Silvina Ocampo, Jorge Luis Borges e Bioy Casares: livro trata dos amores e desavenças dos escritores


Escrita por Mariana Enriquez, obra ‘A Irmã Menor’ clareia o talento de Silvina, muitas vezes relegado por conta dos outros dois

Por Ubiratan Brasil

Era um trio que se admirava, mas também se desprezava com a mesma intensidade. O escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999) era casado com a também autora e artista plástica Silvina Ocampo (1903-1993) e a luxuosa casa de ambos em Buenos Aires era frequentada por Jorge Luis Borges (1899-1986), apontado como um dos grandes nomes da literatura mundial e amigo fraterno de Casares - durante mais de 30 anos, eles jantaram sozinhos em uma das salas daquele casarão.

Em outro cômodo, Silvina ouvia as gargalhadas provocadas por comentários sarcásticos, como o dito certa vez por Borges: “Todos nós caminhamos para o anonimato, mas os medíocres chegam um pouco antes”. “De que riem esses idiotas?”, refletia ela, incomodada com a gargalhada de Borges (rouca e desagradável) e injustamente deixada em segundo plano - pintora (era discípula de Giorgio de Chirico), poeta e contista, Silvina Ocampo era a caçula de seis irmãs e, além da sombra projetada pelo marido, sempre permaneceu em segundo plano, obscurecida pela arrogância avassaladora de sua irmã mais velha Victoria, um dos principais nomes da escrita argentina no entreguerras.

A autora argentina Silvina Ocampo Foto: Acervo Bioy
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“Era uma relação complexa em termos literários”, observa ao Estadão a escritora Mariana Enriquez, uma das principais escritoras argentinas contemporâneas, autora de A Irmã Menor (Relicário), um retrato de Silvina Ocampo. “Ela gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas Silvina não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para ele, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse ‘experimento’ a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.”

Foi justamente com os contos desse livro, publicado em 1959 e lançado pela Companhia das Letras, que Silvina conquistou um lugar definitivo na literatura, estabelecendo uma voz única e criando um universo alucinado, em que suas histórias misturam elegância e excesso, distanciamento e intensidade, calma e horror. Ao mesmo tempo, alimentava um exotismo a partir de seus atos - como o fascínio, desde criança, por pessoas pobres.

Jorge Luis Borges (sentado) e Adolfo Bioy Casares Foto: Julio Giostozza
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“É uma de suas características mais estranhas e um tanto perversas”, observa Mariana. “Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.”

De fato, Silvina sente muito a morte da irmã Clara por diabete infantil, o que a fez refugiar-se ainda mais entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela. “Na verdade, Silvina trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos autores, mas muitas pessoas peculiares e várias eram homossexuais.”

A escritora argentina, autora de A Irmã Menor Foto: Nora Lezano
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Isso leva a outro assunto delicado: sua sexualidade. Segundo Mariana, embora aberta a diversos tipos de relações, nunca se revelou. “Seus amigos acreditavam que era bissexual, mas não posso afirmar isso”, diz Mariana, que a entendeu melhor também como escritora: como era estranha sua personalidade e como eram incomuns sua imaginação e seu humor.

Veja a entrevista, realizada por e-mail

Fale sobre o título do livro: é um retrato, não uma biografia porque não representa realmente uma pessoa?

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Não, porque o meu é um olhar parcial sobre Silvina Ocampo e porque não tinha o material completo para uma biografia, as cartas por exemplo (Silvina tem testamenteiro) e outros documentos estão em poder de seus herdeiros. A intenção era oferecer um olhar, não uma totalidade de historiador. Por outro lado, também não acho que a totalidade seja possível - um olhar é sempre subjetivo, mas neste caso havia ainda uma falta de documentos que respeitei, porque o responsável foi muito gentil e me falou sobre tudo o que tinha, mas não mostrou.

“Gosto muito de Silvina Ocampo, mas não sou sua fã”, disse você em uma entrevista. Então, isso te livrou de subjetividades no momento da narração?

