Romances clássicos são revisados para os leitores de hoje: onde traçar o limite?


Agatha Christie, Roald Dahl e o James Bond de Ian Fleming despertam polêmica com termos considerados ofensivos ou preconceituosos na atualidade

Por Alexandra Alter e Elizabeth A. Harris

The New York Times - Os patrimônios de várias figuras literárias reverenciadas estão alterando partes de obras conhecidas para adequá-las às sensibilidades contemporâneas, provocando um acalorado debate entre os leitores e o mundo literário sobre se e como os clássicos devem ser atualizados.

Nos romances de Agatha Christie, termos como “oriental”, “cigano” e “nativo” foram retirados, e as versões revisadas dos livros James Bond de Ian Fleming riscarão frases racistas e sexistas. Clássicos de Roald Dahl foram despojados de adjetivos como “gordo” e “feio”, juntamente com referências ao gênero e à cor da pele das personagens.

A escritora inglesa Agatha Christie, em foto de 1971 Foto: Arquivo/Estadão
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Embora algumas mudanças tenham sido feitas em livros publicados nas últimas décadas, muitas vezes com pouco alarde, muitas das tentativas atuais de remover linguagem ofensiva são sistemáticas e atraíram intenso escrutínio público. O esforço deixou editoras e patrimônios literários com dificuldades para preservar a intenção original dos autores e, ao mesmo tempo, garantir que sua obra continue ressoando – e vendendo.

Encontrar o equilíbrio certo é um ato delicado: parte decisão de negócios, parte conjuração engenhosa da visão de mundo de um autor de outra época para adaptá-la ao presente.

“Minha bisavó não queria ofender ninguém”, disse James Prichard, bisneto de Christie, presidente e CEO da Agatha Christie Ltd. “Não acredito que precisemos deixar o que eu chamaria de linguagem ofensiva em nossos livros, porque, francamente, tudo o que me importa é que as pessoas possam desfrutar das histórias de Agatha Christie para sempre”.

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Os riscos financeiros e culturais da tarefa são enormes. Autores como Dahl, Christie e Fleming, juntos, venderam bilhões de cópias de livros, e seus romances geraram franquias de cinema lucrativas. Em 2021, a Netflix comprou a Roald Dahl Story Co., incluindo os direitos de clássicos como O Bom Gigante Amigo, por US$ 1 bilhão. Deixar as obras inalteradas, com frases ofensivas e às vezes abertamente racistas, pode afastar novos públicos e prejudicar a reputação e o legado de um autor.

Imagem com livros e produtos relacionados à 'fantástica Fábrica de Chocolate', inspirados na história de Roald Dahl. Foto: Martins Fontes

Mas alterar um texto traz seus próprios riscos. Os críticos dizem que editar livros postumamente é uma afronta à autonomia criativa dos autores que pode equivaler à censura e que mesmo um esforço bem-intencionado para eliminar os preconceitos pode abrir a porta para mudanças mais abrangentes.

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“É preciso pensar no precedente que você está estabelecendo e o que aconteceria se alguém com uma predisposição ou ideologia diferente pegasse a caneta e começasse a riscar as coisas”, disse Suzanne Nossel, CEO da PEN America.

As mudanças também podem alterar o registro literário e histórico, apagando as evidências dos preconceitos raciais e culturais de um autor e erodindo a capacidade da literatura de refletir o lugar e a época em que foi criada. “Às vezes, o valor histórico está intimamente ligado ao motivo pelo qual algo é ofensivo”, disse Nossel.

E também existe a chance de os leitores que apreciam as obras originais se revoltarem.

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Os fãs de Dahl ficaram indignados em fevereiro com a notícia de que sua editora britânica havia alterado centenas de palavras de seus livros infantis. Inicialmente noticiadas pelo jornal britânico The Telegraph, as mudanças foram feitas depois que o espólio de Dahl iniciou uma revisão da obra do autor, em 2020, e contratou a consultoria Inclusive Minds, que visa promover “inclusão e acessibilidade na literatura infantil”, para avaliar a livros.

A reação foi imediata. Salman Rushdie chamou as edições de “censura absurda” e twittou que “o espólio Dahl deveria ter vergonha”. Philip Pullman disse à BBC Radio 4 que seria melhor deixar os livros de Dahl saírem de catálogo do que alterá-los sem o consentimento do autor. O clamor foi tão intenso que a Puffin, editora de Dahl, anunciou que manteria os textos inalterados para os leitores que preferissem os originais.

