Salman Rushdie: ‘Para criar um novo mundo, temos que imaginá-lo. A literatura é o lar da imaginação’


Perseguido desde o fim dos anos 1980 e quase morto em 2022, escritor fala sobre seu novo romance ‘Cidade da Vitória’ e conta que seu próximo livro, uma reflexão sobre o atendado a faca que sofreu, será uma não ficção

Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:
Foto: Timothy A. Clary/AFP
Entrevista comSalman RushdieEscritor

Quando Salman Rushdie sofreu o atentado a faca que quase lhe custou a vida, em agosto de 2022, nos Estados Unidos, o livro Cidade da Vitória, que chega agora ao Brasil e foi o primeiro publicado depois do episódio, já estava “completamente finalizado” e não “foi afetado de nenhuma forma pelo ataque”, garante o escritor de 76 anos, ao Estadão. Hoje, passado pouco mais de um ano do ataque, Rushdie está minimamente recuperado - mas ainda elaborando tudo o que viveu: a violência, o susto, as dores e a perda de um olho e dos movimentos de uma das mãos. Elaborando internamente e literariamente.

“O que o episódio me mostrou é o tema do meu próximo livro”, confirma o escritor. Ele, que já tinha dito que se sentia incapaz de escrever após as facadas, conta agora que trabalha numa obra de não ficção. “E escrevo esse livro pelo mesmo motivo pelo qual sempre escrevi livros: porque eles insistem em ser escritos”, explica.

Cidade da Vitória é sua volta à Índia. Salman Rushdie nasceu lá, em Bombaim, em 1947. Partiu para a Inglaterra em 1954, para estudar, e ficou. Tem sido uma vida com alguns sobressaltos, depois do lançamento de Versos Satânicos (1988) e da fatwa que recebeu do aiatolá Khomeini, em 1989, e que foi aumentada em 2016.

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Quando, naquele ano, o escritor conversou com o Estadão por causa de outro livro, Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites, perguntamos se ele sentia medo. O autor, que chegou a viver sob proteção policial (dispensada no Brasil, quando ele participou da Flip), respondeu que sua vida tinha sido normal nos 15 anos anteriores e só estava seguindo adiante. Leia aqui a entrevista completa, de 2016.

Questionado agora sobre como o ataque mudou a forma como ele encara o medo e a vida, Rushdie apenas respondeu: “o medo não é algo em que eu pense muito”.

O escritor Salman Rushdie participou da Flip em 2005, quando dispensou seguranças Foto: Fabio Motta/Estadão
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Cidade da Vitória

O livro que ele lança agora cobre uma história que dura mais de 200 anos – a criação, ascensão e queda de um império místico.

O romance começa dizendo que, em seu último dia de vida, aos 247 anos, “a poeta, milagreira e profeta cega Pampa Kampana concluiu seu imenso poema narrativo sobre Bisnaga e o enterrou (…), como uma mensagem para o futuro. Quatro séculos depois, encontramos aquele vaso e lemos pela primeira vez a obra-prima imortal intitulada Jayaparajaya, ou seja, Vitória e derrota, redigida em sânscrito, tão longa quanto o Ramayana, composta de 24 mil versos, e tomamos conhecimento de segredos imperiais que ela havia ocultado da história por mais de 160 mil dias. Só conhecíamos as ruínas que restaram, e nossa lembrança da história do império toambém estava em ruínas, por efeito da passagem do tempo, das imperfeições da memória e da falsidade daqueles que vieram depois.”

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Com a leitura do poema, continua o autor, o passado foi recuperado e o império de Bisnaga renasceu. E a história de Pampa Kampana, que aos 9 anos viu a mãe e outras mulheres se entregarem à fogueira e que ouviu de uma deusa que ela lutaria para que nunca mais outra mulher fosse queimada e para que homens as vissem de um jeito novo, segue ao longo de quase 400 páginas.

Confira trechos da entrevista, concedida por e-mail, pelo escritor que é presença frequente nas listas de apostas do Nobel de Literatura. O vencedor será revelado nesta quinta-feira, 5.

Com a Cidade da Vitória, o senhor retorna à Índia. O que busca recuperar lá?

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Tudo.

Por que contar essa história? E por que centrá-la em uma mulher?

Porque é uma boa história. Essa é a resposta simples e mais verdadeira. E porque tenho fascinação por esse império há muito tempo e queria usá-lo para criar meu próprio mundo - meu próprio Yoknapatawpha, se quiser, meu próprio Malgudi ou Macondo ou Comala. E porque os grandes épicos indianos tratam principalmente de homens, com as mulheres em papéis secundários, e eu queria inverter isso.

