Stéphane Mallarmé e Carl Andre trazem à tona a dimensão experimental da poesia


Os dois poetas apostam no diálogo da palavra com o branco da página, em exuberantes criações visuais

Por Sérgio Medeiros

Dois lançamentos recentes dedicados à poesia, Um Lance de Dados (bilíngue), de Stéphane Mallarmé, e Poems, de Carl Andre, trazem à tona a dimensão assumidamente experimental desse gênero de expressão, pois ambos os poetas apostam no diálogo da palavra com o branco da página, em exuberantes criações visuais.

Traduzido por Álvaro Faleiros, o poema de Mallarmé, de 1897, assume no prefácio que é “uma encenação espiritual exata” a que “faltam precedentes”, dando origem talvez à “quase uma arte”, em que o tema é o naufrágio. Essa obra-prima já havia sido traduzida nos anos 1970 por Haroldo de Campos, com quem o tradutor atual dialoga, concluindo que “a tradução haroldiana produz um texto ainda mais erudito e rebuscado do que o próprio texto mallarmeano”. O exemplo mais eloquente desse “preciosismo” talvez seja “chantar”, tradução de Campos para “imposer” (impor), termo corrente em francês.

Um Lance de Dados, de Mallarmé, já havia sido traduzido nos por Haroldo de Campos Foto: Reprodução
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Na tradução do prefácio que o próprio poeta escreveu já se percebem as diferenças entre as duas versões em língua portuguesa. A expressão “mise en scène”, por exemplo, se transforma em “cenografia”, na primeira versão brasileira, e em “encenação”, na segunda, e por isso merece um comentário de Faleiros, que conclui: “Não se trata mais de fazer da tradução uma arma de batalha contra um pretenso conservadorismo ou parnasianismo reinante, mas, sobretudo, fazer da tradução um instrumento de reflexão sobre o que está em jogo no ato de traduzir e no texto traduzido”.

Num ponto, porém, o trabalho de Faleiros poderá frustrar o leitor. Numa das páginas culminantes do poema lemos o verso: “Rien n’aura eu lieu que le lieu”, que alude, entre outras coisas, ao fracasso das palavras em preencher de sentido o vazio existencial. A tradução de Faleiros diz: “Nada terá tido o lugar senão o lugar”. A expressão vernácula é “ter lugar”, sem o artigo “o”, e significa “ter cabimento”, “caber”, “ser oportuno”. Ela também pode significar, embora isso seja considerado pelos puristas francesismo, ou galicismo, “acontecer”, e é nessa acepção, parece-me, que deveria ser usada na tradução do poema de Mallarmé. A tradução de Haroldo de Campos emprega “ter lugar” e não o inusitado “ter o lugar”. A versão portuguesa de Armando Silva Carvalho, de 2001, confirma a de Campos. 

A presença do artigo “o” nessa frase vernácula não foi um casual erro de impressão, pois o tradutor, ao longo do ensaio que precede a sua versão, repete várias vezes a expressão “nada terá tido o lugar”, que esperamos possa ser devidamente explicada na próxima edição de Um Lance de Dados. Deve-se destacar, porém, que essa nova edição, conforme se lê na primeira orelha, “leva em conta as indicações de formato deixadas por Mallarmé”, cuidado que a tradução anterior não teria tomado.

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Entre maio e agosto de 2014, no Museum zu Allerheiligen, de Schaffhausen, na Suíça, o escultor e poeta norte-americano Carl Andre expôs seus poemas visuais, que flertam com a tradição modernista iniciada por Mallarmé. Na ocasião, foi lançado o livro Poems, com uma expressiva amostra da produção textual desse mestre do minimalismo, ainda ativo. Durante muitos anos, os poemas de Andre ficaram à sombra das suas esculturas revolucionárias, mas, depois da publicação, em 2011, de Carl Andre: Things in Their Elements (Phaidon), de Alistairf Rider, ela começou a receber maior atenção dos leitores. Agora, com esse lançamento, seu universo verbal se expande e ganha vida própria, embora não se separe das esculturas.