Libertou-me de me deixar dominar pela sua figura e de me deixar levar por um entusiasmo desenfreado e poder analisá-la a partir de uma maior distância. Mas a subjetividade sempre existe. É impossível se livrar de suas próprias opiniões, gostos e impressões e é bom que assim seja. Como cronista e retratista, sou totalmente fiel aos dados, não há uma linha de ficção no texto (pode haver erros, o que é outra coisa). Mas a escolha do que contar, como, quais detalhes me chamam a atenção, o que mais me interessa, tudo isso é subjetivo. Por exemplo: dediquei um capítulo a cada um dos seus livros e isso sem dúvida aconteceu porque quis dar muita relevância à sua obra, e talvez tenha a ver com o fato de eu também ser escritora, por isso não quis deixar esse aspecto relegado.

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Como foi seu processo de pesquisa?

Longo - começou com a leitura de toda a bibliografia teórico-acadêmica, que é vasta e complexa; continuou com a releitura ou primeira leitura de sua obra; depois entrevistar os amigos ainda restantes, os conhecidos dela e jornalistas; procurar críticas relacionadas aos seus livros; pesquisar as referências nos extensos diários de Bioy (ela não mantinha um diário). Visitei também suas residências, que foram várias, para me dar uma ideia dos ambientes. Depois, houve muito trabalho de edição.

Capa de A Irmã Menor, de Mariana Enriquez Foto: Editora Relicário
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Durante o processo de escrita, você acabou se encantando por ela? Era uma mulher nada convencional, certo?

Ela me divertia, ri muito com a Silvina. E eu a entendi melhor também como escritora: como era estranha como personalidade, mas também como artista, como eram incomuns sua imaginação e seu humor. Foi muito agradável voltar às suas histórias depois de ouvir muito sobre ela.

Como surgiu o fascínio dela ainda criança pelos pobres?

É uma de suas características mais estranha e um tanto perversa. Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.

Ela fala sobre a morte da irmã, o que a fez refugiar-se entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela.

Acho que ela trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos escritores, mas muito peculiares e vários eram homossexuais.

Aliás, o que você pode dizer sobre a sexualidade dela? A escritora Alejandra Pizarnik teria se suicidado por amor a ela?

Acho que ela tinha uma sexualidade muito aberta, mas nunca se definiu, então não posso fazer isso por ela. Seus amigos, alguns deles, acham que ela era bissexual, mas não posso dizer isso. Nunca consegui verificar o romance com Alejandra a partir de dados: fiz entrevistas com quem afirmava conhecer esse amor, mas não acredito que Alejandra tenha se suicidado por ela ou por qualquer outra pessoa, pois seus problemas psicológicos eram muitos.

E o suposto caso amoroso de Silvina com a mãe de Bioy parece incestuoso.

É, e é uma lenda urbana entre os intelectuais argentinos promovida por algum dândi da época e, a meu ver, é uma confusão que uma mulher de sexualidade livre e ambígua causava em seu tempo. Ela até se vestia com a roupa do marido, era andrógina. Em algumas crônicas da época, isso é referido como boato. Quis incorporá-lo sobretudo para dar uma ideia do tipo de mitologia criado em torno desta mulher.

Como era a relação de Silvina com Borges? Muitos dizem que ela não gostava muito dele, mas o segundo livro de Silvina, chamado ‘Autobiografia de Irene’, é muito borgiano.

Era uma relação complexa em termos literários. Acho que Silvina gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas ela não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para Borges, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse “experimento” a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.

Beatriz Sarlo diz, em um de seus ensaios, que sua geração, na Argentina, foi marcada politicamente por Juan Domingo Perón e culturalmente por Borges, que era antiperonista. Como Silvina se posicionou?

Silvina era antiperonista, como quase toda a turma, como Borges, como a irmã. Ela escreveu poemas explicitamente antiperonistas e muito ruins. Mas não falava muito sobre o assunto nem se posicionava com firmeza política como sua irmã Victoria ou mesmo Borges.

Você acha que existe uma relação profunda entre biografia e psicanálise, no sentido de que sempre há, em ambas, uma verdade oculta a ser revelada?

Não sei. Talvez a verdade oculta seja revelada ou revelada mais pelo autor do que pelo biógrafo.