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Como surgiu a ideia de Cidade da Vitória? Quanto tempo durou o processo criativo? E o que esse trabalho significa para o senhor?

Visitei Hampi, o local das ruínas do império Vijayanagara, quando tinha 20 anos, e isso permaneceu em minha imaginação. Então, pode-se dizer que o processo criativo durou 50 anos. A escrita propriamente dita levou cerca de dois anos e meio, mais um ano de pesquisa. Para mim, é o meu envolvimento mais profundo com a Índia desde Os Filhos da Meia-Noite e O Último Suspiro do Mouro. Assim, é uma espécie de retorno à casa.

Sua personagem escreve que as palavras são as únicas vencedoras. Poderia comentar essa ideia no contexto do romance e na vida/literatura?

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Todos estão destacando essa última linha, mas devo ressaltar que o título do épico fictício de Pampa Kampana é na verdade Vitória e Derrota, e o romance contém tantas derrotas quanto vitórias. Acho que o que ela quer dizer é que o tempo passa, os reis morrem, os impérios caem e, no final, o que sobrevive de nós são as histórias contadas sobre nós, nas quais alcançamos a única imortalidade que existe.

A escritora Kiran Desai disse que o seu livro fornece tudo o que precisamos saber para enfrentar as forças da tirania e da ortodoxia religiosa. O que o senhor gostaria que o leitor soubesse?

Nós já sabemos tudo sobre violência, egoísmo, intolerância e todos os outros aspectos da tirania e fanatismo. O que um romance pode fazer é tornar esse conhecimento vívido e vivo.

O senhor tem sido um nome importante na defesa da liberdade de expressão. Como vê a nova onda de censura a livros, sobretudo em países democráticos? E como vê o movimento de reescrever ou banir obras com conteúdos considerados sensíveis, que não condizem mais com o mundo de hoje? Se as palavras forem apagadas, perderem a luta, o que sobra, afinal?

Acredito que temos que resistir a todas as pressões, e é deprimente ver pressões por censura vindo tanto do lado progressista quanto dos conservadores, tanto dos jovens quanto dos mais velhos. O ponto central da liberdade de expressão é que ela não pode ser limitada apenas às pessoas com as quais concordamos ou somos indiferentes.

Sementes mágicas para criar um novo mundo? Quais palavras suspiradas ao nosso ouvido poderiam nos mostrar um caminho? O que nos falta entender e de que forma a literatura pode ajudar?

Sementes mágicas e palavras sussurradas são sempre úteis. Ou seja, para criar um novo mundo, primeiro precisamos imaginá-lo. E a literatura é o lar da imaginação, então talvez seja aí que as sementes mágicas possam ser encontradas.

Cidade da Vitória é o primeiro livro que Salman Rushdie publica desde o atentado que sofreu em 2022; o livro, porém, já estava finalizado Foto: Companhia das Letras

Cidade da Vitória

  • Autor: Salman Rushdie
  • Tradução Paulo Henriques Britto
  • Editora: Companhia das Letras (384 págs.; R$ 99,90; R$ 44,90 o e-book)

Quando Salman Rushdie sofreu o atentado a faca que quase lhe custou a vida, em agosto de 2022, nos Estados Unidos, o livro Cidade da Vitória, que chega agora ao Brasil e foi o primeiro publicado depois do episódio, já estava “completamente finalizado” e não “foi afetado de nenhuma forma pelo ataque”, garante o escritor de 76 anos, ao Estadão. Hoje, passado pouco mais de um ano do ataque, Rushdie está minimamente recuperado - mas ainda elaborando tudo o que viveu: a violência, o susto, as dores e a perda de um olho e dos movimentos de uma das mãos. Elaborando internamente e literariamente.

“O que o episódio me mostrou é o tema do meu próximo livro”, confirma o escritor. Ele, que já tinha dito que se sentia incapaz de escrever após as facadas, conta agora que trabalha numa obra de não ficção. “E escrevo esse livro pelo mesmo motivo pelo qual sempre escrevi livros: porque eles insistem em ser escritos”, explica.

Cidade da Vitória é sua volta à Índia. Salman Rushdie nasceu lá, em Bombaim, em 1947. Partiu para a Inglaterra em 1954, para estudar, e ficou. Tem sido uma vida com alguns sobressaltos, depois do lançamento de Versos Satânicos (1988) e da fatwa que recebeu do aiatolá Khomeini, em 1989, e que foi aumentada em 2016.

