Poucos nomes na literatura brasileira contemporânea mantiveram uma aura de mistério tão impenetrável quanto Dalton Trevisan. O escritor curitibano, que morreu nesta segunda-feira aos 99 anos, viveu a maior parte de sua vida recluso, evitando holofotes, entrevistas e eventos literários.
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No entanto, a edição de 27 de agosto de 1972 do Estadão trouxe uma raridade. Uma “conversa” do “Vampiro de Curitiba” com o jornalista Mussa José Assis (1944-2013), secretário de redação da sucursal do jornal em Curitiba ne época. Trevisan tinha 47 anos e já era um nome reconhecido nacionalmente.
Os dois eram amigos de longa data e, após muita insistência, Trevisan aceitou dialogar com Assis para a publicação de uma matéria. Ainda assim, o escritor reafirmou seu desdém pela exposição pública. “Não tenho nada a dizer”, insistiu. “Por que no lugar da entrevista vocês não publicam um conto meu? A obra é o que é importante. Não tenho nada a dizer fora dos meus livros. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista.”
‘O escritor é um ser maldito’
Mesmo assim, a conversa (não entrevista, afinal, como ele disse: “não dou entrevista. É o cerne da minha personalidade”) seguiu. Dalton conversava sobre conversar. Assis conta na matéria publicada no Suplemento Literário de 1972 que o escritor gastava horas, sempre depois das 23h, papeando com amigos que encontrava na “Boca Maldita”, como ficou conhecida uma das esquinas da rua XV de Novembro, no centro de Curitiba.
Era onde recolhia parte dos materiais para os seus contos. “O escritor é um ser maldito. O escritor é uma pessoa que não merece confiança. Um amigo chega e conta as maiores dores: eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora”, confidenciou.
“Notícia policial, frase no ar, bula de remédio, pequeno anúncio, bilhete de suicida, o meu e o seu fantasma no sótão, confidência de amigo, a leitura dos clássicos”, tudo isso servia de inspiração para seu trabalho revelou na “não-entrevista”.
‘Meu lugar é entre os últimos dos contistas menores’
Na conversa com Assis, Dalton Trevisan lembrou de quando era mais jovem. “Adolescente, meu ideal era ser corredor dos 110 metros com barreiras. Jovem, de bigodinho, sonhei em ser farol de dancing, o galã amado por todas as taxi-girls. Nem atleta, nem bailarino de gravatinha borboleta. Meu lugar é entre os últimos dos contistas menores”, disse.
Lembrou também do início de tudo. Em 1945 quando trabalhava na fábrica de porcelana da família, sofreu um acidente. Uma chaminé do forno explodiu e ele teve uma fratura no crânio. Ficou um mês internado. “Olhei pela primeira vez a morte dentro dos olhos e mais que sofrimento físico, doeu a revelação de que era mortal. Nesse dia, nasceu o escritor”
No mesmo ano, saiu o seu primeiro livro, Soneto ao Luar, que ele renegou e considerava “uma leviandade de jovem”.
Na conversa com o Estadão, ele se lembrou também de quando estudava Direito e participou dos jogos universitários. Teve a coragem de se jogar do último lance do trampolim do Country Clube de Curitiba em uma disputa dos saltos ornamentais.
Algumas frases desta entrevista histórica
- “Muitas vezes, esse conhecimento sobre a vida particular do autor relega a própria obra a um segundo plano. Eu não sou assunto, o autor nunca é assunto. Notícia é a sua obra. Ela pode ser discutida, interpretada, contestada”.
- “[Quero ser julgado pelo que escrevo] e não pela maneira como vivo, pelo jeito que durmo, pelo que eu gosto de comer no almoço. O que interessa saber mais? Se eu demoro uma semana para escrever um conto? Se eu o reescrevo 20, 30 vezes? Se eu escrevo a bico de pena ou se bato a máquina?”
- “Não escrevo para mudar a vida, melhorar o mundo ou salvar minha alma. Um papel coberto de palavras vale mais que um papel em branco?”
- “Escrever é a única justificativa que encontro para estar vivo. Meus gestos cotidianos são vazios.”
- “Escrever é uma atividade inútil, mas para mim, ainda é a menos inútil de todas e a que me faz continuar vivo”.
- “Não dou entrevistas. Simplesmente porque não há perguntas a responder. Minha opinião sobre o divórcio? Sobre o amor livre? Sobre a guerra do Vietnã, a bomba atômica, o bigode de Salvador Dali? Quem quiser saber o que penso que leia o que eu escrevo. Garanto que a na minha obra estão respostas para todas essas perguntas. E as que não existirem, eu não as darei”
- “Não posso me comunicar com escritores que estão na pré-história da literatura”
- “[Sou] Vampiro, sim, mas de almas. Espião de corações solitários. Um escorpião de bote armado. Eu só invento um vampiro que existe”
A morte de Dalton Trevisan
Recluso em sua casa por mais de sete décadas, Trevisan saía apenas em ocasiões raras, convivendo com poucos amigos. Não recebia prêmios pessoalmente e nunca participou do circuito de festivais ou debates literários.
Gastou os últimos anos relendo e organizando a sua obra, nas últimas décadas publicada pela Record. Em 2025, seus livros vão ser reeditados pela Todavia.
Novas edições de livros de Dalton Trevisan
A primeira leva de livros reeditados pela Todavia sai em junho do ano que vem. Entre eles estará O Vampiro de Curitiba. Também está previsto para junho, ainda sem título, uma antologia de contos organizada por Felipe Hirsh e Caetano Galindo.