Daniel Craig em foto na estreia de filme baseado nas obras 'James Bond' Foto: Toby Melville/Reuters
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“Não é incomum revisar a linguagem usada juntamente com a atualização de outros detalhes, como a capa e o layout da página de um livro”, disse Rick Behari, porta-voz da Roald Dahl Story Co., em comunicado divulgado em fevereiro, acrescentando que eles buscavam preservar “a irreverência e o espírito aguçado do texto original”.

Os textos mais antigos são regularmente atualizados quando reimpressos, mas, nos últimos anos, os editores e espólios começaram a revisar os clássicos literários de forma mais sistemática para encontrar e alterar passagens que possam ofender leitores. Em muitos casos, dizem os editores, as intervenções envolvem um punhado de palavras e não afetam a história.

Alguns na indústria editorial veem os esforços para tornar as obras antigas mais inclusivas como um sinal de progresso, desde que as mudanças sejam feitas com cuidado, e não como um apagamento impensado de termos ofensivos, sem levar em consideração um viés mais sutil e generalizado na visão de mundo de um escritor.

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“Acho que é uma boa prática, da mesma forma que você atualiza livros didáticos”, disse Hannah Gómez, que supervisiona uma equipe de editores de sensibilidade na Kevin Anderson & Associates, uma empresa que fornece leituras de precisão cultural e outros serviços editoriais para autores e editores. “O grande problema é tratar o rigor ou a sensibilidade cultural como algo que pode ser facilmente inserido ou substituído”.

Alguns autores, quando confrontados com críticas sobre passagens ofensivas, responderam mudando seus livros. Na década de 1970, Dahl fez alterações em A Fantástica Fábrica de Chocolate. Diante de reclamações de que era racista sua descrição dos trabalhadores da fábrica como pigmeus de pele escura da África, ele transformou os trabalhadores em Oompa Loompas, pessoas pequenas de um país fictício chamado Loompaland.

Mas, quando um autor não está mais vivo, o processo de revisão póstuma pode ser mais complicado.

Theo Downes-Le Guin, filho e executor literário da escritora de ficção científica Ursula Le Guin, ficou surpreso ao receber um e-mail de uma editora no final do ano passado pedindo permissão para fazer alterações em sua série infantil Catwings. Publicado pela primeira vez em 1988, os livros contam a história de um grupo de gatinhos que nasceram com asas.

A princípio, ele ficou indeciso sobre se deveria aprovar as edições, que consistiam em um punhado de palavras em vários livros. “Ursula era extremamente cuidadosa com as palavras, então uma substituta nunca terá exatamente o mesmo significado”, disse ele em entrevista.

Ele finalmente decidiu que as revisões beneficiariam os leitores. Nas novas edições, que serão lançadas neste outono pela Simon & Schuster’s Atheneum Books, algumas palavras, como “manco” e “burro”, foram substituídas e uma nota foi adicionada para alertar os leitores sobre a atualização.

“Vai se perder um pouco da nuance da linguagem, mas também vai se ganhar alguma coisa”, disse Downes-Le Guin. “O que ganhamos é o potencial de não ofender”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times - Os patrimônios de várias figuras literárias reverenciadas estão alterando partes de obras conhecidas para adequá-las às sensibilidades contemporâneas, provocando um acalorado debate entre os leitores e o mundo literário sobre se e como os clássicos devem ser atualizados.

Nos romances de Agatha Christie, termos como “oriental”, “cigano” e “nativo” foram retirados, e as versões revisadas dos livros James Bond de Ian Fleming riscarão frases racistas e sexistas. Clássicos de Roald Dahl foram despojados de adjetivos como “gordo” e “feio”, juntamente com referências ao gênero e à cor da pele das personagens.

A escritora inglesa Agatha Christie, em foto de 1971 Foto: Arquivo/Estadão

Embora algumas mudanças tenham sido feitas em livros publicados nas últimas décadas, muitas vezes com pouco alarde, muitas das tentativas atuais de remover linguagem ofensiva são sistemáticas e atraíram intenso escrutínio público. O esforço deixou editoras e patrimônios literários com dificuldades para preservar a intenção original dos autores e, ao mesmo tempo, garantir que sua obra continue ressoando – e vendendo.

Encontrar o equilíbrio certo é um ato delicado: parte decisão de negócios, parte conjuração engenhosa da visão de mundo de um autor de outra época para adaptá-la ao presente.

“Minha bisavó não queria ofender ninguém”, disse James Prichard, bisneto de Christie, presidente e CEO da Agatha Christie Ltd. “Não acredito que precisemos deixar o que eu chamaria de linguagem ofensiva em nossos livros, porque, francamente, tudo o que me importa é que as pessoas possam desfrutar das histórias de Agatha Christie para sempre”.

