Ruy Castro: 'Não podemos confiar em um biografado vivo'


Autor responsável por criar um dinâmico mercado brasileiro de biografias com 'Chega de Saudade', de 1990, transpondo para o antes duro texto biográfico o charme das narrativas literárias, Ruy conta histórias de bastidores de sua profissão e justifica que jamais fez ou fará dois tipos de biografias: a de biografados vivos e as encomendadas

Por Julio Maria
Atualização:

Ruy Castro abriu os portões da biografia moderna brasileira com sua saborosa reconstituição Chega de Saudade, lançada em 1990. Com e a partir dela, uma nova geração de autores surgiu, editoras descobriram um mercado lucrativo e a prosa biográfica, antes dura e acadêmica, ganhou a flexibilidade estilística transposta das narrativas literárias. O próprio Ruy a testou em seus limites, lançando obras sobre as vidas de Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, além das “biografias coletivas” aventuradas pelo Rio dos anos 20, em Metrópole à Beira-Mar, e pelos anos do samba-canção com A Noite do Meu Bem.

Ruy em seu apartamento, no Leblon Foto: WILTON CASTRO/ESTADÃO

Confinado em seu apartamento no Rio por força da pandemia e, antes dela, por instinto de sua própria natureza, ele não para de produzir. Sempre pela editora Companhia das Letras, tem a lançar uma nova edição do livro Ela É Carioca – Uma Enciclopédia de Ipanema, com sete verbetes novos. O original, de 1999, traz 231 perfis de pessoas, lugares e instituições marcantes do bairro de Ipanema. “Eu consegui me transportar ao passado e escrever mais ou menos do mesmo jeito que escrevia quando lancei esse livro. Engraçado, hoje eu escrevo de forma mais simples.” Prepara ainda uma antologia de frases, crônicas, poemas, contos e reportagens dos jornalistas e escritores personagens de seu recente Metrópole à Beira-Mar chamado As Vozes da Metrópole – Uma Antologia do Rio dos Anos 1920. E faz, algo que se torna o maior tema desta entrevista, um livro sobre o fazer biográfico chamado A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia. Um quarto projeto tocado na paralela é Os Perigos do Imperador – Um Romance do Segundo Reinado, uma trama policial vivida no Rio de 1870 que tem como protagonista Dom Pedro II.

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A entrevista com Ruy é, então, sobre biografias e os códigos que ele mesmo criou para sobreviver com dignidade na selva habitada por herdeiros alvoroçados e advogados ambiciosos. 1. Nunca fazer biografia de pessoas vivas – elas sempre darão um jeito de trair o biógrafo. E 2. Nunca fazer biografias por encomenda – um livro em que o biografado paga para o biógrafo falar sobre ele não pode dar certo.

Ruy, porque sua decisão de não biografar pessoas vivas? Olha, posso garantir que não é por medo do biografado ou de processos, porque herdeiros também processam. Você não pode contar uma história que ainda não acabou. Veja: você acaba de fazer a biografia para a qual levou anos apurando informações e ouvindo centenas de pessoas. No dia seguinte ao lançamento do livro, o biografado se envolve em um escândalo e te passa uma rasteira.

O vivo atrapalha a biografia? Não se pode confiar no biografado vivo porque a vida dele continua. Sua biografia fica congelada, mas ele segue vivendo. Seu livro vai ficar desatualizado. Um caso clássico disso é a biografia de Woody Allen. O autor Eric Lax publicou o livro em dezembro de 1991. Em janeiro de 1992, estourou o caso de Woody com a enteada, um escândalo. O biógrafo passou cinco anos conversando, convivendo e entrevistando Woody que, no entanto, namorava a enteada um ano antes de o livro sair. Então, durante o último ano de convívio com o biógrafo, o biografado já estava vivendo um episódio que omitia do biógrafo. Aí, o leitor se pergunta: se o biógrafo não descobriu isso, quais outras coisas Allen pode ter omitido também?

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O fato de saber que será lido pela família de um biografado mesmo morto não influencia o biógrafo que não quer problemas com ela? Qual é a extensão dessa liberdade? Não vejo diferença alguma entre vivos e mortos porque a família continua lá. Fiz três biografias de personagens mortos, Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Sobre Nelson Rodrigues, os familiares nunca me perdoaram porque não assumi a versão deles sobre várias histórias que colidiam com a versão da viúva de Nelson, d. Elza. E ela também brigou comigo pelo mesmo motivo. Só que, quando as irmãs deram entrevista ao Jornal do Brasil me esculhambando, d. Elza leu aquilo e, como odiava as irmãs do Nelson, resolveu ficar ao meu lado. No caso das filhas do Garrincha, fui processado pelos advogados delas. No caso de Carmen, tive problema com as sobrinhas. Então, você nunca estará livre de problemas.