Quando, naquele ano, o escritor conversou com o Estadão por causa de outro livro, Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites, perguntamos se ele sentia medo. O autor, que chegou a viver sob proteção policial (dispensada no Brasil, quando ele participou da Flip), respondeu que sua vida tinha sido normal nos 15 anos anteriores e só estava seguindo adiante. Leia aqui a entrevista completa, de 2016.

Questionado agora sobre como o ataque mudou a forma como ele encara o medo e a vida, Rushdie apenas respondeu: “o medo não é algo em que eu pense muito”.

O escritor Salman Rushdie participou da Flip em 2005, quando dispensou seguranças Foto: Fabio Motta/Estadão

Cidade da Vitória

O livro que ele lança agora cobre uma história que dura mais de 200 anos – a criação, ascensão e queda de um império místico.

O romance começa dizendo que, em seu último dia de vida, aos 247 anos, “a poeta, milagreira e profeta cega Pampa Kampana concluiu seu imenso poema narrativo sobre Bisnaga e o enterrou (…), como uma mensagem para o futuro. Quatro séculos depois, encontramos aquele vaso e lemos pela primeira vez a obra-prima imortal intitulada Jayaparajaya, ou seja, Vitória e derrota, redigida em sânscrito, tão longa quanto o Ramayana, composta de 24 mil versos, e tomamos conhecimento de segredos imperiais que ela havia ocultado da história por mais de 160 mil dias. Só conhecíamos as ruínas que restaram, e nossa lembrança da história do império toambém estava em ruínas, por efeito da passagem do tempo, das imperfeições da memória e da falsidade daqueles que vieram depois.”

Com a leitura do poema, continua o autor, o passado foi recuperado e o império de Bisnaga renasceu. E a história de Pampa Kampana, que aos 9 anos viu a mãe e outras mulheres se entregarem à fogueira e que ouviu de uma deusa que ela lutaria para que nunca mais outra mulher fosse queimada e para que homens as vissem de um jeito novo, segue ao longo de quase 400 páginas.

Confira trechos da entrevista, concedida por e-mail, pelo escritor que é presença frequente nas listas de apostas do Nobel de Literatura. O vencedor será revelado nesta quinta-feira, 5.

Com a Cidade da Vitória, o senhor retorna à Índia. O que busca recuperar lá?

Tudo.

Por que contar essa história? E por que centrá-la em uma mulher?

Porque é uma boa história. Essa é a resposta simples e mais verdadeira. E porque tenho fascinação por esse império há muito tempo e queria usá-lo para criar meu próprio mundo - meu próprio Yoknapatawpha, se quiser, meu próprio Malgudi ou Macondo ou Comala. E porque os grandes épicos indianos tratam principalmente de homens, com as mulheres em papéis secundários, e eu queria inverter isso.

Como surgiu a ideia de Cidade da Vitória? Quanto tempo durou o processo criativo? E o que esse trabalho significa para o senhor?

Visitei Hampi, o local das ruínas do império Vijayanagara, quando tinha 20 anos, e isso permaneceu em minha imaginação. Então, pode-se dizer que o processo criativo durou 50 anos. A escrita propriamente dita levou cerca de dois anos e meio, mais um ano de pesquisa. Para mim, é o meu envolvimento mais profundo com a Índia desde Os Filhos da Meia-Noite e O Último Suspiro do Mouro. Assim, é uma espécie de retorno à casa.

Sua personagem escreve que as palavras são as únicas vencedoras. Poderia comentar essa ideia no contexto do romance e na vida/literatura?

Todos estão destacando essa última linha, mas devo ressaltar que o título do épico fictício de Pampa Kampana é na verdade Vitória e Derrota, e o romance contém tantas derrotas quanto vitórias. Acho que o que ela quer dizer é que o tempo passa, os reis morrem, os impérios caem e, no final, o que sobrevive de nós são as histórias contadas sobre nós, nas quais alcançamos a única imortalidade que existe.

A escritora Kiran Desai disse que o seu livro fornece tudo o que precisamos saber para enfrentar as forças da tirania e da ortodoxia religiosa. O que o senhor gostaria que o leitor soubesse?

Nós já sabemos tudo sobre violência, egoísmo, intolerância e todos os outros aspectos da tirania e fanatismo. O que um romance pode fazer é tornar esse conhecimento vívido e vivo.

O senhor tem sido um nome importante na defesa da liberdade de expressão. Como vê a nova onda de censura a livros, sobretudo em países democráticos? E como vê o movimento de reescrever ou banir obras com conteúdos considerados sensíveis, que não condizem mais com o mundo de hoje? Se as palavras forem apagadas, perderem a luta, o que sobra, afinal?