Os riscos financeiros e culturais da tarefa são enormes. Autores como Dahl, Christie e Fleming, juntos, venderam bilhões de cópias de livros, e seus romances geraram franquias de cinema lucrativas. Em 2021, a Netflix comprou a Roald Dahl Story Co., incluindo os direitos de clássicos como O Bom Gigante Amigo, por US$ 1 bilhão. Deixar as obras inalteradas, com frases ofensivas e às vezes abertamente racistas, pode afastar novos públicos e prejudicar a reputação e o legado de um autor.

Imagem com livros e produtos relacionados à 'fantástica Fábrica de Chocolate', inspirados na história de Roald Dahl. Foto: Martins Fontes

Mas alterar um texto traz seus próprios riscos. Os críticos dizem que editar livros postumamente é uma afronta à autonomia criativa dos autores que pode equivaler à censura e que mesmo um esforço bem-intencionado para eliminar os preconceitos pode abrir a porta para mudanças mais abrangentes.

“É preciso pensar no precedente que você está estabelecendo e o que aconteceria se alguém com uma predisposição ou ideologia diferente pegasse a caneta e começasse a riscar as coisas”, disse Suzanne Nossel, CEO da PEN America.

As mudanças também podem alterar o registro literário e histórico, apagando as evidências dos preconceitos raciais e culturais de um autor e erodindo a capacidade da literatura de refletir o lugar e a época em que foi criada. “Às vezes, o valor histórico está intimamente ligado ao motivo pelo qual algo é ofensivo”, disse Nossel.

E também existe a chance de os leitores que apreciam as obras originais se revoltarem.

Os fãs de Dahl ficaram indignados em fevereiro com a notícia de que sua editora britânica havia alterado centenas de palavras de seus livros infantis. Inicialmente noticiadas pelo jornal britânico The Telegraph, as mudanças foram feitas depois que o espólio de Dahl iniciou uma revisão da obra do autor, em 2020, e contratou a consultoria Inclusive Minds, que visa promover “inclusão e acessibilidade na literatura infantil”, para avaliar a livros.

A reação foi imediata. Salman Rushdie chamou as edições de “censura absurda” e twittou que “o espólio Dahl deveria ter vergonha”. Philip Pullman disse à BBC Radio 4 que seria melhor deixar os livros de Dahl saírem de catálogo do que alterá-los sem o consentimento do autor. O clamor foi tão intenso que a Puffin, editora de Dahl, anunciou que manteria os textos inalterados para os leitores que preferissem os originais.

Daniel Craig em foto na estreia de filme baseado nas obras 'James Bond' Foto: Toby Melville/Reuters

“Não é incomum revisar a linguagem usada juntamente com a atualização de outros detalhes, como a capa e o layout da página de um livro”, disse Rick Behari, porta-voz da Roald Dahl Story Co., em comunicado divulgado em fevereiro, acrescentando que eles buscavam preservar “a irreverência e o espírito aguçado do texto original”.

Os textos mais antigos são regularmente atualizados quando reimpressos, mas, nos últimos anos, os editores e espólios começaram a revisar os clássicos literários de forma mais sistemática para encontrar e alterar passagens que possam ofender leitores. Em muitos casos, dizem os editores, as intervenções envolvem um punhado de palavras e não afetam a história.

Alguns na indústria editorial veem os esforços para tornar as obras antigas mais inclusivas como um sinal de progresso, desde que as mudanças sejam feitas com cuidado, e não como um apagamento impensado de termos ofensivos, sem levar em consideração um viés mais sutil e generalizado na visão de mundo de um escritor.

“Acho que é uma boa prática, da mesma forma que você atualiza livros didáticos”, disse Hannah Gómez, que supervisiona uma equipe de editores de sensibilidade na Kevin Anderson & Associates, uma empresa que fornece leituras de precisão cultural e outros serviços editoriais para autores e editores. “O grande problema é tratar o rigor ou a sensibilidade cultural como algo que pode ser facilmente inserido ou substituído”.

Alguns autores, quando confrontados com críticas sobre passagens ofensivas, responderam mudando seus livros. Na década de 1970, Dahl fez alterações em A Fantástica Fábrica de Chocolate. Diante de reclamações de que era racista sua descrição dos trabalhadores da fábrica como pigmeus de pele escura da África, ele transformou os trabalhadores em Oompa Loompas, pessoas pequenas de um país fictício chamado Loompaland.

Mas, quando um autor não está mais vivo, o processo de revisão póstuma pode ser mais complicado.

