Rumores de uma poesia do pensamento na obra de Leonardo Fróes


Leonardo Fróes lança a coletânea ‘Trilha’, que reúne poemas de nove livros mais alguns inéditos

Por Mariana Mandelli

A três anos do seu cinquentenário de poesia, Leonardo Fróes lança a coletânea Trilha, que abrange poemas de nove livros mais alguns inéditos. A seleta não obedece a uma ordem cronológica dos poemas, mas os embaralha, descontinuando o tempo em que foram escritos e assim misturando as diferenças de ênfase existentes na linguagem. Só isso já dá ao leitor uma noção bastante diferente daquela, de ruptura, que se usa fazer entre um poeta morador da metrópole e esse mesmo poeta então retirado da cidade para o meio da natureza, num sítio cheio de árvores e bichos, na serra carioca.

Emoção simples. Fróes constrói uma poesia que possui elo vital com as energias do corpo e da terra Foto: Sérgio Cohen/Divulgação

Nessa trilha da vida passo a passo com a poesia, considerando a radicalidade da mudança de entorno, da cidade para o mato, que marcou a trajetória de Fróes desde os anos de 1970, não é tanto o distanciamento do ruído urbano e uma harmonia com a respiração da natureza o que prevalece, enquanto expressão, na leitura da coletânea, senão o modo como se vão alternando, na dicção do poeta, os rumores do seu pensamento. Pois não é que a linguagem vá se despojando, como acontece, por exemplo, com a poesia de Ricardo Lima, um dos melhores amigos de Fróes, seu interlocutor nas “conversas em silêncio”.

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Ao contrário, Trilha mostra o panorama de uma poesia que está a pensar constantemente, mesmo que de maneira menos loquaz e descentrada do “eu” aqui e ali – sobretudo nos antológicos poemas de 2005 –, uma poesia que está a pensar o sujeito ou a arrastá-lo como sombra do poeta em seu ideal de uma “desambição feliz”, “uma emoção simples”, um “despovoamento da pessoa”, uma compreensão de sua “insignificância perfeita”. Belas e significativas imagens, como a de um portão de ferro enlaçado pelas plantas, de um hotel caído no esquecimento, onde nada ficou “de um secreto rumor, senão raízes”, ou de “uma inscrição na pedra à beira-rio”, que a água lavou, corroendo-lhe os signos, são imagens que encarnam a reincidência de um despojamento enquanto assunto de interesse poético e filosófico do autor, sem que esse assunto, no entanto, se converta no próprio sujeito de uma linguagem despojada.

Com isso, tem-se uma poesia pensante cuja temática compreende o erotismo da vida selvagem, a busca por uma despersonalização do sujeito enfim confundido com a natureza, a consciência de um elo vital com as energias do corpo e da terra, uma empatia com a filosofia oriental na atenção ao poder contemplativo. Todas essas preocupações, feitas matéria do pensamento, acabam por reger uma espécie de moral poética, que transparece às vezes de antemão nos títulos de poemas, como Introdução à Arte das Montanhas ou Terapia dos Brotos. Nesse último, o ensinamento culmina nos versos finais: “Ouça pois esse conselho / de quem fez o que podia, pegando na enxada para / dar corpo ao que não se via. / Aproveite bem a hora, / e plante, por terapia, / ou para matar a fome, / entre os homens, de empatia”. O ato de lavrar a terra, de curvar-se para dar origem a um broto novo, faz o momento de “uma estranha parceria / que abaixa a crista do homem” e lhe devolve à humildade em sua raiz etimológica: húmus, origem da palavra homem.

Interessante lembrar aqui o poema que encerra a coletânea, A Gata Recolhida, que apresenta claramente uma “Moral”: “Cuidado com o sublime enlevo / De seu valor e seu relevo: / O homem que se julga o tal, / Dando-se importância total, / E acha que tudo, à volta, em cheio, / Se move a tua com ele ao meio, / Verá nas horas de aflição / A insensatez dessa expectação”. Essa vigilância concentrada do sujeito poético, observando-se a si mesmo como alguém capaz de libertar-se das próprias representações, reconciliando-se com um “amor que pacifica / qualquer onda de susto ou qualquer guerra”, comunica um ensinamento que transcende o pessoal e aponta para “qualquer coisa maior (...) / nesta ausência de distinção entre nós: / a glória, a beleza, o alívio, / coesão impessoal da matéria, a eternidade”. Senão uma lição, ao menos uma perspectiva oportuna aos leitores em geral, aos poetas em particular.

