Quem leu Caçadas de Pedrinho de 1933 para cá deve se lembrar da cena em que as crianças finalmente conseguem domar a onça que tinha aparecido na mata do sítio. Ou não.
Tudo acontece e acaba mais ou menos assim. Pedrinho bate no peito com arrogância, nas palavras de Monteiro Lobato, e convoca quem for corajoso a juntar-se a ele naquela caçada. O garoto leva a espingarda que ele mesmo fez. Narizinho escolhe uma faca de pão. Ao Visconde é dado um sabre. Emília acha mais eficaz levar um espeto de assar frango. Para o medroso Rabicó, Pedrinho dá arreios para ele puxar um canhãozinho caseiro. Bom, há algumas idas e vindas e, no confronto final com a tal onça tudo isso é usado com verdadeira fúria, também nas palavras do autor.
Pois o leitor que chegar ao clássico mais polêmico de Monteiro Lobato – pela questão ambiental, mas não só – agora, e escolher ler a adaptação feita por Regina Zilberman para a coleção da editora Girassol ilustrada por Mauricio de Sousa vai encontrar uma matança um pouco mais, digamos, suavizada.
Com a onça cega pela pólvora que Pedrinho joga de cima da árvore onde a turma se refugia, todos atendem a seu apelo e descem – e, juntos, dão “um jeito na fera”. Num piscar de olhos e sem violência, ela está “mortinha da silva”.
Uma das principais especialistas em literatura infantil do País, Regina Zilberman diz que a preocupação com o meio ambiente só surgiu na literatura depois da segunda metade do século 20 e que, portanto, se essa é uma questão urgente hoje, ela não era na época de Lobato.
“Mas não tem como alterar, eles vão continuar matando a onça”, resume a pesquisadora. Ela conta que a editora optou por fazer algumas notas esclarecendo as diferenças de época – e isso está presente também na introdução de Mauricio de Sousa. Ele escreve sobre Lobato: “O leitor encontrará em suas obras, inclusive neste Caçadas de Pedrinho, passagens e citações a hábitos e costumes de um Brasil do começo do século 20. Hoje, claro, o mundo é diferente de 100 anos atrás. Naquela época, ninguém pensava (ainda) no desmatamento da Floresta Amazônica ou da Mata Atlântica, por exemplo. Por isso, para Pedrinho, caçar um rinoceronte ou uma onça era uma aventura incomparável, digna de um verdadeiro herói. Lobato nem sonhava que, no futuro, essa prática fosse ameaçar tantos animais de extinção”.
Não tem como alterar, mas – e sem correr o risco de cair no politicamente correto na opinião deles – tem como suavizar e amenizar. E essas são palavras usadas tanto por Regina, responsável pelo novo texto, quanto por Mauricio de Sousa em entrevista ao Estado. “A descrição da morte é forte, não no sentido de ser censurável, mas tem muita violência. Uma bate, a outra puxa. A meu ver não compromete o livro se aquilo for menos violento”, diz a pesquisadora. “Eu prefiro sempre a caçada suavizada”, comenta o quadrinista.
Dos livros de Monteiro Lobato que tanto encantaram Mauricio de Sousa quando ele começou a ler, Caçadas de Pedrinho não é o preferido. O criador da Turma da Mônica gosta mais de Os Doze Trabalhos de Hércules. Mas a história que ele lança no dia 21, na Saraiva do Shopping Center Norte, em debate com Luiz Felipe Pondé, e que coloca seus personagens dentro do Sítio do Picapau Amarelo, se conecta com uma memória de infância – e ele se diverte contando em escritório.
Um dia perdido no passado, a tropa de burros da família trazia, da região de Mogi das Cruzes e Santa Isabel para São Paulo, ovos e mais ovos em cangalhas protegidos por palha de milho. No meio do caminho, eles se agitaram, corcovearam. No que pulavam, as cangalhas arrebentavam e os ovos se quebravam. “Tinha uma senhora onça esperando por eles. Foi prejuízo total.” O garoto ouviu a história como se tivesse acontecido ali por aqueles dias. “Fiquei assustado, querendo saber onde as onças viviam. Quando li Caçadas de Pedrinho, essa lembrança de pavor e terror voltou”, conta agora aos 84.
Fã de Lobato, ele lembra também que a caçada não o atraiu tanto quanto a prosa em si do autor, e que, naquela época, por influência da avó, ele “já era meio defensor de animais”.