Era um trio que se admirava, mas também se desprezava com a mesma intensidade. O escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999) era casado com a também autora e artista plástica Silvina Ocampo (1903-1993) e a luxuosa casa de ambos em Buenos Aires era frequentada por Jorge Luis Borges (1899-1986), apontado como um dos grandes nomes da literatura mundial e amigo fraterno de Casares - durante mais de 30 anos, eles jantaram sozinhos em uma das salas daquele casarão.

Em outro cômodo, Silvina ouvia as gargalhadas provocadas por comentários sarcásticos, como o dito certa vez por Borges: “Todos nós caminhamos para o anonimato, mas os medíocres chegam um pouco antes”. “De que riem esses idiotas?”, refletia ela, incomodada com a gargalhada de Borges (rouca e desagradável) e injustamente deixada em segundo plano - pintora (era discípula de Giorgio de Chirico), poeta e contista, Silvina Ocampo era a caçula de seis irmãs e, além da sombra projetada pelo marido, sempre permaneceu em segundo plano, obscurecida pela arrogância avassaladora de sua irmã mais velha Victoria, um dos principais nomes da escrita argentina no entreguerras.

A autora argentina Silvina Ocampo Foto: Acervo Bioy

“Era uma relação complexa em termos literários”, observa ao Estadão a escritora Mariana Enriquez, uma das principais escritoras argentinas contemporâneas, autora de A Irmã Menor (Relicário), um retrato de Silvina Ocampo. “Ela gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas Silvina não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para ele, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse ‘experimento’ a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.”

Foi justamente com os contos desse livro, publicado em 1959 e lançado pela Companhia das Letras, que Silvina conquistou um lugar definitivo na literatura, estabelecendo uma voz única e criando um universo alucinado, em que suas histórias misturam elegância e excesso, distanciamento e intensidade, calma e horror. Ao mesmo tempo, alimentava um exotismo a partir de seus atos - como o fascínio, desde criança, por pessoas pobres.

Jorge Luis Borges (sentado) e Adolfo Bioy Casares Foto: Julio Giostozza

“É uma de suas características mais estranhas e um tanto perversas”, observa Mariana. “Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.”

De fato, Silvina sente muito a morte da irmã Clara por diabete infantil, o que a fez refugiar-se ainda mais entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela. “Na verdade, Silvina trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos autores, mas muitas pessoas peculiares e várias eram homossexuais.”

A escritora argentina, autora de A Irmã Menor Foto: Nora Lezano

Isso leva a outro assunto delicado: sua sexualidade. Segundo Mariana, embora aberta a diversos tipos de relações, nunca se revelou. “Seus amigos acreditavam que era bissexual, mas não posso afirmar isso”, diz Mariana, que a entendeu melhor também como escritora: como era estranha sua personalidade e como eram incomuns sua imaginação e seu humor.

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Fale sobre o título do livro: é um retrato, não uma biografia porque não representa realmente uma pessoa?

Não, porque o meu é um olhar parcial sobre Silvina Ocampo e porque não tinha o material completo para uma biografia, as cartas por exemplo (Silvina tem testamenteiro) e outros documentos estão em poder de seus herdeiros. A intenção era oferecer um olhar, não uma totalidade de historiador. Por outro lado, também não acho que a totalidade seja possível - um olhar é sempre subjetivo, mas neste caso havia ainda uma falta de documentos que respeitei, porque o responsável foi muito gentil e me falou sobre tudo o que tinha, mas não mostrou.

“Gosto muito de Silvina Ocampo, mas não sou sua fã”, disse você em uma entrevista. Então, isso te livrou de subjetividades no momento da narração?

Libertou-me de me deixar dominar pela sua figura e de me deixar levar por um entusiasmo desenfreado e poder analisá-la a partir de uma maior distância. Mas a subjetividade sempre existe. É impossível se livrar de suas próprias opiniões, gostos e impressões e é bom que assim seja. Como cronista e retratista, sou totalmente fiel aos dados, não há uma linha de ficção no texto (pode haver erros, o que é outra coisa). Mas a escolha do que contar, como, quais detalhes me chamam a atenção, o que mais me interessa, tudo isso é subjetivo. Por exemplo: dediquei um capítulo a cada um dos seus livros e isso sem dúvida aconteceu porque quis dar muita relevância à sua obra, e talvez tenha a ver com o fato de eu também ser escritora, por isso não quis deixar esse aspecto relegado.

