Ruth descobriu a literatura porque seus pais liam muito para ela. E seu avô era o “maior contador de histórias do mundo”. Lá pelos seus 13, 14 anos, deixou a leitura um pouco de lado e passou a desenhar mais. Após uma das visitas do avô à sua casa, recebeu uma carta que dizia: “Vi você interessada em desenho, mas sempre pensei que você fosse ser escritora”. Ele nunca soube o que aconteceu depois, mas anteviu que a pequena Ruth seria uma das grandes autoras de histórias infantis do País. Essa ampliação de foco no início da adolescência pode ser, na opinião de Ruth Rocha, hoje com 85 anos, uma das razões que explicam por que perdemos leitores pelo caminho – um dos dados alarmantes da recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. Não foi o caso dela.
O levantamento mostrou que o brasileiro lê mais por “gosto” quando é criança. Essa foi a resposta de 40% dos entrevistados de 5 a 10 anos e de 42% dos de 11 a 13. Entre as demais faixas etárias, o porcentual cai para 29% quando analisamos a motivação de adolescentes entre 14 e 17, para 21%, entre 18 e 24, para 20%, de 25 a 29, para 16%, dos 30 aos 39, e por aí vai. Alguns continuam lendo para se atualizar e se distrair, por crescimento pessoal, motivos religiosos e exigência escolar ou profissional. Mas a concorrência com outras atividades faz com que muita gente se esqueça de como era gostoso ouvir ou ler uma história. Ainda segundo a pesquisa, 44% dos brasileiros não leem.
“Até a adolescência, as crianças são mais ou menos parecidas porque passam pelas mesmas etapas de desenvolvimento. Depois, vão se individualizando, tendo seus próprios interesses e caminhos, vão descobrindo as diferenças – o que cada um gosta e quer – e se modificam. Esse é um dos fatores que podem influir para o afastamento da leitura, mas não sei dizer ao certo por que. É um mistério”, diz Ruth Rocha, autora de mais de uma centena de livros, entre os quais o best-seller Marcelo, Marmelo, Martelo, com 12 milhões de exemplares vendidos desde 1969. Mas ela pondera: “Existe também um tipo de gente que nunca deixa de ler”. Um adendo: e existem aqueles que chegarão aos livros, a um outro tipo de literatura, por outros caminhos, como prova o recente fenômeno de obras nascidas de canais de sucesso do YouTube visto nas listas de mais vendidos.
“A leitura é muito rica, profunda e importante. Quem lê se modifica. Eu, aos 85 anos, leio e me modifico” completa. Para ela, “a leitura treina para a leitura”, portanto, é melhor ler coisas ruins do que não ler nada.
Ana Maria Machado, também grande autora de obras infantis e juvenis (e para adultos), considera que há razões para atribuir o problema a adultos que não leem. “Principalmente, professores que não têm intimidade com livros por serem a primeira geração em suas famílias a levar os estudos adiante. Então não falam em livros, ideias lidas, argumentos que encontraram em autores interessantes. E o jovem fica sujeito a leituras obrigatórias na escola que não são do agrado do professor nem despertam o entusiasmo dos mestres, e viram apenas obrigação de fazer prova”, diz.
De fato, quando voltamos à pesquisa Retratos da Leitura os dados desanimam. Tudo bem, 63% dos professores entrevistados disseram gostar muito de ler – mas 31% deles gostam pouco e 16% não gostam. E que livro acabaram de ler ou estão lendo? A Bíblia encabeça a lista e é seguida por Esperança, O Monge e o Executivo, O Amor nos Tempos do Cólera, Bom Dia Espírito Santo, etc. Depois da mãe ou de um responsável do sexo feminino, são os professores os principais influenciadores do gosto pela leitura.
Para Ana Maria Machado, a adolescência é a fase em que escolhemos ídolos e modelos. “Se os que encontramos em oferta vivem num mundo sem livro, fica mais difícil não achar que livro era brinquedo de criança e fica para trás quando a gente cresce”, completa. Houve um tempo em que o governo federal tinha um programa chamado Literatura em Minha Casa, e crianças ganhavam kits para iniciar suas bibliotecas. Ele foi criado um pouco depois do Programa Nacional da Biblioteca Escolar e já foi extinto. O medo, agora, depois de cancelados os editais de 2015 e sem perspectiva de ver um novo ser aberto este ano, é que o PNBE, porta de entrada de literatura de ficção nas escolas federais de todo o País, seja interrompido.
Os 20 melhores livros infantis e juvenis de 2015
A discussão proposta pelo Estado às duas escritoras ocorre, também, em meio a essa aflição cujos efeitos, por ora, são sentidos pelo mercado editorial e insinuados (2016 será pior) na recente Pesquisa Produção e Venda do Mercado Editorial 2015. Dos 34 milhões de exemplares que deixou de imprimir em 2015, cerca de 11 milhões seriam destinados a compras governamentais – esta é a média anual de aquisição do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Vale lembrar que secretarias e prefeituras também puxaram o freio de mão nesses dois últimos anos. Se demorar muito a voltar para sua normalidade, aí serão as bibliotecas escolares, abastecidas desde 1998 pelo programa, que podem ficar desfalcadas de lançamentos.
“Ninguém se importou com a suspensão da compra de livro de literatura porque as famílias e professores não têm noção do que isso significa. O gasto com livro didático é muito maior do que com obras literárias, e ele não forma leitor”, diz Elizabeth Serra, secretária-geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, que promove, até o dia 19, o 18.º Salão do Livro para Crianças e Jovens. Um dos mais consistentes eventos de formação de leitores do País, ele reflete o ânimo do mercado editorial. Em 2014, havia 71 expositores. Em 2015, 61. Agora, 37. A programação, no entanto, segue com qualidade, com nomes como Ana Maria Machado, Marina Colasanti e Ziraldo, em seus espaços para as diferentes faixas etárias (para professores, inclusive) e com a meta de dar um livro para cada criança.
É preciso resistir. “A literatura é a única que pode proporcionar o caminho da indagação e desenvolver a criatividade”, conclui.