Theo Downes-Le Guin, filho e executor literário da escritora de ficção científica Ursula Le Guin, ficou surpreso ao receber um e-mail de uma editora no final do ano passado pedindo permissão para fazer alterações em sua série infantil Catwings. Publicado pela primeira vez em 1988, os livros contam a história de um grupo de gatinhos que nasceram com asas.

A princípio, ele ficou indeciso sobre se deveria aprovar as edições, que consistiam em um punhado de palavras em vários livros. “Ursula era extremamente cuidadosa com as palavras, então uma substituta nunca terá exatamente o mesmo significado”, disse ele em entrevista.

Ele finalmente decidiu que as revisões beneficiariam os leitores. Nas novas edições, que serão lançadas neste outono pela Simon & Schuster’s Atheneum Books, algumas palavras, como “manco” e “burro”, foram substituídas e uma nota foi adicionada para alertar os leitores sobre a atualização.

“Vai se perder um pouco da nuance da linguagem, mas também vai se ganhar alguma coisa”, disse Downes-Le Guin. “O que ganhamos é o potencial de não ofender”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times - Os patrimônios de várias figuras literárias reverenciadas estão alterando partes de obras conhecidas para adequá-las às sensibilidades contemporâneas, provocando um acalorado debate entre os leitores e o mundo literário sobre se e como os clássicos devem ser atualizados.

Nos romances de Agatha Christie, termos como “oriental”, “cigano” e “nativo” foram retirados, e as versões revisadas dos livros James Bond de Ian Fleming riscarão frases racistas e sexistas. Clássicos de Roald Dahl foram despojados de adjetivos como “gordo” e “feio”, juntamente com referências ao gênero e à cor da pele das personagens.

A escritora inglesa Agatha Christie, em foto de 1971 Foto: Arquivo/Estadão

Embora algumas mudanças tenham sido feitas em livros publicados nas últimas décadas, muitas vezes com pouco alarde, muitas das tentativas atuais de remover linguagem ofensiva são sistemáticas e atraíram intenso escrutínio público. O esforço deixou editoras e patrimônios literários com dificuldades para preservar a intenção original dos autores e, ao mesmo tempo, garantir que sua obra continue ressoando – e vendendo.

Encontrar o equilíbrio certo é um ato delicado: parte decisão de negócios, parte conjuração engenhosa da visão de mundo de um autor de outra época para adaptá-la ao presente.

“Minha bisavó não queria ofender ninguém”, disse James Prichard, bisneto de Christie, presidente e CEO da Agatha Christie Ltd. “Não acredito que precisemos deixar o que eu chamaria de linguagem ofensiva em nossos livros, porque, francamente, tudo o que me importa é que as pessoas possam desfrutar das histórias de Agatha Christie para sempre”.

Os riscos financeiros e culturais da tarefa são enormes. Autores como Dahl, Christie e Fleming, juntos, venderam bilhões de cópias de livros, e seus romances geraram franquias de cinema lucrativas. Em 2021, a Netflix comprou a Roald Dahl Story Co., incluindo os direitos de clássicos como O Bom Gigante Amigo, por US$ 1 bilhão. Deixar as obras inalteradas, com frases ofensivas e às vezes abertamente racistas, pode afastar novos públicos e prejudicar a reputação e o legado de um autor.

Imagem com livros e produtos relacionados à 'fantástica Fábrica de Chocolate', inspirados na história de Roald Dahl. Foto: Martins Fontes

Mas alterar um texto traz seus próprios riscos. Os críticos dizem que editar livros postumamente é uma afronta à autonomia criativa dos autores que pode equivaler à censura e que mesmo um esforço bem-intencionado para eliminar os preconceitos pode abrir a porta para mudanças mais abrangentes.

“É preciso pensar no precedente que você está estabelecendo e o que aconteceria se alguém com uma predisposição ou ideologia diferente pegasse a caneta e começasse a riscar as coisas”, disse Suzanne Nossel, CEO da PEN America.

As mudanças também podem alterar o registro literário e histórico, apagando as evidências dos preconceitos raciais e culturais de um autor e erodindo a capacidade da literatura de refletir o lugar e a época em que foi criada. “Às vezes, o valor histórico está intimamente ligado ao motivo pelo qual algo é ofensivo”, disse Nossel.

E também existe a chance de os leitores que apreciam as obras originais se revoltarem.