Como foi seu processo de pesquisa?

Longo - começou com a leitura de toda a bibliografia teórico-acadêmica, que é vasta e complexa; continuou com a releitura ou primeira leitura de sua obra; depois entrevistar os amigos ainda restantes, os conhecidos dela e jornalistas; procurar críticas relacionadas aos seus livros; pesquisar as referências nos extensos diários de Bioy (ela não mantinha um diário). Visitei também suas residências, que foram várias, para me dar uma ideia dos ambientes. Depois, houve muito trabalho de edição.

Capa de A Irmã Menor, de Mariana Enriquez Foto: Editora Relicário

Durante o processo de escrita, você acabou se encantando por ela? Era uma mulher nada convencional, certo?

Ela me divertia, ri muito com a Silvina. E eu a entendi melhor também como escritora: como era estranha como personalidade, mas também como artista, como eram incomuns sua imaginação e seu humor. Foi muito agradável voltar às suas histórias depois de ouvir muito sobre ela.

Como surgiu o fascínio dela ainda criança pelos pobres?

É uma de suas características mais estranha e um tanto perversa. Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.

Ela fala sobre a morte da irmã, o que a fez refugiar-se entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela.

Acho que ela trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos escritores, mas muito peculiares e vários eram homossexuais.

Aliás, o que você pode dizer sobre a sexualidade dela? A escritora Alejandra Pizarnik teria se suicidado por amor a ela?

Acho que ela tinha uma sexualidade muito aberta, mas nunca se definiu, então não posso fazer isso por ela. Seus amigos, alguns deles, acham que ela era bissexual, mas não posso dizer isso. Nunca consegui verificar o romance com Alejandra a partir de dados: fiz entrevistas com quem afirmava conhecer esse amor, mas não acredito que Alejandra tenha se suicidado por ela ou por qualquer outra pessoa, pois seus problemas psicológicos eram muitos.

E o suposto caso amoroso de Silvina com a mãe de Bioy parece incestuoso.

É, e é uma lenda urbana entre os intelectuais argentinos promovida por algum dândi da época e, a meu ver, é uma confusão que uma mulher de sexualidade livre e ambígua causava em seu tempo. Ela até se vestia com a roupa do marido, era andrógina. Em algumas crônicas da época, isso é referido como boato. Quis incorporá-lo sobretudo para dar uma ideia do tipo de mitologia criado em torno desta mulher.

Como era a relação de Silvina com Borges? Muitos dizem que ela não gostava muito dele, mas o segundo livro de Silvina, chamado ‘Autobiografia de Irene’, é muito borgiano.

Era uma relação complexa em termos literários. Acho que Silvina gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas ela não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para Borges, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse “experimento” a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.

Beatriz Sarlo diz, em um de seus ensaios, que sua geração, na Argentina, foi marcada politicamente por Juan Domingo Perón e culturalmente por Borges, que era antiperonista. Como Silvina se posicionou?

Silvina era antiperonista, como quase toda a turma, como Borges, como a irmã. Ela escreveu poemas explicitamente antiperonistas e muito ruins. Mas não falava muito sobre o assunto nem se posicionava com firmeza política como sua irmã Victoria ou mesmo Borges.

Você acha que existe uma relação profunda entre biografia e psicanálise, no sentido de que sempre há, em ambas, uma verdade oculta a ser revelada?

Não sei. Talvez a verdade oculta seja revelada ou revelada mais pelo autor do que pelo biógrafo.

Era um trio que se admirava, mas também se desprezava com a mesma intensidade. O escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999) era casado com a também autora e artista plástica Silvina Ocampo (1903-1993) e a luxuosa casa de ambos em Buenos Aires era frequentada por Jorge Luis Borges (1899-1986), apontado como um dos grandes nomes da literatura mundial e amigo fraterno de Casares - durante mais de 30 anos, eles jantaram sozinhos em uma das salas daquele casarão.