Acredito que temos que resistir a todas as pressões, e é deprimente ver pressões por censura vindo tanto do lado progressista quanto dos conservadores, tanto dos jovens quanto dos mais velhos. O ponto central da liberdade de expressão é que ela não pode ser limitada apenas às pessoas com as quais concordamos ou somos indiferentes.

Sementes mágicas para criar um novo mundo? Quais palavras suspiradas ao nosso ouvido poderiam nos mostrar um caminho? O que nos falta entender e de que forma a literatura pode ajudar?

Sementes mágicas e palavras sussurradas são sempre úteis. Ou seja, para criar um novo mundo, primeiro precisamos imaginá-lo. E a literatura é o lar da imaginação, então talvez seja aí que as sementes mágicas possam ser encontradas.

Cidade da Vitória é o primeiro livro que Salman Rushdie publica desde o atentado que sofreu em 2022; o livro, porém, já estava finalizado Foto: Companhia das Letras

Cidade da Vitória

  • Autor: Salman Rushdie
  • Tradução Paulo Henriques Britto
  • Editora: Companhia das Letras (384 págs.; R$ 99,90; R$ 44,90 o e-book)

Quando Salman Rushdie sofreu o atentado a faca que quase lhe custou a vida, em agosto de 2022, nos Estados Unidos, o livro Cidade da Vitória, que chega agora ao Brasil e foi o primeiro publicado depois do episódio, já estava “completamente finalizado” e não “foi afetado de nenhuma forma pelo ataque”, garante o escritor de 76 anos, ao Estadão. Hoje, passado pouco mais de um ano do ataque, Rushdie está minimamente recuperado - mas ainda elaborando tudo o que viveu: a violência, o susto, as dores e a perda de um olho e dos movimentos de uma das mãos. Elaborando internamente e literariamente.

“O que o episódio me mostrou é o tema do meu próximo livro”, confirma o escritor. Ele, que já tinha dito que se sentia incapaz de escrever após as facadas, conta agora que trabalha numa obra de não ficção. “E escrevo esse livro pelo mesmo motivo pelo qual sempre escrevi livros: porque eles insistem em ser escritos”, explica.

Cidade da Vitória é sua volta à Índia. Salman Rushdie nasceu lá, em Bombaim, em 1947. Partiu para a Inglaterra em 1954, para estudar, e ficou. Tem sido uma vida com alguns sobressaltos, depois do lançamento de Versos Satânicos (1988) e da fatwa que recebeu do aiatolá Khomeini, em 1989, e que foi aumentada em 2016.

Quando, naquele ano, o escritor conversou com o Estadão por causa de outro livro, Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites, perguntamos se ele sentia medo. O autor, que chegou a viver sob proteção policial (dispensada no Brasil, quando ele participou da Flip), respondeu que sua vida tinha sido normal nos 15 anos anteriores e só estava seguindo adiante. Leia aqui a entrevista completa, de 2016.

Questionado agora sobre como o ataque mudou a forma como ele encara o medo e a vida, Rushdie apenas respondeu: “o medo não é algo em que eu pense muito”.

O escritor Salman Rushdie participou da Flip em 2005, quando dispensou seguranças Foto: Fabio Motta/Estadão

Cidade da Vitória

O livro que ele lança agora cobre uma história que dura mais de 200 anos – a criação, ascensão e queda de um império místico.

O romance começa dizendo que, em seu último dia de vida, aos 247 anos, “a poeta, milagreira e profeta cega Pampa Kampana concluiu seu imenso poema narrativo sobre Bisnaga e o enterrou (…), como uma mensagem para o futuro. Quatro séculos depois, encontramos aquele vaso e lemos pela primeira vez a obra-prima imortal intitulada Jayaparajaya, ou seja, Vitória e derrota, redigida em sânscrito, tão longa quanto o Ramayana, composta de 24 mil versos, e tomamos conhecimento de segredos imperiais que ela havia ocultado da história por mais de 160 mil dias. Só conhecíamos as ruínas que restaram, e nossa lembrança da história do império toambém estava em ruínas, por efeito da passagem do tempo, das imperfeições da memória e da falsidade daqueles que vieram depois.”

Com a leitura do poema, continua o autor, o passado foi recuperado e o império de Bisnaga renasceu. E a história de Pampa Kampana, que aos 9 anos viu a mãe e outras mulheres se entregarem à fogueira e que ouviu de uma deusa que ela lutaria para que nunca mais outra mulher fosse queimada e para que homens as vissem de um jeito novo, segue ao longo de quase 400 páginas.