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TRILHA: POEMAS 1968-2015 Autor: Leonardo Fróes Editora: Azougue (136 págs., R$ 48)MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, TEMPO DE VOLTAR, ENTRE OUTRAS OBRAS

A três anos do seu cinquentenário de poesia, Leonardo Fróes lança a coletânea Trilha, que abrange poemas de nove livros mais alguns inéditos. A seleta não obedece a uma ordem cronológica dos poemas, mas os embaralha, descontinuando o tempo em que foram escritos e assim misturando as diferenças de ênfase existentes na linguagem. Só isso já dá ao leitor uma noção bastante diferente daquela, de ruptura, que se usa fazer entre um poeta morador da metrópole e esse mesmo poeta então retirado da cidade para o meio da natureza, num sítio cheio de árvores e bichos, na serra carioca.

Emoção simples. Fróes constrói uma poesia que possui elo vital com as energias do corpo e da terra Foto: Sérgio Cohen/Divulgação

Nessa trilha da vida passo a passo com a poesia, considerando a radicalidade da mudança de entorno, da cidade para o mato, que marcou a trajetória de Fróes desde os anos de 1970, não é tanto o distanciamento do ruído urbano e uma harmonia com a respiração da natureza o que prevalece, enquanto expressão, na leitura da coletânea, senão o modo como se vão alternando, na dicção do poeta, os rumores do seu pensamento. Pois não é que a linguagem vá se despojando, como acontece, por exemplo, com a poesia de Ricardo Lima, um dos melhores amigos de Fróes, seu interlocutor nas “conversas em silêncio”.

Ao contrário, Trilha mostra o panorama de uma poesia que está a pensar constantemente, mesmo que de maneira menos loquaz e descentrada do “eu” aqui e ali – sobretudo nos antológicos poemas de 2005 –, uma poesia que está a pensar o sujeito ou a arrastá-lo como sombra do poeta em seu ideal de uma “desambição feliz”, “uma emoção simples”, um “despovoamento da pessoa”, uma compreensão de sua “insignificância perfeita”. Belas e significativas imagens, como a de um portão de ferro enlaçado pelas plantas, de um hotel caído no esquecimento, onde nada ficou “de um secreto rumor, senão raízes”, ou de “uma inscrição na pedra à beira-rio”, que a água lavou, corroendo-lhe os signos, são imagens que encarnam a reincidência de um despojamento enquanto assunto de interesse poético e filosófico do autor, sem que esse assunto, no entanto, se converta no próprio sujeito de uma linguagem despojada.

Com isso, tem-se uma poesia pensante cuja temática compreende o erotismo da vida selvagem, a busca por uma despersonalização do sujeito enfim confundido com a natureza, a consciência de um elo vital com as energias do corpo e da terra, uma empatia com a filosofia oriental na atenção ao poder contemplativo. Todas essas preocupações, feitas matéria do pensamento, acabam por reger uma espécie de moral poética, que transparece às vezes de antemão nos títulos de poemas, como Introdução à Arte das Montanhas ou Terapia dos Brotos. Nesse último, o ensinamento culmina nos versos finais: “Ouça pois esse conselho / de quem fez o que podia, pegando na enxada para / dar corpo ao que não se via. / Aproveite bem a hora, / e plante, por terapia, / ou para matar a fome, / entre os homens, de empatia”. O ato de lavrar a terra, de curvar-se para dar origem a um broto novo, faz o momento de “uma estranha parceria / que abaixa a crista do homem” e lhe devolve à humildade em sua raiz etimológica: húmus, origem da palavra homem.

Interessante lembrar aqui o poema que encerra a coletânea, A Gata Recolhida, que apresenta claramente uma “Moral”: “Cuidado com o sublime enlevo / De seu valor e seu relevo: / O homem que se julga o tal, / Dando-se importância total, / E acha que tudo, à volta, em cheio, / Se move a tua com ele ao meio, / Verá nas horas de aflição / A insensatez dessa expectação”. Essa vigilância concentrada do sujeito poético, observando-se a si mesmo como alguém capaz de libertar-se das próprias representações, reconciliando-se com um “amor que pacifica / qualquer onda de susto ou qualquer guerra”, comunica um ensinamento que transcende o pessoal e aponta para “qualquer coisa maior (...) / nesta ausência de distinção entre nós: / a glória, a beleza, o alívio, / coesão impessoal da matéria, a eternidade”. Senão uma lição, ao menos uma perspectiva oportuna aos leitores em geral, aos poetas em particular.