“Há um esforço hoje de fazer uma adequação da obra, extirpando aqui e ali alguma coisa ligada a um tempo e aos costumes dos anos 1920, 1930”, comenta Mauricio de Sousa. Ele completa: “E foi nossa preocupação também que a gente colabore para que Lobato não seja esquecido ou encostado na parede por causa de uma ou outra parte do livro dele que falava de preconceito, racismo ou qualquer coisa assim”.
Esta é a terceira adaptação da coleção da Girassol, depois de Narizinho Arrebitado e O Sítio do Picapau Amarelo, e a mais complicada. Além da caçada, há a questão do racismo, expressa sobretudo pela personagem Emília. “Este é um dos textos mais polêmicos. Lobato usa palavras que na época não ofendiam, mas que hoje ofendem. Não adianta colocar uma cortina de fumaça. Isso também precisava ser ajustado”, explica Regina Zilberman. Para ela, as mudanças feitas não comprometem a narrativa nem o conteúdo das ações dos personagens.
Em certo momento, no original (nas livrarias pela Globo, editora exclusiva de Lobato até o domínio público, em 2019), lemos um diálogo entre dona Benta e Tia Nastácia, narrado assim pelo autor: “Que nada, Sinhá! – insistiu a negra”. Agora, lemos: “Que nada! – insistiu a amiga”. Um pouco mais adiante: “Lá isso é – resmungou a preta pendurando o beiço”. E agora: “Lá isso é – resmungou ela”.
Emília também expressa seu racismo. “Isso não é muito legal e simpático da parte dela. Às vezes, ela fala demais”, comenta a pesquisadora. “Emília é uma criança desbocada. Precisamos dar uma matizada com relação a algumas expressões, o que também não compromete a obra.” Palavras como “pretura” e “carne negra”, usadas para se referir a Nastácia, não estão na nova edição. Vale lembrar que quando uma obra cai em domínio público, 70 anos depois da morte de seu autor, ela pode ser publicada por qualquer editora, adaptada ou no original.
Regina conta ainda que esta é uma das obras mais extensas de Lobato, um desafio na hora de adaptá-la, e lembra que as duas novelas – a da onça e a do rinoceronte – foram publicadas de forma independente e depois reunidas pelo autor. “É um livro que conversa consigo mesmo. Na primeira parte as crianças matam a onça e se defendem do ataque das outras, apoiadas por outros animais, e acabam se salvando. Na segunda, tem uma reversão. Em vez de perseguir um animal, elas protegem o rinoceronte, que depois vai ter uma participação importante em outros volumes da obra do Lobato. O próprio Lobato deve ter se antenado que era preciso matizar aquela violência da primeira parte”, avalia.
A prova do tempo também aflige Mauricio de Sousa
Enquanto conversa sobre o desafio de trazer Lobato para os dias de hoje, Mauricio de Sousa diz que ele próprio se vê na mesma situação neste momento. Porém, nada que envolva racismo. “Não posso esquecer que até nas minhas histórias, e estou desenhando há 60, também houve coisas que escrevi e desenhei e que hoje já estamos extirpando e mostrando para o leitor que houve mudança de hábito e costumes”, diz.
Ele dá alguns exemplos da evolução de alguns temas e comportamentos em seus quadrinhos. “Hoje eu me penitencio suavemente, porque estava inocente, com o nhô Lau, que corria atrás do Chico Bento quando ele roubava suas goiabas com uma espingarda de sal. Na minha infância se falava isso, e se usava isso, embora ninguém tenha me dado tiro de sal. Mas nunca mais colocamos essa situação, como também nunca mais o Cebolinha pichou muro nas histórias. Hoje, para não perder o costume, ele faz caricatura da Mônica e cola na parede. E nunca mais, nos últimos 10 anos, a Mônica apareceu batendo no Cebolinha. Ela só corre atrás dele.”
A discussão agora, na Mauricio de Sousa Produções, é se alguns desses originais serão reproduzidos ou não nas edições especiais que estão sendo preparadas pelos 60 anos. “A Disney está fazendo isso e colocando explicações sobre como era, por que era e por que não é mais. Vamos ver”, comenta o desenhista.
CAÇADAS DE PEDRINHO Autor: Monteiro Lobato Adaptação: Regina Zilberman Ilustração: Mauricio de Sousa Editora: Girassol (88 págs.; R$ 39,90) Lançamento: 21 de março, às 15h, na Saraiva MegaStore do Shopping Center Norte, com bate-papo com Luiz Felipe Pondé. Participação condicionada à compra do livro, com senhas limitadas distribuídas no dia , a partir das 10h.