Confira trechos da entrevista, concedida por e-mail, pelo escritor que é presença frequente nas listas de apostas do Nobel de Literatura. O vencedor será revelado nesta quinta-feira, 5.

Com a Cidade da Vitória, o senhor retorna à Índia. O que busca recuperar lá?

Tudo.

Por que contar essa história? E por que centrá-la em uma mulher?

Porque é uma boa história. Essa é a resposta simples e mais verdadeira. E porque tenho fascinação por esse império há muito tempo e queria usá-lo para criar meu próprio mundo - meu próprio Yoknapatawpha, se quiser, meu próprio Malgudi ou Macondo ou Comala. E porque os grandes épicos indianos tratam principalmente de homens, com as mulheres em papéis secundários, e eu queria inverter isso.

Como surgiu a ideia de Cidade da Vitória? Quanto tempo durou o processo criativo? E o que esse trabalho significa para o senhor?

Visitei Hampi, o local das ruínas do império Vijayanagara, quando tinha 20 anos, e isso permaneceu em minha imaginação. Então, pode-se dizer que o processo criativo durou 50 anos. A escrita propriamente dita levou cerca de dois anos e meio, mais um ano de pesquisa. Para mim, é o meu envolvimento mais profundo com a Índia desde Os Filhos da Meia-Noite e O Último Suspiro do Mouro. Assim, é uma espécie de retorno à casa.

Sua personagem escreve que as palavras são as únicas vencedoras. Poderia comentar essa ideia no contexto do romance e na vida/literatura?

Todos estão destacando essa última linha, mas devo ressaltar que o título do épico fictício de Pampa Kampana é na verdade Vitória e Derrota, e o romance contém tantas derrotas quanto vitórias. Acho que o que ela quer dizer é que o tempo passa, os reis morrem, os impérios caem e, no final, o que sobrevive de nós são as histórias contadas sobre nós, nas quais alcançamos a única imortalidade que existe.

A escritora Kiran Desai disse que o seu livro fornece tudo o que precisamos saber para enfrentar as forças da tirania e da ortodoxia religiosa. O que o senhor gostaria que o leitor soubesse?

Nós já sabemos tudo sobre violência, egoísmo, intolerância e todos os outros aspectos da tirania e fanatismo. O que um romance pode fazer é tornar esse conhecimento vívido e vivo.

O senhor tem sido um nome importante na defesa da liberdade de expressão. Como vê a nova onda de censura a livros, sobretudo em países democráticos? E como vê o movimento de reescrever ou banir obras com conteúdos considerados sensíveis, que não condizem mais com o mundo de hoje? Se as palavras forem apagadas, perderem a luta, o que sobra, afinal?

Acredito que temos que resistir a todas as pressões, e é deprimente ver pressões por censura vindo tanto do lado progressista quanto dos conservadores, tanto dos jovens quanto dos mais velhos. O ponto central da liberdade de expressão é que ela não pode ser limitada apenas às pessoas com as quais concordamos ou somos indiferentes.

Sementes mágicas para criar um novo mundo? Quais palavras suspiradas ao nosso ouvido poderiam nos mostrar um caminho? O que nos falta entender e de que forma a literatura pode ajudar?

Sementes mágicas e palavras sussurradas são sempre úteis. Ou seja, para criar um novo mundo, primeiro precisamos imaginá-lo. E a literatura é o lar da imaginação, então talvez seja aí que as sementes mágicas possam ser encontradas.

Cidade da Vitória é o primeiro livro que Salman Rushdie publica desde o atentado que sofreu em 2022; o livro, porém, já estava finalizado Foto: Companhia das Letras

Cidade da Vitória

  • Autor: Salman Rushdie
  • Tradução Paulo Henriques Britto
  • Editora: Companhia das Letras (384 págs.; R$ 99,90; R$ 44,90 o e-book)

Quando Salman Rushdie sofreu o atentado a faca que quase lhe custou a vida, em agosto de 2022, nos Estados Unidos, o livro Cidade da Vitória, que chega agora ao Brasil e foi o primeiro publicado depois do episódio, já estava “completamente finalizado” e não “foi afetado de nenhuma forma pelo ataque”, garante o escritor de 76 anos, ao Estadão. Hoje, passado pouco mais de um ano do ataque, Rushdie está minimamente recuperado - mas ainda elaborando tudo o que viveu: a violência, o susto, as dores e a perda de um olho e dos movimentos de uma das mãos. Elaborando internamente e literariamente.