Os fãs de Dahl ficaram indignados em fevereiro com a notícia de que sua editora britânica havia alterado centenas de palavras de seus livros infantis. Inicialmente noticiadas pelo jornal britânico The Telegraph, as mudanças foram feitas depois que o espólio de Dahl iniciou uma revisão da obra do autor, em 2020, e contratou a consultoria Inclusive Minds, que visa promover “inclusão e acessibilidade na literatura infantil”, para avaliar a livros.

A reação foi imediata. Salman Rushdie chamou as edições de “censura absurda” e twittou que “o espólio Dahl deveria ter vergonha”. Philip Pullman disse à BBC Radio 4 que seria melhor deixar os livros de Dahl saírem de catálogo do que alterá-los sem o consentimento do autor. O clamor foi tão intenso que a Puffin, editora de Dahl, anunciou que manteria os textos inalterados para os leitores que preferissem os originais.

Daniel Craig em foto na estreia de filme baseado nas obras 'James Bond' Foto: Toby Melville/Reuters

“Não é incomum revisar a linguagem usada juntamente com a atualização de outros detalhes, como a capa e o layout da página de um livro”, disse Rick Behari, porta-voz da Roald Dahl Story Co., em comunicado divulgado em fevereiro, acrescentando que eles buscavam preservar “a irreverência e o espírito aguçado do texto original”.

Os textos mais antigos são regularmente atualizados quando reimpressos, mas, nos últimos anos, os editores e espólios começaram a revisar os clássicos literários de forma mais sistemática para encontrar e alterar passagens que possam ofender leitores. Em muitos casos, dizem os editores, as intervenções envolvem um punhado de palavras e não afetam a história.

Alguns na indústria editorial veem os esforços para tornar as obras antigas mais inclusivas como um sinal de progresso, desde que as mudanças sejam feitas com cuidado, e não como um apagamento impensado de termos ofensivos, sem levar em consideração um viés mais sutil e generalizado na visão de mundo de um escritor.

“Acho que é uma boa prática, da mesma forma que você atualiza livros didáticos”, disse Hannah Gómez, que supervisiona uma equipe de editores de sensibilidade na Kevin Anderson & Associates, uma empresa que fornece leituras de precisão cultural e outros serviços editoriais para autores e editores. “O grande problema é tratar o rigor ou a sensibilidade cultural como algo que pode ser facilmente inserido ou substituído”.

Alguns autores, quando confrontados com críticas sobre passagens ofensivas, responderam mudando seus livros. Na década de 1970, Dahl fez alterações em A Fantástica Fábrica de Chocolate. Diante de reclamações de que era racista sua descrição dos trabalhadores da fábrica como pigmeus de pele escura da África, ele transformou os trabalhadores em Oompa Loompas, pessoas pequenas de um país fictício chamado Loompaland.

Mas, quando um autor não está mais vivo, o processo de revisão póstuma pode ser mais complicado.

Theo Downes-Le Guin, filho e executor literário da escritora de ficção científica Ursula Le Guin, ficou surpreso ao receber um e-mail de uma editora no final do ano passado pedindo permissão para fazer alterações em sua série infantil Catwings. Publicado pela primeira vez em 1988, os livros contam a história de um grupo de gatinhos que nasceram com asas.

A princípio, ele ficou indeciso sobre se deveria aprovar as edições, que consistiam em um punhado de palavras em vários livros. “Ursula era extremamente cuidadosa com as palavras, então uma substituta nunca terá exatamente o mesmo significado”, disse ele em entrevista.

Ele finalmente decidiu que as revisões beneficiariam os leitores. Nas novas edições, que serão lançadas neste outono pela Simon & Schuster’s Atheneum Books, algumas palavras, como “manco” e “burro”, foram substituídas e uma nota foi adicionada para alertar os leitores sobre a atualização.

“Vai se perder um pouco da nuance da linguagem, mas também vai se ganhar alguma coisa”, disse Downes-Le Guin. “O que ganhamos é o potencial de não ofender”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times - Os patrimônios de várias figuras literárias reverenciadas estão alterando partes de obras conhecidas para adequá-las às sensibilidades contemporâneas, provocando um acalorado debate entre os leitores e o mundo literário sobre se e como os clássicos devem ser atualizados.

Nos romances de Agatha Christie, termos como “oriental”, “cigano” e “nativo” foram retirados, e as versões revisadas dos livros James Bond de Ian Fleming riscarão frases racistas e sexistas. Clássicos de Roald Dahl foram despojados de adjetivos como “gordo” e “feio”, juntamente com referências ao gênero e à cor da pele das personagens.