Houve problemas com 'Chega de Saudade'? Muitas pessoas estavam vivas quando o livro saiu, incluindo João Gilberto. Eu sei que as passagens que envolvem maconha o irritaram profundamente. Hoje, posso falar que dentre as minhas fontes estavam a irmã dele, amigos de Juazeiro (da Bahia, terra de João), pessoas íntimas. Sobre Tom Jobim, conto lá algumas pequenas aventuras extraconjugais, vividas no tempo em que ele era casado com a Teresa. Fiquei sabendo também que a Teresa ficou chateada. Podia até ter pensado no caso da Teresa, mas no caso do João, nem pensar. Desde que você apure, você tem de contar a história.

Qualquer história? Sim. No caso do Garrincha, por exemplo. Ele já tinha morrido, mas a Elza estava viva. As pessoas me perguntavam na rua se eu ia contar que Garrincha havia estuprado a filha da Elza. Fui apurar e vi que aquilo era uma mentira, uma sacanagem. Falei com várias testemunhas e a própria Elza, que me disse: “Se Mané tivesse feito isso, não acha que ele teria matado a minha filha?”. Agora, vamos supor que fosse verdade. Eu, infelizmente, iria publicar.

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Verdade que você foi chamado para fazer a biografia da Elza? Fui sim. Ela me ligou há uns dois anos. Eu respondi, Elza, eu já fiz sua biografia. E ela disse: “Ah, você fez a do Mané”. Mas o problema é que, fazendo a de Elza, eu teria de passar por tudo de novo. Por que eu nunca fiz livro sobre iê-iê-iê ou tropicalismo? Porque não quero passar de novo por tudo o que passei em Chega de Saudade. Por que nunca fiz biografia de Antonio Maria nem de Sérgio Porto? Para não repetir tudo o que eu falei de Nelson Rodrigues. Por que eu não fiz a biografia de Aracy de Almeida? Não quero repassar o caminho da Carmen Miranda. Gosto de mudar completamente de universo. Quando falei isso para Elza, ela se virou para outra pessoa no telefone e disse: “Ele não quer”. Quando soube que o Zeca Camargo iria fazer a biografia, encontrei com ele na Flip e perguntei: “E aí Zeca, já decidiu que ano a Elza vai nascer?”. Ele disse que tinha um documento apontando o ano de 1930. Era exatamente isso.

Mas Elza, de qualquer forma, está viva. Nem cheguei a falar isso para ela. Isso eu falei para a Dercy Gonçalves. Depois de alguns meses que recusei o pedido dela para escrever seu livro, estava vendo o programa da Hebe Camargo. Hebe perguntou: “E aí Dercy, quando vamos ter a sua biografia?”. E ela respondeu: “Eu falei para esse tal de Ruy Castro fazer, mas ele só gosta de morto”. Olha, tenho aqui uma lista com 100 pessoas que me pediram para fazer suas biografias e não aceitei. Tem desde o presidente do Pão de Açúcar, Abílio Diniz, até ministros do STF, famílias importantes.

Não atendeu a nenhum pedido? Não me orgulho de ter sido convidado, mas de ter resistido, porque foram propostas muito tentadoras. Teve uma de um banqueiro com uma carreira extraordinária na área da política e da condução do País. Não aceitei porque estava no meio do Garrincha e porque era uma encomenda.

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Encomendas não valem no meio das biografias? Logo depois de sair O Anjo Pornográfico (sobre Nelson Rodrigues), pensei em fazer a história da família Guinle. Duas semanas depois, me liga Luis Eduardo Guinle, sobrinho do Jorginho Guinle. Ele havia acabado de ler o livro sobre Nelson Rodrigues e queria que eu escrevesse sobre a família dele. Eu falei: “Eduardo, eu tive essa ideia há duas semanas e era uma ideia ótima porque era minha. Agora, você acabou de transformar em uma ideia sua. Com isso, a coisa virou uma encomenda”. Ele disse que eu teria toda a liberdade e eu respondi. Isso é o que você está dizendo agora. Pode ser que descubra coisas no meio do caminho e você vai ver que eu não terei tanta liberdade assim. Aí teremos todos perdido tempo.

Então você não aceita biografia encomendada... Nunca aceitei e nunca vou aceitar. Se aceitasse a do banqueiro, era coisa de US$ 400 mil na época. Isso em 1995. Eu recusei biografar o Tom Jobim dois dias depois da morte dele para uma editora americana! Não dava porque primeiro que era uma encomenda e, depois, estávamos a apenas dois dias de sua morte. As pessoas tinham primeiro que se acostumar com a ideia de que ele havia morrido. Outro problema é que Tom não tem um defeito.

Os textos de biografias são, em geral, tensos. A necessidade de acertar as informações parece deixar os biógrafos engessados. Como conseguiu quebrar a tensão e levar estilo para a narrativa biográfica? Criei algumas regras, como: você não pode deixar o biografado fora do livro por mais do que duas páginas, tem de chamar a atenção do leitor a todo momento para o ano em que as coisas estão acontecendo, dando dicas da história a cada duas ou três páginas, sem precisar dizer a data, mas citando fatos do contexto. Agora, por mais escravo da informação que eu seja, não posso asfixiar o leitor com tanta informação. Entra aí uma certa atenção para fazer com que o leitor saiba do que se trata e de onde se trata tal passagem de uma maneira que ele possa absorver com facilidade e prazer. Eu não sei como faço isso, só sei que é algo que me preocupa o tempo todo.