“O que o episódio me mostrou é o tema do meu próximo livro”, confirma o escritor. Ele, que já tinha dito que se sentia incapaz de escrever após as facadas, conta agora que trabalha numa obra de não ficção. “E escrevo esse livro pelo mesmo motivo pelo qual sempre escrevi livros: porque eles insistem em ser escritos”, explica.

Cidade da Vitória é sua volta à Índia. Salman Rushdie nasceu lá, em Bombaim, em 1947. Partiu para a Inglaterra em 1954, para estudar, e ficou. Tem sido uma vida com alguns sobressaltos, depois do lançamento de Versos Satânicos (1988) e da fatwa que recebeu do aiatolá Khomeini, em 1989, e que foi aumentada em 2016.

Quando, naquele ano, o escritor conversou com o Estadão por causa de outro livro, Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites, perguntamos se ele sentia medo. O autor, que chegou a viver sob proteção policial (dispensada no Brasil, quando ele participou da Flip), respondeu que sua vida tinha sido normal nos 15 anos anteriores e só estava seguindo adiante. Leia aqui a entrevista completa, de 2016.

Questionado agora sobre como o ataque mudou a forma como ele encara o medo e a vida, Rushdie apenas respondeu: “o medo não é algo em que eu pense muito”.

O escritor Salman Rushdie participou da Flip em 2005, quando dispensou seguranças Foto: Fabio Motta/Estadão

Cidade da Vitória

O livro que ele lança agora cobre uma história que dura mais de 200 anos – a criação, ascensão e queda de um império místico.

O romance começa dizendo que, em seu último dia de vida, aos 247 anos, “a poeta, milagreira e profeta cega Pampa Kampana concluiu seu imenso poema narrativo sobre Bisnaga e o enterrou (…), como uma mensagem para o futuro. Quatro séculos depois, encontramos aquele vaso e lemos pela primeira vez a obra-prima imortal intitulada Jayaparajaya, ou seja, Vitória e derrota, redigida em sânscrito, tão longa quanto o Ramayana, composta de 24 mil versos, e tomamos conhecimento de segredos imperiais que ela havia ocultado da história por mais de 160 mil dias. Só conhecíamos as ruínas que restaram, e nossa lembrança da história do império toambém estava em ruínas, por efeito da passagem do tempo, das imperfeições da memória e da falsidade daqueles que vieram depois.”

Com a leitura do poema, continua o autor, o passado foi recuperado e o império de Bisnaga renasceu. E a história de Pampa Kampana, que aos 9 anos viu a mãe e outras mulheres se entregarem à fogueira e que ouviu de uma deusa que ela lutaria para que nunca mais outra mulher fosse queimada e para que homens as vissem de um jeito novo, segue ao longo de quase 400 páginas.

Confira trechos da entrevista, concedida por e-mail, pelo escritor que é presença frequente nas listas de apostas do Nobel de Literatura. O vencedor será revelado nesta quinta-feira, 5.

Com a Cidade da Vitória, o senhor retorna à Índia. O que busca recuperar lá?

Tudo.

Por que contar essa história? E por que centrá-la em uma mulher?

Porque é uma boa história. Essa é a resposta simples e mais verdadeira. E porque tenho fascinação por esse império há muito tempo e queria usá-lo para criar meu próprio mundo - meu próprio Yoknapatawpha, se quiser, meu próprio Malgudi ou Macondo ou Comala. E porque os grandes épicos indianos tratam principalmente de homens, com as mulheres em papéis secundários, e eu queria inverter isso.

Como surgiu a ideia de Cidade da Vitória? Quanto tempo durou o processo criativo? E o que esse trabalho significa para o senhor?

Visitei Hampi, o local das ruínas do império Vijayanagara, quando tinha 20 anos, e isso permaneceu em minha imaginação. Então, pode-se dizer que o processo criativo durou 50 anos. A escrita propriamente dita levou cerca de dois anos e meio, mais um ano de pesquisa. Para mim, é o meu envolvimento mais profundo com a Índia desde Os Filhos da Meia-Noite e O Último Suspiro do Mouro. Assim, é uma espécie de retorno à casa.

Sua personagem escreve que as palavras são as únicas vencedoras. Poderia comentar essa ideia no contexto do romance e na vida/literatura?

Todos estão destacando essa última linha, mas devo ressaltar que o título do épico fictício de Pampa Kampana é na verdade Vitória e Derrota, e o romance contém tantas derrotas quanto vitórias. Acho que o que ela quer dizer é que o tempo passa, os reis morrem, os impérios caem e, no final, o que sobrevive de nós são as histórias contadas sobre nós, nas quais alcançamos a única imortalidade que existe.

