanguinária, a obra que é um relato de um massacre, como pedra fundamental de sua literatura. Se formos ler Ilíada, que seja com esse olhar muito afiado e com essas pedras na mão. Eu sabia que eu estava lidando com uma tradição muito inacessível e distante, mas pensando numa embocadura contemporânea. Muita gente disse que depois de ler o Pedras foi pesquisar as figuras. E tenho ido a escolas para discutir o livro com alunos do 7º ano, por exemplo. E rola. É muito massa. Querendo ou não a nossa cultura está muito fundamentada no referencial greco-latino. A mitologia grega, nem que seja por séries da Netflix ou da Disney, está no imaginário.

Poderia comentar o verso ‘a destruição é rápida, mas inferno é contínuo’?

O Pedras foi escrito no primeiro ano do governo Bolsonaro e é muito atravessado por essa destruição e barbárie que o País viveu. No poema Cassandra (leia abaixo), por exemplo, que foi o segundo que escrevi, depois de Homero, era a gente falando: ‘está podre, ainda assim eles palitam os dedos do pé'. Cassandra é uma pitonisa, tem uma história de que Apolo tenta se deitar com ela e ela recusa. Já tem uma questão de violência sexual. Então ele cospe nos lábios de Cassandra e fala ‘você vai profetizar, mas ninguém vai te entender e ninguém vai te acreditar’. Eu sinto que durante as eleições para presidência em 2018 éramos Cassandra, com dados, com relatórios do Ibama, etc, dizendo vai haver uma destruição e projeto de desmonte de tudo o que é política pública, de descaso com a vida e com o outro. E ainda assim esse programa foi eleito democraticamente. Ainda hoje estamos lidando com os destroços. Essa frase foi uma tentativa de falar desse momento histórico no qual o livro foi escrito.

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Formada nos slams, a poeta ganhou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano em 2022 com uma releitura política de 'Ilíada' para os dias atuais

Você fala, em algum momento, em ‘meninas que inventam epopeias’. O que diria para essas meninas?

Respondo com o verso que vem antes: ‘você nos inflou coragem’. Se eu posso dizer alguma coisa é: coragem. Se eu posso fazer algo é tentar insuflar coragem para desconstruir algumas epopeias e, talvez a partir das ruínas dessa grande tradição, inventar outras narrativas.

Como os slams e os saraus transformaram a poesia, abriram espaço para novas vozes e conquistaram um público leitor?

Tem algo sobre recuperar um aspecto coletivo da poesia. A poesia é por excelência um gênero que não dissocia palavra e voz, sentido e som. Quando falamos de voz, é sobre falar algo para alguém. Necessariamente implica o outro e a outra. Os movimentos de poesia, com toda a sua diversidade e multiplicidade que tem no Brasil, recuperam essa dimensão da poesia como encontro, como um ato coletivo, como corpo e voz.

Luiza Romão estudou teatro e começou a escrever poesia com mais frequência depois de conhecer os slams Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O que você lê?

De tudo, leio muito. Desde literatura policial - e Nadine é de certa forma uma homenagem crítica a esse gênero que sou fissurada, com todas as contradições possíveis. O gênero policial, em geral, é muito conservador - ele é um elogio à racionalidade. Geralmente tem um detetive, que é uma figura majoritariamente masculina, que vai resolver o mundo através da racionalidade, da conexão de pistas. Ele resolve o enigma e o mundo volta à normalidade. Um gênero que acaba reiterando vários estereótipos e termina em geral como elogio à polícia, essa instituição que salvou o mundo. A questão de gênero também é problemática. As mulheres só são representadas como cadáveres, e os feminicídios aparecem de uma forma muito desrespeitosa, sanguinolenta, espetacularizada. E sabemos que a resolução punitivista não resolve a questão da violência de gênero. Há, aí, uma contradição de forma e conteúdo que eu tento resolver no Nadine. Mas eu leio muita coisa, prosa, teoria, tudo, e agora estou apaixonada por diários. Comecei a ler os do Piglia e estou apaixonada. É um gênero íntimo e de certa forma você vê que outras pessoas já passaram pelas crises que eu passo como escritora. Você se irmana com os escritores.

O que seriam essas crises?