Ruy Castro abriu os portões da biografia moderna brasileira com sua saborosa reconstituição Chega de Saudade, lançada em 1990. Com e a partir dela, uma nova geração de autores surgiu, editoras descobriram um mercado lucrativo e a prosa biográfica, antes dura e acadêmica, ganhou a flexibilidade estilística transposta das narrativas literárias. O próprio Ruy a testou em seus limites, lançando obras sobre as vidas de Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, além das “biografias coletivas” aventuradas pelo Rio dos anos 20, em Metrópole à Beira-Mar, e pelos anos do samba-canção com A Noite do Meu Bem.

Ruy em seu apartamento, no Leblon Foto: WILTON CASTRO/ESTADÃO

Confinado em seu apartamento no Rio por força da pandemia e, antes dela, por instinto de sua própria natureza, ele não para de produzir. Sempre pela editora Companhia das Letras, tem a lançar uma nova edição do livro Ela É Carioca – Uma Enciclopédia de Ipanema, com sete verbetes novos. O original, de 1999, traz 231 perfis de pessoas, lugares e instituições marcantes do bairro de Ipanema. “Eu consegui me transportar ao passado e escrever mais ou menos do mesmo jeito que escrevia quando lancei esse livro. Engraçado, hoje eu escrevo de forma mais simples.” Prepara ainda uma antologia de frases, crônicas, poemas, contos e reportagens dos jornalistas e escritores personagens de seu recente Metrópole à Beira-Mar chamado As Vozes da Metrópole – Uma Antologia do Rio dos Anos 1920. E faz, algo que se torna o maior tema desta entrevista, um livro sobre o fazer biográfico chamado A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia. Um quarto projeto tocado na paralela é Os Perigos do Imperador – Um Romance do Segundo Reinado, uma trama policial vivida no Rio de 1870 que tem como protagonista Dom Pedro II.

A entrevista com Ruy é, então, sobre biografias e os códigos que ele mesmo criou para sobreviver com dignidade na selva habitada por herdeiros alvoroçados e advogados ambiciosos. 1. Nunca fazer biografia de pessoas vivas – elas sempre darão um jeito de trair o biógrafo. E 2. Nunca fazer biografias por encomenda – um livro em que o biografado paga para o biógrafo falar sobre ele não pode dar certo.

Ruy, porque sua decisão de não biografar pessoas vivas? Olha, posso garantir que não é por medo do biografado ou de processos, porque herdeiros também processam. Você não pode contar uma história que ainda não acabou. Veja: você acaba de fazer a biografia para a qual levou anos apurando informações e ouvindo centenas de pessoas. No dia seguinte ao lançamento do livro, o biografado se envolve em um escândalo e te passa uma rasteira.

O vivo atrapalha a biografia? Não se pode confiar no biografado vivo porque a vida dele continua. Sua biografia fica congelada, mas ele segue vivendo. Seu livro vai ficar desatualizado. Um caso clássico disso é a biografia de Woody Allen. O autor Eric Lax publicou o livro em dezembro de 1991. Em janeiro de 1992, estourou o caso de Woody com a enteada, um escândalo. O biógrafo passou cinco anos conversando, convivendo e entrevistando Woody que, no entanto, namorava a enteada um ano antes de o livro sair. Então, durante o último ano de convívio com o biógrafo, o biografado já estava vivendo um episódio que omitia do biógrafo. Aí, o leitor se pergunta: se o biógrafo não descobriu isso, quais outras coisas Allen pode ter omitido também?

O fato de saber que será lido pela família de um biografado mesmo morto não influencia o biógrafo que não quer problemas com ela? Qual é a extensão dessa liberdade? Não vejo diferença alguma entre vivos e mortos porque a família continua lá. Fiz três biografias de personagens mortos, Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Sobre Nelson Rodrigues, os familiares nunca me perdoaram porque não assumi a versão deles sobre várias histórias que colidiam com a versão da viúva de Nelson, d. Elza. E ela também brigou comigo pelo mesmo motivo. Só que, quando as irmãs deram entrevista ao Jornal do Brasil me esculhambando, d. Elza leu aquilo e, como odiava as irmãs do Nelson, resolveu ficar ao meu lado. No caso das filhas do Garrincha, fui processado pelos advogados delas. No caso de Carmen, tive problema com as sobrinhas. Então, você nunca estará livre de problemas.