A escritora Kiran Desai disse que o seu livro fornece tudo o que precisamos saber para enfrentar as forças da tirania e da ortodoxia religiosa. O que o senhor gostaria que o leitor soubesse?

Nós já sabemos tudo sobre violência, egoísmo, intolerância e todos os outros aspectos da tirania e fanatismo. O que um romance pode fazer é tornar esse conhecimento vívido e vivo.

O senhor tem sido um nome importante na defesa da liberdade de expressão. Como vê a nova onda de censura a livros, sobretudo em países democráticos? E como vê o movimento de reescrever ou banir obras com conteúdos considerados sensíveis, que não condizem mais com o mundo de hoje? Se as palavras forem apagadas, perderem a luta, o que sobra, afinal?

Acredito que temos que resistir a todas as pressões, e é deprimente ver pressões por censura vindo tanto do lado progressista quanto dos conservadores, tanto dos jovens quanto dos mais velhos. O ponto central da liberdade de expressão é que ela não pode ser limitada apenas às pessoas com as quais concordamos ou somos indiferentes.

Sementes mágicas para criar um novo mundo? Quais palavras suspiradas ao nosso ouvido poderiam nos mostrar um caminho? O que nos falta entender e de que forma a literatura pode ajudar?

Sementes mágicas e palavras sussurradas são sempre úteis. Ou seja, para criar um novo mundo, primeiro precisamos imaginá-lo. E a literatura é o lar da imaginação, então talvez seja aí que as sementes mágicas possam ser encontradas.

Cidade da Vitória é o primeiro livro que Salman Rushdie publica desde o atentado que sofreu em 2022; o livro, porém, já estava finalizado Foto: Companhia das Letras

Cidade da Vitória

  • Autor: Salman Rushdie
  • Tradução Paulo Henriques Britto
  • Editora: Companhia das Letras (384 págs.; R$ 99,90; R$ 44,90 o e-book)

Quando Salman Rushdie sofreu o atentado a faca que quase lhe custou a vida, em agosto de 2022, nos Estados Unidos, o livro Cidade da Vitória, que chega agora ao Brasil e foi o primeiro publicado depois do episódio, já estava “completamente finalizado” e não “foi afetado de nenhuma forma pelo ataque”, garante o escritor de 76 anos, ao Estadão. Hoje, passado pouco mais de um ano do ataque, Rushdie está minimamente recuperado - mas ainda elaborando tudo o que viveu: a violência, o susto, as dores e a perda de um olho e dos movimentos de uma das mãos. Elaborando internamente e literariamente.

“O que o episódio me mostrou é o tema do meu próximo livro”, confirma o escritor. Ele, que já tinha dito que se sentia incapaz de escrever após as facadas, conta agora que trabalha numa obra de não ficção. “E escrevo esse livro pelo mesmo motivo pelo qual sempre escrevi livros: porque eles insistem em ser escritos”, explica.

Cidade da Vitória é sua volta à Índia. Salman Rushdie nasceu lá, em Bombaim, em 1947. Partiu para a Inglaterra em 1954, para estudar, e ficou. Tem sido uma vida com alguns sobressaltos, depois do lançamento de Versos Satânicos (1988) e da fatwa que recebeu do aiatolá Khomeini, em 1989, e que foi aumentada em 2016.

Quando, naquele ano, o escritor conversou com o Estadão por causa de outro livro, Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites, perguntamos se ele sentia medo. O autor, que chegou a viver sob proteção policial (dispensada no Brasil, quando ele participou da Flip), respondeu que sua vida tinha sido normal nos 15 anos anteriores e só estava seguindo adiante. Leia aqui a entrevista completa, de 2016.

Questionado agora sobre como o ataque mudou a forma como ele encara o medo e a vida, Rushdie apenas respondeu: “o medo não é algo em que eu pense muito”.

O escritor Salman Rushdie participou da Flip em 2005, quando dispensou seguranças Foto: Fabio Motta/Estadão

Cidade da Vitória

O livro que ele lança agora cobre uma história que dura mais de 200 anos – a criação, ascensão e queda de um império místico.

O romance começa dizendo que, em seu último dia de vida, aos 247 anos, “a poeta, milagreira e profeta cega Pampa Kampana concluiu seu imenso poema narrativo sobre Bisnaga e o enterrou (…), como uma mensagem para o futuro. Quatro séculos depois, encontramos aquele vaso e lemos pela primeira vez a obra-prima imortal intitulada Jayaparajaya, ou seja, Vitória e derrota, redigida em sânscrito, tão longa quanto o Ramayana, composta de 24 mil versos, e tomamos conhecimento de segredos imperiais que ela havia ocultado da história por mais de 160 mil dias. Só conhecíamos as ruínas que restaram, e nossa lembrança da história do império toambém estava em ruínas, por efeito da passagem do tempo, das imperfeições da memória e da falsidade daqueles que vieram depois.”