Em outro cômodo, Silvina ouvia as gargalhadas provocadas por comentários sarcásticos, como o dito certa vez por Borges: “Todos nós caminhamos para o anonimato, mas os medíocres chegam um pouco antes”. “De que riem esses idiotas?”, refletia ela, incomodada com a gargalhada de Borges (rouca e desagradável) e injustamente deixada em segundo plano - pintora (era discípula de Giorgio de Chirico), poeta e contista, Silvina Ocampo era a caçula de seis irmãs e, além da sombra projetada pelo marido, sempre permaneceu em segundo plano, obscurecida pela arrogância avassaladora de sua irmã mais velha Victoria, um dos principais nomes da escrita argentina no entreguerras.

A autora argentina Silvina Ocampo Foto: Acervo Bioy

“Era uma relação complexa em termos literários”, observa ao Estadão a escritora Mariana Enriquez, uma das principais escritoras argentinas contemporâneas, autora de A Irmã Menor (Relicário), um retrato de Silvina Ocampo. “Ela gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas Silvina não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para ele, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse ‘experimento’ a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.”

Foi justamente com os contos desse livro, publicado em 1959 e lançado pela Companhia das Letras, que Silvina conquistou um lugar definitivo na literatura, estabelecendo uma voz única e criando um universo alucinado, em que suas histórias misturam elegância e excesso, distanciamento e intensidade, calma e horror. Ao mesmo tempo, alimentava um exotismo a partir de seus atos - como o fascínio, desde criança, por pessoas pobres.

Jorge Luis Borges (sentado) e Adolfo Bioy Casares Foto: Julio Giostozza

“É uma de suas características mais estranhas e um tanto perversas”, observa Mariana. “Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.”

De fato, Silvina sente muito a morte da irmã Clara por diabete infantil, o que a fez refugiar-se ainda mais entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela. “Na verdade, Silvina trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos autores, mas muitas pessoas peculiares e várias eram homossexuais.”

A escritora argentina, autora de A Irmã Menor Foto: Nora Lezano

Isso leva a outro assunto delicado: sua sexualidade. Segundo Mariana, embora aberta a diversos tipos de relações, nunca se revelou. “Seus amigos acreditavam que era bissexual, mas não posso afirmar isso”, diz Mariana, que a entendeu melhor também como escritora: como era estranha sua personalidade e como eram incomuns sua imaginação e seu humor.

Veja a entrevista, realizada por e-mail

Fale sobre o título do livro: é um retrato, não uma biografia porque não representa realmente uma pessoa?

Não, porque o meu é um olhar parcial sobre Silvina Ocampo e porque não tinha o material completo para uma biografia, as cartas por exemplo (Silvina tem testamenteiro) e outros documentos estão em poder de seus herdeiros. A intenção era oferecer um olhar, não uma totalidade de historiador. Por outro lado, também não acho que a totalidade seja possível - um olhar é sempre subjetivo, mas neste caso havia ainda uma falta de documentos que respeitei, porque o responsável foi muito gentil e me falou sobre tudo o que tinha, mas não mostrou.

“Gosto muito de Silvina Ocampo, mas não sou sua fã”, disse você em uma entrevista. Então, isso te livrou de subjetividades no momento da narração?

Libertou-me de me deixar dominar pela sua figura e de me deixar levar por um entusiasmo desenfreado e poder analisá-la a partir de uma maior distância. Mas a subjetividade sempre existe. É impossível se livrar de suas próprias opiniões, gostos e impressões e é bom que assim seja. Como cronista e retratista, sou totalmente fiel aos dados, não há uma linha de ficção no texto (pode haver erros, o que é outra coisa). Mas a escolha do que contar, como, quais detalhes me chamam a atenção, o que mais me interessa, tudo isso é subjetivo. Por exemplo: dediquei um capítulo a cada um dos seus livros e isso sem dúvida aconteceu porque quis dar muita relevância à sua obra, e talvez tenha a ver com o fato de eu também ser escritora, por isso não quis deixar esse aspecto relegado.

Como foi seu processo de pesquisa?