Houve problemas com 'Chega de Saudade'? Muitas pessoas estavam vivas quando o livro saiu, incluindo João Gilberto. Eu sei que as passagens que envolvem maconha o irritaram profundamente. Hoje, posso falar que dentre as minhas fontes estavam a irmã dele, amigos de Juazeiro (da Bahia, terra de João), pessoas íntimas. Sobre Tom Jobim, conto lá algumas pequenas aventuras extraconjugais, vividas no tempo em que ele era casado com a Teresa. Fiquei sabendo também que a Teresa ficou chateada. Podia até ter pensado no caso da Teresa, mas no caso do João, nem pensar. Desde que você apure, você tem de contar a história.

Qualquer história? Sim. No caso do Garrincha, por exemplo. Ele já tinha morrido, mas a Elza estava viva. As pessoas me perguntavam na rua se eu ia contar que Garrincha havia estuprado a filha da Elza. Fui apurar e vi que aquilo era uma mentira, uma sacanagem. Falei com várias testemunhas e a própria Elza, que me disse: “Se Mané tivesse feito isso, não acha que ele teria matado a minha filha?”. Agora, vamos supor que fosse verdade. Eu, infelizmente, iria publicar.

Verdade que você foi chamado para fazer a biografia da Elza? Fui sim. Ela me ligou há uns dois anos. Eu respondi, Elza, eu já fiz sua biografia. E ela disse: “Ah, você fez a do Mané”. Mas o problema é que, fazendo a de Elza, eu teria de passar por tudo de novo. Por que eu nunca fiz livro sobre iê-iê-iê ou tropicalismo? Porque não quero passar de novo por tudo o que passei em Chega de Saudade. Por que nunca fiz biografia de Antonio Maria nem de Sérgio Porto? Para não repetir tudo o que eu falei de Nelson Rodrigues. Por que eu não fiz a biografia de Aracy de Almeida? Não quero repassar o caminho da Carmen Miranda. Gosto de mudar completamente de universo. Quando falei isso para Elza, ela se virou para outra pessoa no telefone e disse: “Ele não quer”. Quando soube que o Zeca Camargo iria fazer a biografia, encontrei com ele na Flip e perguntei: “E aí Zeca, já decidiu que ano a Elza vai nascer?”. Ele disse que tinha um documento apontando o ano de 1930. Era exatamente isso.

Mas Elza, de qualquer forma, está viva. Nem cheguei a falar isso para ela. Isso eu falei para a Dercy Gonçalves. Depois de alguns meses que recusei o pedido dela para escrever seu livro, estava vendo o programa da Hebe Camargo. Hebe perguntou: “E aí Dercy, quando vamos ter a sua biografia?”. E ela respondeu: “Eu falei para esse tal de Ruy Castro fazer, mas ele só gosta de morto”. Olha, tenho aqui uma lista com 100 pessoas que me pediram para fazer suas biografias e não aceitei. Tem desde o presidente do Pão de Açúcar, Abílio Diniz, até ministros do STF, famílias importantes.

Não atendeu a nenhum pedido? Não me orgulho de ter sido convidado, mas de ter resistido, porque foram propostas muito tentadoras. Teve uma de um banqueiro com uma carreira extraordinária na área da política e da condução do País. Não aceitei porque estava no meio do Garrincha e porque era uma encomenda.

Encomendas não valem no meio das biografias? Logo depois de sair O Anjo Pornográfico (sobre Nelson Rodrigues), pensei em fazer a história da família Guinle. Duas semanas depois, me liga Luis Eduardo Guinle, sobrinho do Jorginho Guinle. Ele havia acabado de ler o livro sobre Nelson Rodrigues e queria que eu escrevesse sobre a família dele. Eu falei: “Eduardo, eu tive essa ideia há duas semanas e era uma ideia ótima porque era minha. Agora, você acabou de transformar em uma ideia sua. Com isso, a coisa virou uma encomenda”. Ele disse que eu teria toda a liberdade e eu respondi. Isso é o que você está dizendo agora. Pode ser que descubra coisas no meio do caminho e você vai ver que eu não terei tanta liberdade assim. Aí teremos todos perdido tempo.

Então você não aceita biografia encomendada... Nunca aceitei e nunca vou aceitar. Se aceitasse a do banqueiro, era coisa de US$ 400 mil na época. Isso em 1995. Eu recusei biografar o Tom Jobim dois dias depois da morte dele para uma editora americana! Não dava porque primeiro que era uma encomenda e, depois, estávamos a apenas dois dias de sua morte. As pessoas tinham primeiro que se acostumar com a ideia de que ele havia morrido. Outro problema é que Tom não tem um defeito.

Os textos de biografias são, em geral, tensos. A necessidade de acertar as informações parece deixar os biógrafos engessados. Como conseguiu quebrar a tensão e levar estilo para a narrativa biográfica? Criei algumas regras, como: você não pode deixar o biografado fora do livro por mais do que duas páginas, tem de chamar a atenção do leitor a todo momento para o ano em que as coisas estão acontecendo, dando dicas da história a cada duas ou três páginas, sem precisar dizer a data, mas citando fatos do contexto. Agora, por mais escravo da informação que eu seja, não posso asfixiar o leitor com tanta informação. Entra aí uma certa atenção para fazer com que o leitor saiba do que se trata e de onde se trata tal passagem de uma maneira que ele possa absorver com facilidade e prazer. Eu não sei como faço isso, só sei que é algo que me preocupa o tempo todo.