Com a leitura do poema, continua o autor, o passado foi recuperado e o império de Bisnaga renasceu. E a história de Pampa Kampana, que aos 9 anos viu a mãe e outras mulheres se entregarem à fogueira e que ouviu de uma deusa que ela lutaria para que nunca mais outra mulher fosse queimada e para que homens as vissem de um jeito novo, segue ao longo de quase 400 páginas.

Confira trechos da entrevista, concedida por e-mail, pelo escritor que é presença frequente nas listas de apostas do Nobel de Literatura. O vencedor será revelado nesta quinta-feira, 5.

Com a Cidade da Vitória, o senhor retorna à Índia. O que busca recuperar lá?

Tudo.

Por que contar essa história? E por que centrá-la em uma mulher?

Porque é uma boa história. Essa é a resposta simples e mais verdadeira. E porque tenho fascinação por esse império há muito tempo e queria usá-lo para criar meu próprio mundo - meu próprio Yoknapatawpha, se quiser, meu próprio Malgudi ou Macondo ou Comala. E porque os grandes épicos indianos tratam principalmente de homens, com as mulheres em papéis secundários, e eu queria inverter isso.

Como surgiu a ideia de Cidade da Vitória? Quanto tempo durou o processo criativo? E o que esse trabalho significa para o senhor?

Visitei Hampi, o local das ruínas do império Vijayanagara, quando tinha 20 anos, e isso permaneceu em minha imaginação. Então, pode-se dizer que o processo criativo durou 50 anos. A escrita propriamente dita levou cerca de dois anos e meio, mais um ano de pesquisa. Para mim, é o meu envolvimento mais profundo com a Índia desde Os Filhos da Meia-Noite e O Último Suspiro do Mouro. Assim, é uma espécie de retorno à casa.

Sua personagem escreve que as palavras são as únicas vencedoras. Poderia comentar essa ideia no contexto do romance e na vida/literatura?

Todos estão destacando essa última linha, mas devo ressaltar que o título do épico fictício de Pampa Kampana é na verdade Vitória e Derrota, e o romance contém tantas derrotas quanto vitórias. Acho que o que ela quer dizer é que o tempo passa, os reis morrem, os impérios caem e, no final, o que sobrevive de nós são as histórias contadas sobre nós, nas quais alcançamos a única imortalidade que existe.

A escritora Kiran Desai disse que o seu livro fornece tudo o que precisamos saber para enfrentar as forças da tirania e da ortodoxia religiosa. O que o senhor gostaria que o leitor soubesse?

Nós já sabemos tudo sobre violência, egoísmo, intolerância e todos os outros aspectos da tirania e fanatismo. O que um romance pode fazer é tornar esse conhecimento vívido e vivo.

O senhor tem sido um nome importante na defesa da liberdade de expressão. Como vê a nova onda de censura a livros, sobretudo em países democráticos? E como vê o movimento de reescrever ou banir obras com conteúdos considerados sensíveis, que não condizem mais com o mundo de hoje? Se as palavras forem apagadas, perderem a luta, o que sobra, afinal?

Acredito que temos que resistir a todas as pressões, e é deprimente ver pressões por censura vindo tanto do lado progressista quanto dos conservadores, tanto dos jovens quanto dos mais velhos. O ponto central da liberdade de expressão é que ela não pode ser limitada apenas às pessoas com as quais concordamos ou somos indiferentes.

Sementes mágicas para criar um novo mundo? Quais palavras suspiradas ao nosso ouvido poderiam nos mostrar um caminho? O que nos falta entender e de que forma a literatura pode ajudar?

Sementes mágicas e palavras sussurradas são sempre úteis. Ou seja, para criar um novo mundo, primeiro precisamos imaginá-lo. E a literatura é o lar da imaginação, então talvez seja aí que as sementes mágicas possam ser encontradas.

Cidade da Vitória é o primeiro livro que Salman Rushdie publica desde o atentado que sofreu em 2022; o livro, porém, já estava finalizado Foto: Companhia das Letras

Cidade da Vitória

  • Autor: Salman Rushdie
  • Tradução Paulo Henriques Britto
  • Editora: Companhia das Letras (384 págs.; R$ 99,90; R$ 44,90 o e-book)
Entrevista por Maria Fernanda Rodrigues

Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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