Levou 70 anos para que a holandesa Nanette Blitz Konig, hoje com 86, pusesse no papel os horrores que ela e sua família viram e viveram a partir de 1940, quando os soldados alemães chegaram a seu país. Foram cerca de três anos de apreensão até uma manhã de setembro de 1943, quando as batidas na porta anunciaram que chegara a vez deles. Eles sabiam que seriam levados a algum campo - se de extermínio ou de trabalho forçado não tinham ideia. E aí começa o fim da história dessa família (pai, mãe, uma menina de 14 anos, um menino de 16) de origem judaica, mas não muito religiosa, que seria exterminada, como tantas outras, pelo capricho de Hitler. Nanette não sabe como, mas aguentou firme até o final. Quando os ingleses libertaram Bergen-Belsen, ela pesava 31 quilos. Estava viva - e sozinha no mundo.
“Sou da opinião de que se alguém, por acaso, sobreviveu, e é por acaso mesmo, porque não conseguiram matar por alguma razão, essa pessoa tem a obrigação de dizer que o Holocausto existiu com todas as suas horrendas brutalidades. É preciso saber o que aconteceu, e não foi pouca coisa”, diz ao Estado, na casa em que vive desde os anos 1950, em São Paulo. Foi aqui que ela recomeçou a vida e construiu uma nova família - sem nunca se esquecer dos pais e do irmão, de quem nunca pode se despedir. “Lembro para poder viver, porque esquecer é morrer e perder de vez minha família”, escreve em Eu Sobrevivi ao Holocausto, que chega às livrarias pela Universo dos Livros na última semana de julho. O lançamento será no dia 11 de agosto, na Saraiva (Shopping Higienópolis).
Nanette Blitz Konig conta sua história de sobrevivente de guerra
O livro tem um intertítulo mais comercial: O Comovente Relato de Uma das Últimas Amigas Vivas de Anne Frank. Não que elas fossem de fato próximas enquanto estudavam no Liceu Judaico. No dia 15 de junho de 1942, nas primeiras páginas do diário que ficaria famoso depois da guerra, Anne escreve sobre Nanette, que aparece como E.S.: “E.S. fala muito e não é engraçada. Vive mexendo no cabelo da gente ou tocando em nossos botões quando pergunta alguma coisa. Dizem que ela não me suporta, mas não ligo, porque também não gosto muito dela”.
Mas nada disso importou no reencontro em Bergen-Belsen. Anne, cheia de piolhos, nua e enrolada num cobertor, um esqueleto a poucas semanas de sua morte, deu um abraço emocionado na amiga. Elas conversaram, deram apoio uma à outra. Nanette não se lembra bem se o encontro anterior das duas tinha sido na festinha de 13 anos de Anne, quando ela ganhou o diário do pai e um broche dela, ou se foi na escola. E por ter sido uma das últimas a estar com a garota no campo, e por lembrar vividamente desses encontros, contados agora em seu livro de memória, ela virou personagem de Lá Fora, A Guerra: O Mundo de Anne Frank, da holandesa Janny van de Molen, que, coincidentemente, chega agora às livrarias brasileiras (leia abaixo).
Esses encontros são apenas uma pequena parte do volume que conta em detalhes o caminho percorrido pela família de Nanette e seu fim trágico. O pai trocou a rara comida por cigarro e morreu de enfarte. O irmão, ela acredita, foi fuzilado. A mãe morreu num trem (que já a levaria para a morte). Ela viu os dois partindo e não pode dar o último abraço. “Eles tinham de entrar rapidinho no trem e não tinha isso de despedida”, conta. Só soube da morte deles por volta de agosto de 1945, quando já estava internada para se recuperar - foram três anos de tratamento (no fim da guerra teve tifo, tuberculose e pleurisia).
Ela credita à sua resistência física o fato de ter aguentado tudo o que aguentou no campo. E a vontade de viver nunca deixou de existir. “Ninguém morre porque quer. A vida tem muito valor. E uma vez que se está vivo tem que aceitar a vida como ela é, o que resta dela, e fazer o melhor que pode”, diz.
“Nada a fazer a não ser seguir adiante” é uma das expressões mais usadas por Nanette. É isso a vida? “É. É isso. Não podemos mudar, ter os pais de volta, a vida que tínhamos. Temos que assumir a vida como ela é. Fazer o melhor possível dela”, responde. O conformismo nem sempre a acompanhou. Sozinha, sem dinheiro, com a saúde debilitada, diz que quase enlouqueceu. Passou um tempo na Holanda antes de ir viver com os últimos parentes vivos em Londres.
Foi lá que encontrou, por força do destino, John, também órfão recente (os pais morreram de câncer). E é ao contar essa história que teve início em 1951 e lhe abriu toda uma possibilidade de futuro, de seguir adiante, como diz, que seu rosto se ilumina e o sorriso aparece. Ele estava de mudança marcada para o Brasil. Eles se casaram em 1953 e ela também veio. De lá para cá, nasceram três filhos, seis netos e quatro bisnetas.
Desde 1999, ela visita escolas para falar de sua história. “Cerca de 90% das pessoas nunca ouviram falar de Holocausto. É por isso que faço o que faço.” Nesse período, foi procurada por algumas pessoas que quiseram escrever sua história. Mas só agora, ao conhecer a editora Márcia Batista, é que, ela conta, sentiu confiança. Ela também gostou da ghost writer contratada. “Elas tiveram que se colocar nesse lugar e é muito difícil.”