Ruy Castro abriu os portões da biografia moderna brasileira com sua saborosa reconstituição Chega de Saudade, lançada em 1990. Com e a partir dela, uma nova geração de autores surgiu, editoras descobriram um mercado lucrativo e a prosa biográfica, antes dura e acadêmica, ganhou a flexibilidade estilística transposta das narrativas literárias. O próprio Ruy a testou em seus limites, lançando obras sobre as vidas de Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, além das “biografias coletivas” aventuradas pelo Rio dos anos 20, em Metrópole à Beira-Mar, e pelos anos do samba-canção com A Noite do Meu Bem.

Ruy em seu apartamento, no Leblon Foto: WILTON CASTRO/ESTADÃO

Confinado em seu apartamento no Rio por força da pandemia e, antes dela, por instinto de sua própria natureza, ele não para de produzir. Sempre pela editora Companhia das Letras, tem a lançar uma nova edição do livro Ela É Carioca – Uma Enciclopédia de Ipanema, com sete verbetes novos. O original, de 1999, traz 231 perfis de pessoas, lugares e instituições marcantes do bairro de Ipanema. “Eu consegui me transportar ao passado e escrever mais ou menos do mesmo jeito que escrevia quando lancei esse livro. Engraçado, hoje eu escrevo de forma mais simples.” Prepara ainda uma antologia de frases, crônicas, poemas, contos e reportagens dos jornalistas e escritores personagens de seu recente Metrópole à Beira-Mar chamado As Vozes da Metrópole – Uma Antologia do Rio dos Anos 1920. E faz, algo que se torna o maior tema desta entrevista, um livro sobre o fazer biográfico chamado A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia. Um quarto projeto tocado na paralela é Os Perigos do Imperador – Um Romance do Segundo Reinado, uma trama policial vivida no Rio de 1870 que tem como protagonista Dom Pedro II.

A entrevista com Ruy é, então, sobre biografias e os códigos que ele mesmo criou para sobreviver com dignidade na selva habitada por herdeiros alvoroçados e advogados ambiciosos. 1. Nunca fazer biografia de pessoas vivas – elas sempre darão um jeito de trair o biógrafo. E 2. Nunca fazer biografias por encomenda – um livro em que o biografado paga para o biógrafo falar sobre ele não pode dar certo.

Ruy, porque sua decisão de não biografar pessoas vivas? Olha, posso garantir que não é por medo do biografado ou de processos, porque herdeiros também processam. Você não pode contar uma história que ainda não acabou. Veja: você acaba de fazer a biografia para a qual levou anos apurando informações e ouvindo centenas de pessoas. No dia seguinte ao lançamento do livro, o biografado se envolve em um escândalo e te passa uma rasteira.

O vivo atrapalha a biografia? Não se pode confiar no biografado vivo porque a vida dele continua. Sua biografia fica congelada, mas ele segue vivendo. Seu livro vai ficar desatualizado. Um caso clássico disso é a biografia de Woody Allen. O autor Eric Lax publicou o livro em dezembro de 1991. Em janeiro de 1992, estourou o caso de Woody com a enteada, um escândalo. O biógrafo passou cinco anos conversando, convivendo e entrevistando Woody que, no entanto, namorava a enteada um ano antes de o livro sair. Então, durante o último ano de convívio com o biógrafo, o biografado já estava vivendo um episódio que omitia do biógrafo. Aí, o leitor se pergunta: se o biógrafo não descobriu isso, quais outras coisas Allen pode ter omitido também?

O fato de saber que será lido pela família de um biografado mesmo morto não influencia o biógrafo que não quer problemas com ela? Qual é a extensão dessa liberdade? Não vejo diferença alguma entre vivos e mortos porque a família continua lá. Fiz três biografias de personagens mortos, Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Sobre Nelson Rodrigues, os familiares nunca me perdoaram porque não assumi a versão deles sobre várias histórias que colidiam com a versão da viúva de Nelson, d. Elza. E ela também brigou comigo pelo mesmo motivo. Só que, quando as irmãs deram entrevista ao Jornal do Brasil me esculhambando, d. Elza leu aquilo e, como odiava as irmãs do Nelson, resolveu ficar ao meu lado. No caso das filhas do Garrincha, fui processado pelos advogados delas. No caso de Carmen, tive problema com as sobrinhas. Então, você nunca estará livre de problemas.

Houve problemas com 'Chega de Saudade'? Muitas pessoas estavam vivas quando o livro saiu, incluindo João Gilberto. Eu sei que as passagens que envolvem maconha o irritaram profundamente. Hoje, posso falar que dentre as minhas fontes estavam a irmã dele, amigos de Juazeiro (da Bahia, terra de João), pessoas íntimas. Sobre Tom Jobim, conto lá algumas pequenas aventuras extraconjugais, vividas no tempo em que ele era casado com a Teresa. Fiquei sabendo também que a Teresa ficou chateada. Podia até ter pensado no caso da Teresa, mas no caso do João, nem pensar. Desde que você apure, você tem de contar a história.