A escritora inglesa Agatha Christie, em foto de 1971 Foto: Arquivo/Estadão

Embora algumas mudanças tenham sido feitas em livros publicados nas últimas décadas, muitas vezes com pouco alarde, muitas das tentativas atuais de remover linguagem ofensiva são sistemáticas e atraíram intenso escrutínio público. O esforço deixou editoras e patrimônios literários com dificuldades para preservar a intenção original dos autores e, ao mesmo tempo, garantir que sua obra continue ressoando – e vendendo.

Encontrar o equilíbrio certo é um ato delicado: parte decisão de negócios, parte conjuração engenhosa da visão de mundo de um autor de outra época para adaptá-la ao presente.

“Minha bisavó não queria ofender ninguém”, disse James Prichard, bisneto de Christie, presidente e CEO da Agatha Christie Ltd. “Não acredito que precisemos deixar o que eu chamaria de linguagem ofensiva em nossos livros, porque, francamente, tudo o que me importa é que as pessoas possam desfrutar das histórias de Agatha Christie para sempre”.

Os riscos financeiros e culturais da tarefa são enormes. Autores como Dahl, Christie e Fleming, juntos, venderam bilhões de cópias de livros, e seus romances geraram franquias de cinema lucrativas. Em 2021, a Netflix comprou a Roald Dahl Story Co., incluindo os direitos de clássicos como O Bom Gigante Amigo, por US$ 1 bilhão. Deixar as obras inalteradas, com frases ofensivas e às vezes abertamente racistas, pode afastar novos públicos e prejudicar a reputação e o legado de um autor.

Imagem com livros e produtos relacionados à 'fantástica Fábrica de Chocolate', inspirados na história de Roald Dahl. Foto: Martins Fontes

Mas alterar um texto traz seus próprios riscos. Os críticos dizem que editar livros postumamente é uma afronta à autonomia criativa dos autores que pode equivaler à censura e que mesmo um esforço bem-intencionado para eliminar os preconceitos pode abrir a porta para mudanças mais abrangentes.

“É preciso pensar no precedente que você está estabelecendo e o que aconteceria se alguém com uma predisposição ou ideologia diferente pegasse a caneta e começasse a riscar as coisas”, disse Suzanne Nossel, CEO da PEN America.

As mudanças também podem alterar o registro literário e histórico, apagando as evidências dos preconceitos raciais e culturais de um autor e erodindo a capacidade da literatura de refletir o lugar e a época em que foi criada. “Às vezes, o valor histórico está intimamente ligado ao motivo pelo qual algo é ofensivo”, disse Nossel.

E também existe a chance de os leitores que apreciam as obras originais se revoltarem.

Os fãs de Dahl ficaram indignados em fevereiro com a notícia de que sua editora britânica havia alterado centenas de palavras de seus livros infantis. Inicialmente noticiadas pelo jornal britânico The Telegraph, as mudanças foram feitas depois que o espólio de Dahl iniciou uma revisão da obra do autor, em 2020, e contratou a consultoria Inclusive Minds, que visa promover “inclusão e acessibilidade na literatura infantil”, para avaliar a livros.

A reação foi imediata. Salman Rushdie chamou as edições de “censura absurda” e twittou que “o espólio Dahl deveria ter vergonha”. Philip Pullman disse à BBC Radio 4 que seria melhor deixar os livros de Dahl saírem de catálogo do que alterá-los sem o consentimento do autor. O clamor foi tão intenso que a Puffin, editora de Dahl, anunciou que manteria os textos inalterados para os leitores que preferissem os originais.

Daniel Craig em foto na estreia de filme baseado nas obras 'James Bond' Foto: Toby Melville/Reuters

“Não é incomum revisar a linguagem usada juntamente com a atualização de outros detalhes, como a capa e o layout da página de um livro”, disse Rick Behari, porta-voz da Roald Dahl Story Co., em comunicado divulgado em fevereiro, acrescentando que eles buscavam preservar “a irreverência e o espírito aguçado do texto original”.

Os textos mais antigos são regularmente atualizados quando reimpressos, mas, nos últimos anos, os editores e espólios começaram a revisar os clássicos literários de forma mais sistemática para encontrar e alterar passagens que possam ofender leitores. Em muitos casos, dizem os editores, as intervenções envolvem um punhado de palavras e não afetam a história.

Alguns na indústria editorial veem os esforços para tornar as obras antigas mais inclusivas como um sinal de progresso, desde que as mudanças sejam feitas com cuidado, e não como um apagamento impensado de termos ofensivos, sem levar em consideração um viés mais sutil e generalizado na visão de mundo de um escritor.