Longo - começou com a leitura de toda a bibliografia teórico-acadêmica, que é vasta e complexa; continuou com a releitura ou primeira leitura de sua obra; depois entrevistar os amigos ainda restantes, os conhecidos dela e jornalistas; procurar críticas relacionadas aos seus livros; pesquisar as referências nos extensos diários de Bioy (ela não mantinha um diário). Visitei também suas residências, que foram várias, para me dar uma ideia dos ambientes. Depois, houve muito trabalho de edição.

Capa de A Irmã Menor, de Mariana Enriquez Foto: Editora Relicário

Durante o processo de escrita, você acabou se encantando por ela? Era uma mulher nada convencional, certo?

Ela me divertia, ri muito com a Silvina. E eu a entendi melhor também como escritora: como era estranha como personalidade, mas também como artista, como eram incomuns sua imaginação e seu humor. Foi muito agradável voltar às suas histórias depois de ouvir muito sobre ela.

Como surgiu o fascínio dela ainda criança pelos pobres?

É uma de suas características mais estranha e um tanto perversa. Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.

Ela fala sobre a morte da irmã, o que a fez refugiar-se entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela.

Acho que ela trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos escritores, mas muito peculiares e vários eram homossexuais.

Aliás, o que você pode dizer sobre a sexualidade dela? A escritora Alejandra Pizarnik teria se suicidado por amor a ela?

Acho que ela tinha uma sexualidade muito aberta, mas nunca se definiu, então não posso fazer isso por ela. Seus amigos, alguns deles, acham que ela era bissexual, mas não posso dizer isso. Nunca consegui verificar o romance com Alejandra a partir de dados: fiz entrevistas com quem afirmava conhecer esse amor, mas não acredito que Alejandra tenha se suicidado por ela ou por qualquer outra pessoa, pois seus problemas psicológicos eram muitos.

E o suposto caso amoroso de Silvina com a mãe de Bioy parece incestuoso.

É, e é uma lenda urbana entre os intelectuais argentinos promovida por algum dândi da época e, a meu ver, é uma confusão que uma mulher de sexualidade livre e ambígua causava em seu tempo. Ela até se vestia com a roupa do marido, era andrógina. Em algumas crônicas da época, isso é referido como boato. Quis incorporá-lo sobretudo para dar uma ideia do tipo de mitologia criado em torno desta mulher.

Como era a relação de Silvina com Borges? Muitos dizem que ela não gostava muito dele, mas o segundo livro de Silvina, chamado ‘Autobiografia de Irene’, é muito borgiano.

Era uma relação complexa em termos literários. Acho que Silvina gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas ela não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para Borges, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse “experimento” a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.

Beatriz Sarlo diz, em um de seus ensaios, que sua geração, na Argentina, foi marcada politicamente por Juan Domingo Perón e culturalmente por Borges, que era antiperonista. Como Silvina se posicionou?

Silvina era antiperonista, como quase toda a turma, como Borges, como a irmã. Ela escreveu poemas explicitamente antiperonistas e muito ruins. Mas não falava muito sobre o assunto nem se posicionava com firmeza política como sua irmã Victoria ou mesmo Borges.

Você acha que existe uma relação profunda entre biografia e psicanálise, no sentido de que sempre há, em ambas, uma verdade oculta a ser revelada?

Não sei. Talvez a verdade oculta seja revelada ou revelada mais pelo autor do que pelo biógrafo.

Era um trio que se admirava, mas também se desprezava com a mesma intensidade. O escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999) era casado com a também autora e artista plástica Silvina Ocampo (1903-1993) e a luxuosa casa de ambos em Buenos Aires era frequentada por Jorge Luis Borges (1899-1986), apontado como um dos grandes nomes da literatura mundial e amigo fraterno de Casares - durante mais de 30 anos, eles jantaram sozinhos em uma das salas daquele casarão.

Em outro cômodo, Silvina ouvia as gargalhadas provocadas por comentários sarcásticos, como o dito certa vez por Borges: “Todos nós caminhamos para o anonimato, mas os medíocres chegam um pouco antes”. “De que riem esses idiotas?”, refletia ela, incomodada com a gargalhada de Borges (rouca e desagradável) e injustamente deixada em segundo plano - pintora (era discípula de Giorgio de Chirico), poeta e contista, Silvina Ocampo era a caçula de seis irmãs e, além da sombra projetada pelo marido, sempre permaneceu em segundo plano, obscurecida pela arrogância avassaladora de sua irmã mais velha Victoria, um dos principais nomes da escrita argentina no entreguerras.