Qualquer história? Sim. No caso do Garrincha, por exemplo. Ele já tinha morrido, mas a Elza estava viva. As pessoas me perguntavam na rua se eu ia contar que Garrincha havia estuprado a filha da Elza. Fui apurar e vi que aquilo era uma mentira, uma sacanagem. Falei com várias testemunhas e a própria Elza, que me disse: “Se Mané tivesse feito isso, não acha que ele teria matado a minha filha?”. Agora, vamos supor que fosse verdade. Eu, infelizmente, iria publicar.

Verdade que você foi chamado para fazer a biografia da Elza? Fui sim. Ela me ligou há uns dois anos. Eu respondi, Elza, eu já fiz sua biografia. E ela disse: “Ah, você fez a do Mané”. Mas o problema é que, fazendo a de Elza, eu teria de passar por tudo de novo. Por que eu nunca fiz livro sobre iê-iê-iê ou tropicalismo? Porque não quero passar de novo por tudo o que passei em Chega de Saudade. Por que nunca fiz biografia de Antonio Maria nem de Sérgio Porto? Para não repetir tudo o que eu falei de Nelson Rodrigues. Por que eu não fiz a biografia de Aracy de Almeida? Não quero repassar o caminho da Carmen Miranda. Gosto de mudar completamente de universo. Quando falei isso para Elza, ela se virou para outra pessoa no telefone e disse: “Ele não quer”. Quando soube que o Zeca Camargo iria fazer a biografia, encontrei com ele na Flip e perguntei: “E aí Zeca, já decidiu que ano a Elza vai nascer?”. Ele disse que tinha um documento apontando o ano de 1930. Era exatamente isso.

Mas Elza, de qualquer forma, está viva. Nem cheguei a falar isso para ela. Isso eu falei para a Dercy Gonçalves. Depois de alguns meses que recusei o pedido dela para escrever seu livro, estava vendo o programa da Hebe Camargo. Hebe perguntou: “E aí Dercy, quando vamos ter a sua biografia?”. E ela respondeu: “Eu falei para esse tal de Ruy Castro fazer, mas ele só gosta de morto”. Olha, tenho aqui uma lista com 100 pessoas que me pediram para fazer suas biografias e não aceitei. Tem desde o presidente do Pão de Açúcar, Abílio Diniz, até ministros do STF, famílias importantes.

Não atendeu a nenhum pedido? Não me orgulho de ter sido convidado, mas de ter resistido, porque foram propostas muito tentadoras. Teve uma de um banqueiro com uma carreira extraordinária na área da política e da condução do País. Não aceitei porque estava no meio do Garrincha e porque era uma encomenda.

Encomendas não valem no meio das biografias? Logo depois de sair O Anjo Pornográfico (sobre Nelson Rodrigues), pensei em fazer a história da família Guinle. Duas semanas depois, me liga Luis Eduardo Guinle, sobrinho do Jorginho Guinle. Ele havia acabado de ler o livro sobre Nelson Rodrigues e queria que eu escrevesse sobre a família dele. Eu falei: “Eduardo, eu tive essa ideia há duas semanas e era uma ideia ótima porque era minha. Agora, você acabou de transformar em uma ideia sua. Com isso, a coisa virou uma encomenda”. Ele disse que eu teria toda a liberdade e eu respondi. Isso é o que você está dizendo agora. Pode ser que descubra coisas no meio do caminho e você vai ver que eu não terei tanta liberdade assim. Aí teremos todos perdido tempo.

Então você não aceita biografia encomendada... Nunca aceitei e nunca vou aceitar. Se aceitasse a do banqueiro, era coisa de US$ 400 mil na época. Isso em 1995. Eu recusei biografar o Tom Jobim dois dias depois da morte dele para uma editora americana! Não dava porque primeiro que era uma encomenda e, depois, estávamos a apenas dois dias de sua morte. As pessoas tinham primeiro que se acostumar com a ideia de que ele havia morrido. Outro problema é que Tom não tem um defeito.

Os textos de biografias são, em geral, tensos. A necessidade de acertar as informações parece deixar os biógrafos engessados. Como conseguiu quebrar a tensão e levar estilo para a narrativa biográfica? Criei algumas regras, como: você não pode deixar o biografado fora do livro por mais do que duas páginas, tem de chamar a atenção do leitor a todo momento para o ano em que as coisas estão acontecendo, dando dicas da história a cada duas ou três páginas, sem precisar dizer a data, mas citando fatos do contexto. Agora, por mais escravo da informação que eu seja, não posso asfixiar o leitor com tanta informação. Entra aí uma certa atenção para fazer com que o leitor saiba do que se trata e de onde se trata tal passagem de uma maneira que ele possa absorver com facilidade e prazer. Eu não sei como faço isso, só sei que é algo que me preocupa o tempo todo.