Alguns poemas de Carl Andre são, de fato, esculturas verbais e aludem, por exemplo, à famosa obra A Coluna Infinita, de Constantin Brancusi, ao reproduzir na página, com o uso de letras apenas, uma sequência de formas romboidais que recria o perfil em zigue-zague da escultura do mestre romeno que ergueu, em Târgu Jiu, na Romênia, em 1937, uma coluna de quase 30 metros de altura, feita de módulos idênticos que se repetem. A noção de “sequência ininterrupta”, que é a repetição de uma forma básica, também aparece na série One Hundred Sonnets, de Andre: um quadrado (representando os versos de um soneto) repete-se em várias páginas, alterando-se apenas as letras que o compõem – no primeiro soneto, apenas a letra “I”, que significa o pronome pessoal “eu” em inglês.

Há poemas sem letras, feitos de traços, e algumas colagens que recorrem à fotografia. Mas o que predomina é o uso de letras batidas à máquina (os poemas datam dos anos 1960) que criam formas geométricas na página – o que revelaria influência da poesia concreta, embora Andre só assuma explicitamente como mestres Gertrude Stein, Ezra Pound e William Carlos Williams. Talvez o poema mais mallarmeano do autor seja Flags, descrito por ele como “uma ópera para três vozes”, a qual pode ser lida, de fato, como uma partitura, exatamente como também Mallarmé desejava que o seu Um Lance de Dados fosse lido. 

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UM LANCE DE DADOSAutor: Stéphane Mallarmé Trad.: Álvaro Faleiros Editora: Ateliê (104 págs.; R$ 40)

POEMS Autor: Carl Andre Editora: JRP/Ringier (Importado, 144 págs.; US$ 54,90)

Sérgio Medeiros é professor de literatura na UFSC, poeta e autor de Totens, entre outras obras

Dois lançamentos recentes dedicados à poesia, Um Lance de Dados (bilíngue), de Stéphane Mallarmé, e Poems, de Carl Andre, trazem à tona a dimensão assumidamente experimental desse gênero de expressão, pois ambos os poetas apostam no diálogo da palavra com o branco da página, em exuberantes criações visuais.

Traduzido por Álvaro Faleiros, o poema de Mallarmé, de 1897, assume no prefácio que é “uma encenação espiritual exata” a que “faltam precedentes”, dando origem talvez à “quase uma arte”, em que o tema é o naufrágio. Essa obra-prima já havia sido traduzida nos anos 1970 por Haroldo de Campos, com quem o tradutor atual dialoga, concluindo que “a tradução haroldiana produz um texto ainda mais erudito e rebuscado do que o próprio texto mallarmeano”. O exemplo mais eloquente desse “preciosismo” talvez seja “chantar”, tradução de Campos para “imposer” (impor), termo corrente em francês.

Um Lance de Dados, de Mallarmé, já havia sido traduzido nos por Haroldo de Campos Foto: Reprodução

Na tradução do prefácio que o próprio poeta escreveu já se percebem as diferenças entre as duas versões em língua portuguesa. A expressão “mise en scène”, por exemplo, se transforma em “cenografia”, na primeira versão brasileira, e em “encenação”, na segunda, e por isso merece um comentário de Faleiros, que conclui: “Não se trata mais de fazer da tradução uma arma de batalha contra um pretenso conservadorismo ou parnasianismo reinante, mas, sobretudo, fazer da tradução um instrumento de reflexão sobre o que está em jogo no ato de traduzir e no texto traduzido”.

Num ponto, porém, o trabalho de Faleiros poderá frustrar o leitor. Numa das páginas culminantes do poema lemos o verso: “Rien n’aura eu lieu que le lieu”, que alude, entre outras coisas, ao fracasso das palavras em preencher de sentido o vazio existencial. A tradução de Faleiros diz: “Nada terá tido o lugar senão o lugar”. A expressão vernácula é “ter lugar”, sem o artigo “o”, e significa “ter cabimento”, “caber”, “ser oportuno”. Ela também pode significar, embora isso seja considerado pelos puristas francesismo, ou galicismo, “acontecer”, e é nessa acepção, parece-me, que deveria ser usada na tradução do poema de Mallarmé. A tradução de Haroldo de Campos emprega “ter lugar” e não o inusitado “ter o lugar”. A versão portuguesa de Armando Silva Carvalho, de 2001, confirma a de Campos. 