“Acho que é uma boa prática, da mesma forma que você atualiza livros didáticos”, disse Hannah Gómez, que supervisiona uma equipe de editores de sensibilidade na Kevin Anderson & Associates, uma empresa que fornece leituras de precisão cultural e outros serviços editoriais para autores e editores. “O grande problema é tratar o rigor ou a sensibilidade cultural como algo que pode ser facilmente inserido ou substituído”.

Alguns autores, quando confrontados com críticas sobre passagens ofensivas, responderam mudando seus livros. Na década de 1970, Dahl fez alterações em A Fantástica Fábrica de Chocolate. Diante de reclamações de que era racista sua descrição dos trabalhadores da fábrica como pigmeus de pele escura da África, ele transformou os trabalhadores em Oompa Loompas, pessoas pequenas de um país fictício chamado Loompaland.

Mas, quando um autor não está mais vivo, o processo de revisão póstuma pode ser mais complicado.

Theo Downes-Le Guin, filho e executor literário da escritora de ficção científica Ursula Le Guin, ficou surpreso ao receber um e-mail de uma editora no final do ano passado pedindo permissão para fazer alterações em sua série infantil Catwings. Publicado pela primeira vez em 1988, os livros contam a história de um grupo de gatinhos que nasceram com asas.

A princípio, ele ficou indeciso sobre se deveria aprovar as edições, que consistiam em um punhado de palavras em vários livros. “Ursula era extremamente cuidadosa com as palavras, então uma substituta nunca terá exatamente o mesmo significado”, disse ele em entrevista.

Ele finalmente decidiu que as revisões beneficiariam os leitores. Nas novas edições, que serão lançadas neste outono pela Simon & Schuster’s Atheneum Books, algumas palavras, como “manco” e “burro”, foram substituídas e uma nota foi adicionada para alertar os leitores sobre a atualização.

“Vai se perder um pouco da nuance da linguagem, mas também vai se ganhar alguma coisa”, disse Downes-Le Guin. “O que ganhamos é o potencial de não ofender”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times - Os patrimônios de várias figuras literárias reverenciadas estão alterando partes de obras conhecidas para adequá-las às sensibilidades contemporâneas, provocando um acalorado debate entre os leitores e o mundo literário sobre se e como os clássicos devem ser atualizados.

Nos romances de Agatha Christie, termos como “oriental”, “cigano” e “nativo” foram retirados, e as versões revisadas dos livros James Bond de Ian Fleming riscarão frases racistas e sexistas. Clássicos de Roald Dahl foram despojados de adjetivos como “gordo” e “feio”, juntamente com referências ao gênero e à cor da pele das personagens.

A escritora inglesa Agatha Christie, em foto de 1971 Foto: Arquivo/Estadão

Embora algumas mudanças tenham sido feitas em livros publicados nas últimas décadas, muitas vezes com pouco alarde, muitas das tentativas atuais de remover linguagem ofensiva são sistemáticas e atraíram intenso escrutínio público. O esforço deixou editoras e patrimônios literários com dificuldades para preservar a intenção original dos autores e, ao mesmo tempo, garantir que sua obra continue ressoando – e vendendo.

Encontrar o equilíbrio certo é um ato delicado: parte decisão de negócios, parte conjuração engenhosa da visão de mundo de um autor de outra época para adaptá-la ao presente.

“Minha bisavó não queria ofender ninguém”, disse James Prichard, bisneto de Christie, presidente e CEO da Agatha Christie Ltd. “Não acredito que precisemos deixar o que eu chamaria de linguagem ofensiva em nossos livros, porque, francamente, tudo o que me importa é que as pessoas possam desfrutar das histórias de Agatha Christie para sempre”.

Os riscos financeiros e culturais da tarefa são enormes. Autores como Dahl, Christie e Fleming, juntos, venderam bilhões de cópias de livros, e seus romances geraram franquias de cinema lucrativas. Em 2021, a Netflix comprou a Roald Dahl Story Co., incluindo os direitos de clássicos como O Bom Gigante Amigo, por US$ 1 bilhão. Deixar as obras inalteradas, com frases ofensivas e às vezes abertamente racistas, pode afastar novos públicos e prejudicar a reputação e o legado de um autor.

Imagem com livros e produtos relacionados à 'fantástica Fábrica de Chocolate', inspirados na história de Roald Dahl. Foto: Martins Fontes

Mas alterar um texto traz seus próprios riscos. Os críticos dizem que editar livros postumamente é uma afronta à autonomia criativa dos autores que pode equivaler à censura e que mesmo um esforço bem-intencionado para eliminar os preconceitos pode abrir a porta para mudanças mais abrangentes.