Dar conta dessa visibilidade toda.

De 2022 para cá? Como foi ganhar o Jabuti?

Sim. O prêmio foi uma surpresa total e eu não estava esperando esse reconhecimento agora. Não esperava ganhar nem na categoria poesia, quem diria em Livro do Ano. O principal do prêmio é que o livro está chegando em leitoras e leitores a quem provavelmente não chegaria. Principalmente em se tratando de poesia, que não tem tanta visibilidade. Chegar numa livraria e meu livro estar lá, receber a notícia de que alguma professora indicou meu livro... Meu público até então eram pessoas que tinham ido aos saraus e slams. Ter leitores e leitoras que eu não conheço é a principal coisa.

E como foi em casa?

Foi uma uma escalada de euforia porque primeiro eu fui indicada para o Oceanos com meu irmão Caetano, que estava lançando seu primeiro livro de poemas (Um Nome Inteiro Disposto a Montarias, 7Letras). Somos melhores amigos e ele é meu grande leitor crítico. Fomos semifinalistas juntos e foi uma grande festa em casa. E então veio a indicação para o Jabuti. O ápice foi ser semifinalista. Ali era onde o meu imaginário conseguia alcançar. Depois disso, nem nos meus maiores delírios.

Você publicou seus livros por editoras independentes. Foi procurada por casas maiores depois do prêmio? Pretende seguir com as menores?

Sim, fui procurada. Sou muito grata às editoras pequenas e de médio porte. É gente que está fazendo de fato a poesia ser publicada e circular nesse País. Sou muito grata a Simone Paulino e à Nós. Era uma coisa tão distante - ‘por que a Luiza quer falar de Troia, dos gregos, por que quer recuperar a Ilíada?’ - mas ela me abriu as portas, lançamos durante a pandemia, sem ter os espaços em que em geral eu circulo. Também sou grata à Quelônio, que tem feito um trabalho muito cuidadoso com os livros, e a Silvia Nastari, que assinou o projeto gráfico do Nadine. Enfim, sim, tive convites, mas meu próximo livro sai pela Nós.

O que será esse novo livro?

Os três anteriores são sobre o espanto, o horror e a violência. Esse é sobre a paixão. Vai ser sobre futebol. Eu escrevi um folhetim para o Sesc Pompeia, em seis episódios, que estão disponíveis online, e eu vou desenvolver mais para virar uma história. Mas para além da história, o que estou tentando entender é essa dimensão da paixão, e também da violência. A narrativa é a história de um menino que é assassinado durante uma briga quando está tentando entrar no estádio. É só a primeira ideia, não faço ideia do que vai virar. O que posso falar é que é sobre futebol, é sobre paixão e que eu estou começando a ler a Bíblia.

Por quê?

Sempre busco trabalhar com alguma tradição. Eu ainda estou entendendo, mas tem a ver com futebol, com paixão e também com uma certa dimensão do acontecimento, que talvez a gente possa chamar de milagre. Estou interessada nessa dimensão do inesperado no futebol, que é por que a gente ama no fim das contas.

Você ama?

Amo muito. Sou leonina com ascendente em áries e luz em sagitário. Sou fogo, fogo, fogo. Sou muito apaixonada pela vida.

Pelo futebol também?

Sim! Sou palmeirense apaixonada. Conheci o Abel Ferreira dias atrás e ainda estou flutuando.

Leia ‘Cassandra’

entenda sis anunciar a desgraça

não é o mesmo que remediá-la

primeiro você dirá está podre

depois com perícia

raspará da casca a polpa gosmenta

o chorume se espalha

há fungos pré-históricos

há fungos abençoados

está podre repetirá didática

eles continuarão a palitar os dedos do pé

talvez você chore talvez arranque

do púbis ao queixo todos os pelos

uma mulher carbonizada no meio da avenida

talvez mostre relatórios do ibama

a fotografia aérea de crianças vietnamitas

fatos antes incontestáveis

fatos antes never more

eles continuarão a palitar os dedos dos pés

talvez te chamem de louca ou naive

são incontáveis as formas

de rebaixar uma mulher

what? você tá falando grego

está podre seus seios em chama

ainda assim

eles se lambuzarão

Entrevista por Maria Fernanda Rodrigues

Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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