Ruy Castro abriu os portões da biografia moderna brasileira com sua saborosa reconstituição Chega de Saudade, lançada em 1990. Com e a partir dela, uma nova geração de autores surgiu, editoras descobriram um mercado lucrativo e a prosa biográfica, antes dura e acadêmica, ganhou a flexibilidade estilística transposta das narrativas literárias. O próprio Ruy a testou em seus limites, lançando obras sobre as vidas de Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, além das “biografias coletivas” aventuradas pelo Rio dos anos 20, em Metrópole à Beira-Mar, e pelos anos do samba-canção com A Noite do Meu Bem.

Ruy em seu apartamento, no Leblon Foto: WILTON CASTRO/ESTADÃO

Confinado em seu apartamento no Rio por força da pandemia e, antes dela, por instinto de sua própria natureza, ele não para de produzir. Sempre pela editora Companhia das Letras, tem a lançar uma nova edição do livro Ela É Carioca – Uma Enciclopédia de Ipanema, com sete verbetes novos. O original, de 1999, traz 231 perfis de pessoas, lugares e instituições marcantes do bairro de Ipanema. “Eu consegui me transportar ao passado e escrever mais ou menos do mesmo jeito que escrevia quando lancei esse livro. Engraçado, hoje eu escrevo de forma mais simples.” Prepara ainda uma antologia de frases, crônicas, poemas, contos e reportagens dos jornalistas e escritores personagens de seu recente Metrópole à Beira-Mar chamado As Vozes da Metrópole – Uma Antologia do Rio dos Anos 1920. E faz, algo que se torna o maior tema desta entrevista, um livro sobre o fazer biográfico chamado A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia. Um quarto projeto tocado na paralela é Os Perigos do Imperador – Um Romance do Segundo Reinado, uma trama policial vivida no Rio de 1870 que tem como protagonista Dom Pedro II.

A entrevista com Ruy é, então, sobre biografias e os códigos que ele mesmo criou para sobreviver com dignidade na selva habitada por herdeiros alvoroçados e advogados ambiciosos. 1. Nunca fazer biografia de pessoas vivas – elas sempre darão um jeito de trair o biógrafo. E 2. Nunca fazer biografias por encomenda – um livro em que o biografado paga para o biógrafo falar sobre ele não pode dar certo.

Ruy, porque sua decisão de não biografar pessoas vivas? Olha, posso garantir que não é por medo do biografado ou de processos, porque herdeiros também processam. Você não pode contar uma história que ainda não acabou. Veja: você acaba de fazer a biografia para a qual levou anos apurando informações e ouvindo centenas de pessoas. No dia seguinte ao lançamento do livro, o biografado se envolve em um escândalo e te passa uma rasteira.

O vivo atrapalha a biografia? Não se pode confiar no biografado vivo porque a vida dele continua. Sua biografia fica congelada, mas ele segue vivendo. Seu livro vai ficar desatualizado. Um caso clássico disso é a biografia de Woody Allen. O autor Eric Lax publicou o livro em dezembro de 1991. Em janeiro de 1992, estourou o caso de Woody com a enteada, um escândalo. O biógrafo passou cinco anos conversando, convivendo e entrevistando Woody que, no entanto, namorava a enteada um ano antes de o livro sair. Então, durante o último ano de convívio com o biógrafo, o biografado já estava vivendo um episódio que omitia do biógrafo. Aí, o leitor se pergunta: se o biógrafo não descobriu isso, quais outras coisas Allen pode ter omitido também?

O fato de saber que será lido pela família de um biografado mesmo morto não influencia o biógrafo que não quer problemas com ela? Qual é a extensão dessa liberdade? Não vejo diferença alguma entre vivos e mortos porque a família continua lá. Fiz três biografias de personagens mortos, Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Sobre Nelson Rodrigues, os familiares nunca me perdoaram porque não assumi a versão deles sobre várias histórias que colidiam com a versão da viúva de Nelson, d. Elza. E ela também brigou comigo pelo mesmo motivo. Só que, quando as irmãs deram entrevista ao Jornal do Brasil me esculhambando, d. Elza leu aquilo e, como odiava as irmãs do Nelson, resolveu ficar ao meu lado. No caso das filhas do Garrincha, fui processado pelos advogados delas. No caso de Carmen, tive problema com as sobrinhas. Então, você nunca estará livre de problemas.

Houve problemas com 'Chega de Saudade'? Muitas pessoas estavam vivas quando o livro saiu, incluindo João Gilberto. Eu sei que as passagens que envolvem maconha o irritaram profundamente. Hoje, posso falar que dentre as minhas fontes estavam a irmã dele, amigos de Juazeiro (da Bahia, terra de João), pessoas íntimas. Sobre Tom Jobim, conto lá algumas pequenas aventuras extraconjugais, vividas no tempo em que ele era casado com a Teresa. Fiquei sabendo também que a Teresa ficou chateada. Podia até ter pensado no caso da Teresa, mas no caso do João, nem pensar. Desde que você apure, você tem de contar a história.