A autora argentina Silvina Ocampo Foto: Acervo Bioy

“Era uma relação complexa em termos literários”, observa ao Estadão a escritora Mariana Enriquez, uma das principais escritoras argentinas contemporâneas, autora de A Irmã Menor (Relicário), um retrato de Silvina Ocampo. “Ela gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas Silvina não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para ele, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse ‘experimento’ a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.”

Foi justamente com os contos desse livro, publicado em 1959 e lançado pela Companhia das Letras, que Silvina conquistou um lugar definitivo na literatura, estabelecendo uma voz única e criando um universo alucinado, em que suas histórias misturam elegância e excesso, distanciamento e intensidade, calma e horror. Ao mesmo tempo, alimentava um exotismo a partir de seus atos - como o fascínio, desde criança, por pessoas pobres.

Jorge Luis Borges (sentado) e Adolfo Bioy Casares Foto: Julio Giostozza

“É uma de suas características mais estranhas e um tanto perversas”, observa Mariana. “Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.”

De fato, Silvina sente muito a morte da irmã Clara por diabete infantil, o que a fez refugiar-se ainda mais entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela. “Na verdade, Silvina trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos autores, mas muitas pessoas peculiares e várias eram homossexuais.”

A escritora argentina, autora de A Irmã Menor Foto: Nora Lezano

Isso leva a outro assunto delicado: sua sexualidade. Segundo Mariana, embora aberta a diversos tipos de relações, nunca se revelou. “Seus amigos acreditavam que era bissexual, mas não posso afirmar isso”, diz Mariana, que a entendeu melhor também como escritora: como era estranha sua personalidade e como eram incomuns sua imaginação e seu humor.

Veja a entrevista, realizada por e-mail

Fale sobre o título do livro: é um retrato, não uma biografia porque não representa realmente uma pessoa?

Não, porque o meu é um olhar parcial sobre Silvina Ocampo e porque não tinha o material completo para uma biografia, as cartas por exemplo (Silvina tem testamenteiro) e outros documentos estão em poder de seus herdeiros. A intenção era oferecer um olhar, não uma totalidade de historiador. Por outro lado, também não acho que a totalidade seja possível - um olhar é sempre subjetivo, mas neste caso havia ainda uma falta de documentos que respeitei, porque o responsável foi muito gentil e me falou sobre tudo o que tinha, mas não mostrou.

“Gosto muito de Silvina Ocampo, mas não sou sua fã”, disse você em uma entrevista. Então, isso te livrou de subjetividades no momento da narração?

Libertou-me de me deixar dominar pela sua figura e de me deixar levar por um entusiasmo desenfreado e poder analisá-la a partir de uma maior distância. Mas a subjetividade sempre existe. É impossível se livrar de suas próprias opiniões, gostos e impressões e é bom que assim seja. Como cronista e retratista, sou totalmente fiel aos dados, não há uma linha de ficção no texto (pode haver erros, o que é outra coisa). Mas a escolha do que contar, como, quais detalhes me chamam a atenção, o que mais me interessa, tudo isso é subjetivo. Por exemplo: dediquei um capítulo a cada um dos seus livros e isso sem dúvida aconteceu porque quis dar muita relevância à sua obra, e talvez tenha a ver com o fato de eu também ser escritora, por isso não quis deixar esse aspecto relegado.

Como foi seu processo de pesquisa?

Longo - começou com a leitura de toda a bibliografia teórico-acadêmica, que é vasta e complexa; continuou com a releitura ou primeira leitura de sua obra; depois entrevistar os amigos ainda restantes, os conhecidos dela e jornalistas; procurar críticas relacionadas aos seus livros; pesquisar as referências nos extensos diários de Bioy (ela não mantinha um diário). Visitei também suas residências, que foram várias, para me dar uma ideia dos ambientes. Depois, houve muito trabalho de edição.