“É preciso pensar no precedente que você está estabelecendo e o que aconteceria se alguém com uma predisposição ou ideologia diferente pegasse a caneta e começasse a riscar as coisas”, disse Suzanne Nossel, CEO da PEN America.

As mudanças também podem alterar o registro literário e histórico, apagando as evidências dos preconceitos raciais e culturais de um autor e erodindo a capacidade da literatura de refletir o lugar e a época em que foi criada. “Às vezes, o valor histórico está intimamente ligado ao motivo pelo qual algo é ofensivo”, disse Nossel.

E também existe a chance de os leitores que apreciam as obras originais se revoltarem.

Os fãs de Dahl ficaram indignados em fevereiro com a notícia de que sua editora britânica havia alterado centenas de palavras de seus livros infantis. Inicialmente noticiadas pelo jornal britânico The Telegraph, as mudanças foram feitas depois que o espólio de Dahl iniciou uma revisão da obra do autor, em 2020, e contratou a consultoria Inclusive Minds, que visa promover “inclusão e acessibilidade na literatura infantil”, para avaliar a livros.

A reação foi imediata. Salman Rushdie chamou as edições de “censura absurda” e twittou que “o espólio Dahl deveria ter vergonha”. Philip Pullman disse à BBC Radio 4 que seria melhor deixar os livros de Dahl saírem de catálogo do que alterá-los sem o consentimento do autor. O clamor foi tão intenso que a Puffin, editora de Dahl, anunciou que manteria os textos inalterados para os leitores que preferissem os originais.

Daniel Craig em foto na estreia de filme baseado nas obras 'James Bond' Foto: Toby Melville/Reuters

“Não é incomum revisar a linguagem usada juntamente com a atualização de outros detalhes, como a capa e o layout da página de um livro”, disse Rick Behari, porta-voz da Roald Dahl Story Co., em comunicado divulgado em fevereiro, acrescentando que eles buscavam preservar “a irreverência e o espírito aguçado do texto original”.

Os textos mais antigos são regularmente atualizados quando reimpressos, mas, nos últimos anos, os editores e espólios começaram a revisar os clássicos literários de forma mais sistemática para encontrar e alterar passagens que possam ofender leitores. Em muitos casos, dizem os editores, as intervenções envolvem um punhado de palavras e não afetam a história.

Alguns na indústria editorial veem os esforços para tornar as obras antigas mais inclusivas como um sinal de progresso, desde que as mudanças sejam feitas com cuidado, e não como um apagamento impensado de termos ofensivos, sem levar em consideração um viés mais sutil e generalizado na visão de mundo de um escritor.

“Acho que é uma boa prática, da mesma forma que você atualiza livros didáticos”, disse Hannah Gómez, que supervisiona uma equipe de editores de sensibilidade na Kevin Anderson & Associates, uma empresa que fornece leituras de precisão cultural e outros serviços editoriais para autores e editores. “O grande problema é tratar o rigor ou a sensibilidade cultural como algo que pode ser facilmente inserido ou substituído”.

Alguns autores, quando confrontados com críticas sobre passagens ofensivas, responderam mudando seus livros. Na década de 1970, Dahl fez alterações em A Fantástica Fábrica de Chocolate. Diante de reclamações de que era racista sua descrição dos trabalhadores da fábrica como pigmeus de pele escura da África, ele transformou os trabalhadores em Oompa Loompas, pessoas pequenas de um país fictício chamado Loompaland.

Mas, quando um autor não está mais vivo, o processo de revisão póstuma pode ser mais complicado.

Theo Downes-Le Guin, filho e executor literário da escritora de ficção científica Ursula Le Guin, ficou surpreso ao receber um e-mail de uma editora no final do ano passado pedindo permissão para fazer alterações em sua série infantil Catwings. Publicado pela primeira vez em 1988, os livros contam a história de um grupo de gatinhos que nasceram com asas.

A princípio, ele ficou indeciso sobre se deveria aprovar as edições, que consistiam em um punhado de palavras em vários livros. “Ursula era extremamente cuidadosa com as palavras, então uma substituta nunca terá exatamente o mesmo significado”, disse ele em entrevista.

Ele finalmente decidiu que as revisões beneficiariam os leitores. Nas novas edições, que serão lançadas neste outono pela Simon & Schuster’s Atheneum Books, algumas palavras, como “manco” e “burro”, foram substituídas e uma nota foi adicionada para alertar os leitores sobre a atualização.

“Vai se perder um pouco da nuance da linguagem, mas também vai se ganhar alguma coisa”, disse Downes-Le Guin. “O que ganhamos é o potencial de não ofender”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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