Qualquer história? Sim. No caso do Garrincha, por exemplo. Ele já tinha morrido, mas a Elza estava viva. As pessoas me perguntavam na rua se eu ia contar que Garrincha havia estuprado a filha da Elza. Fui apurar e vi que aquilo era uma mentira, uma sacanagem. Falei com várias testemunhas e a própria Elza, que me disse: “Se Mané tivesse feito isso, não acha que ele teria matado a minha filha?”. Agora, vamos supor que fosse verdade. Eu, infelizmente, iria publicar.

Verdade que você foi chamado para fazer a biografia da Elza? Fui sim. Ela me ligou há uns dois anos. Eu respondi, Elza, eu já fiz sua biografia. E ela disse: “Ah, você fez a do Mané”. Mas o problema é que, fazendo a de Elza, eu teria de passar por tudo de novo. Por que eu nunca fiz livro sobre iê-iê-iê ou tropicalismo? Porque não quero passar de novo por tudo o que passei em Chega de Saudade. Por que nunca fiz biografia de Antonio Maria nem de Sérgio Porto? Para não repetir tudo o que eu falei de Nelson Rodrigues. Por que eu não fiz a biografia de Aracy de Almeida? Não quero repassar o caminho da Carmen Miranda. Gosto de mudar completamente de universo. Quando falei isso para Elza, ela se virou para outra pessoa no telefone e disse: “Ele não quer”. Quando soube que o Zeca Camargo iria fazer a biografia, encontrei com ele na Flip e perguntei: “E aí Zeca, já decidiu que ano a Elza vai nascer?”. Ele disse que tinha um documento apontando o ano de 1930. Era exatamente isso.

Mas Elza, de qualquer forma, está viva. Nem cheguei a falar isso para ela. Isso eu falei para a Dercy Gonçalves. Depois de alguns meses que recusei o pedido dela para escrever seu livro, estava vendo o programa da Hebe Camargo. Hebe perguntou: “E aí Dercy, quando vamos ter a sua biografia?”. E ela respondeu: “Eu falei para esse tal de Ruy Castro fazer, mas ele só gosta de morto”. Olha, tenho aqui uma lista com 100 pessoas que me pediram para fazer suas biografias e não aceitei. Tem desde o presidente do Pão de Açúcar, Abílio Diniz, até ministros do STF, famílias importantes.

Não atendeu a nenhum pedido? Não me orgulho de ter sido convidado, mas de ter resistido, porque foram propostas muito tentadoras. Teve uma de um banqueiro com uma carreira extraordinária na área da política e da condução do País. Não aceitei porque estava no meio do Garrincha e porque era uma encomenda.

Encomendas não valem no meio das biografias? Logo depois de sair O Anjo Pornográfico (sobre Nelson Rodrigues), pensei em fazer a história da família Guinle. Duas semanas depois, me liga Luis Eduardo Guinle, sobrinho do Jorginho Guinle. Ele havia acabado de ler o livro sobre Nelson Rodrigues e queria que eu escrevesse sobre a família dele. Eu falei: “Eduardo, eu tive essa ideia há duas semanas e era uma ideia ótima porque era minha. Agora, você acabou de transformar em uma ideia sua. Com isso, a coisa virou uma encomenda”. Ele disse que eu teria toda a liberdade e eu respondi. Isso é o que você está dizendo agora. Pode ser que descubra coisas no meio do caminho e você vai ver que eu não terei tanta liberdade assim. Aí teremos todos perdido tempo.

Então você não aceita biografia encomendada... Nunca aceitei e nunca vou aceitar. Se aceitasse a do banqueiro, era coisa de US$ 400 mil na época. Isso em 1995. Eu recusei biografar o Tom Jobim dois dias depois da morte dele para uma editora americana! Não dava porque primeiro que era uma encomenda e, depois, estávamos a apenas dois dias de sua morte. As pessoas tinham primeiro que se acostumar com a ideia de que ele havia morrido. Outro problema é que Tom não tem um defeito.

Os textos de biografias são, em geral, tensos. A necessidade de acertar as informações parece deixar os biógrafos engessados. Como conseguiu quebrar a tensão e levar estilo para a narrativa biográfica? Criei algumas regras, como: você não pode deixar o biografado fora do livro por mais do que duas páginas, tem de chamar a atenção do leitor a todo momento para o ano em que as coisas estão acontecendo, dando dicas da história a cada duas ou três páginas, sem precisar dizer a data, mas citando fatos do contexto. Agora, por mais escravo da informação que eu seja, não posso asfixiar o leitor com tanta informação. Entra aí uma certa atenção para fazer com que o leitor saiba do que se trata e de onde se trata tal passagem de uma maneira que ele possa absorver com facilidade e prazer. Eu não sei como faço isso, só sei que é algo que me preocupa o tempo todo.

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