O tempo, ela diz, não embaralha a memória. “Por enquanto, estou muito bem, obrigada”, brinca. E completa: “Foi tudo tão brutal que é difícil esquecer e penso nisso sempre. Faz parte da minha vida. O que ajuda é que tenho uma família maravilhosa.” Vendo o livro pronto, ela confessa que ele não foi capaz de mostrar o que passou e sentiu. “Mas ele mostra muita coisa e, principalmente, como tem que assumir a vida depois. É impossível alguém que não viveu aquilo imaginar os horrores, o medo, a tensão. Ninguém tem imaginação suficiente para chegar ao campo de concentração. E para quem viveu é difícil transpor para palavras.”
Trechos
"O tempo escorre entre nossos dedos. O Holocausto se distancia cada vez mais, mas, ainda assim, temos que sempre fazê-lo presente. É triste, mas o mundo ainda sofre tanto com guerras. Vou morrer lutando para que seres humanos não sofram nem percam sua dignidade como aconteceu com os judeus naquela época, como aconteceu comigo."
(...)
"Hoje olho para trás e não consigo imaginar algo mais grotesco do que essa cena: famílias reunindo os poucos pertences que podiam para seguir rumo à morte. Que humanidade seria essa?"
(...)
"Você só compreende o que é um local como esse quando passa a habitá-lo, não há outra forma de compreender. E, mesmo assim, o entendimento ainda não é total - não há como você compreender o que existe para não ser compreendido."
(...)
"Era muito comum ouvirmos o som da morte enquanto estávamos dormindo: ouvíamos uma espécie de barulho assustador, como um ronco, e sabíamos que a pessoa estava morta - era o último suspiro antes de falecer.”
(...)
"Não me contive de ansiedade e felicidade e gritei: “Anne!”. Ela ouviu seu nome ser chamado, talvez se perguntando de onde estaria vindo aquele som que lhe era familiar, e virou seu rosto em minha direção com aqueles olhos e sorriso que eu tanto havia visto no Liceu Judaico. Foi um momento muito emocionante! Ela estava envolta em um cobertor, pois não aguentava mais os piolhos na sua roupa, e tremia de frio. Corremos para nos abraçar, e lágrimas caíam dos nossos rostos, lágrimas que possuíam todos os sentimentos misturados: lágrimas de alegria e alívio por termos nos encontrado naquele ambiente sem vida, lágrimas pela situação deprimente em que estávamos, lágrimas, também, porque naquele momento nós duas estávamos sem nossos pais, sem nenhuma proteção. Ainda é um mistério para mim como pudemos nos reconhecer: dois esqueletos naquele lugar em meio a tantos outros que não conseguiam se diferenciar. Mas os olhos conhecidos não negaram o passado comum (...)."
EU SOBREVIVI AO HOLOCAUSTO
Autora: Nanette Blitz Konig
Editora: Universo dos Livros (192 págs., R$ 39,90)
‘O Diário’ ganha versão em romance para crianças
Escritos de Anne Frank inspiram obra infantil que tem Nanette Konig como personagem; autora virá ao País em agosto
Publicado em 1947 por Otto Frank, único sobrevivente da família, O Diário de Anne Frank vem emocionando gerações e gerações desde então. Só no Brasil, foram feitas 43 edições.
Mas um público cada vez mais jovem tem sido apresentado à história da garota que viveu num esconderijo, contou tudo no diário e morreu em campo de concentração. Por isso, a Casa de Anne Frank, um dos museus mais visitados de Amsterdã, resolveu encomendar um livro que fosse baseado no best-seller, mas que falasse diretamente a crianças de cerca de 9 anos.
A escolhida para a tarefa foi a holandesa Janny van der Molen, que virá ao Brasil para o Café Amsterdã, entre o final de agosto e o início de setembro, em São Paulo e no Rio, quando falará sobre Lá Fora, A Guerra: O Mundo de Anne Frank.
“De início, não quis fazer. Eu tinha que estar na pele de Anne Frank e tinha vivido minha vida toda em liberdade”, contou ao Estado durante visita à casa onde a família Frank se escondeu. Para ela, escrever sobre a morte foi a parte mais difícil porque se tratava de um livro infantil e porque colocava suas filhas no lugar de Anne.
“Consideramos contar de um jeito light, mas não dá para contar a história do Holocausto assim. Anne Frank foi morta. Não podemos dizer que ela morreu por causa de um resfriado.” A ideia também foi mostrar, neste romance biográfico juvenil ilustrado por Martijn van der Linen, como tudo pode mudar se não considerarmos o outro. / M.F.R.
Trecho
"Um dia, Anne foi chamada por uma menina. Ela se aproximou. Será que a conhecia? Teve que olhar bem para ver quem era. Então ela viu.
- Nanny!
Nanny era uma amiga de Anne da escola em Amsterdã. Uma das meninas que estiveram em sua festa de 13 anos.
- Anne - disse Nanny de novo, como se quase não pudesse acreditar que era realmente Anne Frank ali, - Você está tremendo."
O MUNDO DE ANNE FRANK
Autora: Janny van der Molen
Trad.: Alexandra de Vries
Editora: Rocco (184 págs., R$ 34,50)