TRILHA: POEMAS 1968-2015 Autor: Leonardo Fróes Editora: Azougue (136 págs., R$ 48)MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, TEMPO DE VOLTAR, ENTRE OUTRAS OBRAS

A três anos do seu cinquentenário de poesia, Leonardo Fróes lança a coletânea Trilha, que abrange poemas de nove livros mais alguns inéditos. A seleta não obedece a uma ordem cronológica dos poemas, mas os embaralha, descontinuando o tempo em que foram escritos e assim misturando as diferenças de ênfase existentes na linguagem. Só isso já dá ao leitor uma noção bastante diferente daquela, de ruptura, que se usa fazer entre um poeta morador da metrópole e esse mesmo poeta então retirado da cidade para o meio da natureza, num sítio cheio de árvores e bichos, na serra carioca.

Emoção simples. Fróes constrói uma poesia que possui elo vital com as energias do corpo e da terra Foto: Sérgio Cohen/Divulgação

Nessa trilha da vida passo a passo com a poesia, considerando a radicalidade da mudança de entorno, da cidade para o mato, que marcou a trajetória de Fróes desde os anos de 1970, não é tanto o distanciamento do ruído urbano e uma harmonia com a respiração da natureza o que prevalece, enquanto expressão, na leitura da coletânea, senão o modo como se vão alternando, na dicção do poeta, os rumores do seu pensamento. Pois não é que a linguagem vá se despojando, como acontece, por exemplo, com a poesia de Ricardo Lima, um dos melhores amigos de Fróes, seu interlocutor nas “conversas em silêncio”.

Ao contrário, Trilha mostra o panorama de uma poesia que está a pensar constantemente, mesmo que de maneira menos loquaz e descentrada do “eu” aqui e ali – sobretudo nos antológicos poemas de 2005 –, uma poesia que está a pensar o sujeito ou a arrastá-lo como sombra do poeta em seu ideal de uma “desambição feliz”, “uma emoção simples”, um “despovoamento da pessoa”, uma compreensão de sua “insignificância perfeita”. Belas e significativas imagens, como a de um portão de ferro enlaçado pelas plantas, de um hotel caído no esquecimento, onde nada ficou “de um secreto rumor, senão raízes”, ou de “uma inscrição na pedra à beira-rio”, que a água lavou, corroendo-lhe os signos, são imagens que encarnam a reincidência de um despojamento enquanto assunto de interesse poético e filosófico do autor, sem que esse assunto, no entanto, se converta no próprio sujeito de uma linguagem despojada.

Com isso, tem-se uma poesia pensante cuja temática compreende o erotismo da vida selvagem, a busca por uma despersonalização do sujeito enfim confundido com a natureza, a consciência de um elo vital com as energias do corpo e da terra, uma empatia com a filosofia oriental na atenção ao poder contemplativo. Todas essas preocupações, feitas matéria do pensamento, acabam por reger uma espécie de moral poética, que transparece às vezes de antemão nos títulos de poemas, como Introdução à Arte das Montanhas ou Terapia dos Brotos. Nesse último, o ensinamento culmina nos versos finais: “Ouça pois esse conselho / de quem fez o que podia, pegando na enxada para / dar corpo ao que não se via. / Aproveite bem a hora, / e plante, por terapia, / ou para matar a fome, / entre os homens, de empatia”. O ato de lavrar a terra, de curvar-se para dar origem a um broto novo, faz o momento de “uma estranha parceria / que abaixa a crista do homem” e lhe devolve à humildade em sua raiz etimológica: húmus, origem da palavra homem.

Interessante lembrar aqui o poema que encerra a coletânea, A Gata Recolhida, que apresenta claramente uma “Moral”: “Cuidado com o sublime enlevo / De seu valor e seu relevo: / O homem que se julga o tal, / Dando-se importância total, / E acha que tudo, à volta, em cheio, / Se move a tua com ele ao meio, / Verá nas horas de aflição / A insensatez dessa expectação”. Essa vigilância concentrada do sujeito poético, observando-se a si mesmo como alguém capaz de libertar-se das próprias representações, reconciliando-se com um “amor que pacifica / qualquer onda de susto ou qualquer guerra”, comunica um ensinamento que transcende o pessoal e aponta para “qualquer coisa maior (...) / nesta ausência de distinção entre nós: / a glória, a beleza, o alívio, / coesão impessoal da matéria, a eternidade”. Senão uma lição, ao menos uma perspectiva oportuna aos leitores em geral, aos poetas em particular.

TRILHA: POEMAS 1968-2015 Autor: Leonardo Fróes Editora: Azougue (136 págs., R$ 48)MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, TEMPO DE VOLTAR, ENTRE OUTRAS OBRAS

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