Capa de A Irmã Menor, de Mariana Enriquez Foto: Editora Relicário

Durante o processo de escrita, você acabou se encantando por ela? Era uma mulher nada convencional, certo?

Ela me divertia, ri muito com a Silvina. E eu a entendi melhor também como escritora: como era estranha como personalidade, mas também como artista, como eram incomuns sua imaginação e seu humor. Foi muito agradável voltar às suas histórias depois de ouvir muito sobre ela.

Como surgiu o fascínio dela ainda criança pelos pobres?

É uma de suas características mais estranha e um tanto perversa. Ela era indiscutivelmente rica e quase considerava os pobres como pessoas exóticas. É até um tanto cruel, brutal. No entanto, todos que a conheceram afirmam que ela tinha um jeito muito horizontal de se relacionar, que ninguém a achava milionária. Mesmo assim, Silvina tinha um lado perverso, como muitos aspectos de sua personalidade.

Ela fala sobre a morte da irmã, o que a fez refugiar-se entre os criados. “Foi aí que começou meu ódio pela sociabilidade”, diz ela.

Acho que ela trata de uma sociabilidade de classe, porque tinha muitos amigos, mas não escritores, nem gente do mundo da cultura, nem da sua classe social - preferia outras companhias. Tinha, sim, amigos escritores, mas muito peculiares e vários eram homossexuais.

Aliás, o que você pode dizer sobre a sexualidade dela? A escritora Alejandra Pizarnik teria se suicidado por amor a ela?

Acho que ela tinha uma sexualidade muito aberta, mas nunca se definiu, então não posso fazer isso por ela. Seus amigos, alguns deles, acham que ela era bissexual, mas não posso dizer isso. Nunca consegui verificar o romance com Alejandra a partir de dados: fiz entrevistas com quem afirmava conhecer esse amor, mas não acredito que Alejandra tenha se suicidado por ela ou por qualquer outra pessoa, pois seus problemas psicológicos eram muitos.

E o suposto caso amoroso de Silvina com a mãe de Bioy parece incestuoso.

É, e é uma lenda urbana entre os intelectuais argentinos promovida por algum dândi da época e, a meu ver, é uma confusão que uma mulher de sexualidade livre e ambígua causava em seu tempo. Ela até se vestia com a roupa do marido, era andrógina. Em algumas crônicas da época, isso é referido como boato. Quis incorporá-lo sobretudo para dar uma ideia do tipo de mitologia criado em torno desta mulher.

Como era a relação de Silvina com Borges? Muitos dizem que ela não gostava muito dele, mas o segundo livro de Silvina, chamado ‘Autobiografia de Irene’, é muito borgiano.

Era uma relação complexa em termos literários. Acho que Silvina gostava do Borges e seu livro Autobiografia de Irene, que é muito borgiano, mostra isso, mas ela não queria escrever como ele, aquela não era a voz dela. Gostava do surrealismo, da decadente poesia francesa, coisas que Borges detestava. Para Borges, Silvina parecia brilhante, mas acredito que ele também não gostava da literatura dela. Pelo que se vislumbra em jornais e opiniões, era uma relação de grande respeito literário, mas nenhum era apaixonado pela obra ou pelo estilo do outro. Acredito que Silvina tentou escrever como Borges naquela época porque ainda procurava sua voz, e esse “experimento” a levou a finalmente encontrá-la, em um livro totalmente ocampiano como o que se segue, A Fúria.

Beatriz Sarlo diz, em um de seus ensaios, que sua geração, na Argentina, foi marcada politicamente por Juan Domingo Perón e culturalmente por Borges, que era antiperonista. Como Silvina se posicionou?

Silvina era antiperonista, como quase toda a turma, como Borges, como a irmã. Ela escreveu poemas explicitamente antiperonistas e muito ruins. Mas não falava muito sobre o assunto nem se posicionava com firmeza política como sua irmã Victoria ou mesmo Borges.

Você acha que existe uma relação profunda entre biografia e psicanálise, no sentido de que sempre há, em ambas, uma verdade oculta a ser revelada?

Não sei. Talvez a verdade oculta seja revelada ou revelada mais pelo autor do que pelo biógrafo.

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