A presença do artigo “o” nessa frase vernácula não foi um casual erro de impressão, pois o tradutor, ao longo do ensaio que precede a sua versão, repete várias vezes a expressão “nada terá tido o lugar”, que esperamos possa ser devidamente explicada na próxima edição de Um Lance de Dados. Deve-se destacar, porém, que essa nova edição, conforme se lê na primeira orelha, “leva em conta as indicações de formato deixadas por Mallarmé”, cuidado que a tradução anterior não teria tomado.

Entre maio e agosto de 2014, no Museum zu Allerheiligen, de Schaffhausen, na Suíça, o escultor e poeta norte-americano Carl Andre expôs seus poemas visuais, que flertam com a tradição modernista iniciada por Mallarmé. Na ocasião, foi lançado o livro Poems, com uma expressiva amostra da produção textual desse mestre do minimalismo, ainda ativo. Durante muitos anos, os poemas de Andre ficaram à sombra das suas esculturas revolucionárias, mas, depois da publicação, em 2011, de Carl Andre: Things in Their Elements (Phaidon), de Alistairf Rider, ela começou a receber maior atenção dos leitores. Agora, com esse lançamento, seu universo verbal se expande e ganha vida própria, embora não se separe das esculturas.

Alguns poemas de Carl Andre são, de fato, esculturas verbais e aludem, por exemplo, à famosa obra A Coluna Infinita, de Constantin Brancusi, ao reproduzir na página, com o uso de letras apenas, uma sequência de formas romboidais que recria o perfil em zigue-zague da escultura do mestre romeno que ergueu, em Târgu Jiu, na Romênia, em 1937, uma coluna de quase 30 metros de altura, feita de módulos idênticos que se repetem. A noção de “sequência ininterrupta”, que é a repetição de uma forma básica, também aparece na série One Hundred Sonnets, de Andre: um quadrado (representando os versos de um soneto) repete-se em várias páginas, alterando-se apenas as letras que o compõem – no primeiro soneto, apenas a letra “I”, que significa o pronome pessoal “eu” em inglês.

Há poemas sem letras, feitos de traços, e algumas colagens que recorrem à fotografia. Mas o que predomina é o uso de letras batidas à máquina (os poemas datam dos anos 1960) que criam formas geométricas na página – o que revelaria influência da poesia concreta, embora Andre só assuma explicitamente como mestres Gertrude Stein, Ezra Pound e William Carlos Williams. Talvez o poema mais mallarmeano do autor seja Flags, descrito por ele como “uma ópera para três vozes”, a qual pode ser lida, de fato, como uma partitura, exatamente como também Mallarmé desejava que o seu Um Lance de Dados fosse lido. 

UM LANCE DE DADOSAutor: Stéphane Mallarmé Trad.: Álvaro Faleiros Editora: Ateliê (104 págs.; R$ 40)

POEMS Autor: Carl Andre Editora: JRP/Ringier (Importado, 144 págs.; US$ 54,90)

Sérgio Medeiros é professor de literatura na UFSC, poeta e autor de Totens, entre outras obras

Dois lançamentos recentes dedicados à poesia, Um Lance de Dados (bilíngue), de Stéphane Mallarmé, e Poems, de Carl Andre, trazem à tona a dimensão assumidamente experimental desse gênero de expressão, pois ambos os poetas apostam no diálogo da palavra com o branco da página, em exuberantes criações visuais.

Traduzido por Álvaro Faleiros, o poema de Mallarmé, de 1897, assume no prefácio que é “uma encenação espiritual exata” a que “faltam precedentes”, dando origem talvez à “quase uma arte”, em que o tema é o naufrágio. Essa obra-prima já havia sido traduzida nos anos 1970 por Haroldo de Campos, com quem o tradutor atual dialoga, concluindo que “a tradução haroldiana produz um texto ainda mais erudito e rebuscado do que o próprio texto mallarmeano”. O exemplo mais eloquente desse “preciosismo” talvez seja “chantar”, tradução de Campos para “imposer” (impor), termo corrente em francês.

Um Lance de Dados, de Mallarmé, já havia sido traduzido nos por Haroldo de Campos Foto: Reprodução

Na tradução do prefácio que o próprio poeta escreveu já se percebem as diferenças entre as duas versões em língua portuguesa. A expressão “mise en scène”, por exemplo, se transforma em “cenografia”, na primeira versão brasileira, e em “encenação”, na segunda, e por isso merece um comentário de Faleiros, que conclui: “Não se trata mais de fazer da tradução uma arma de batalha contra um pretenso conservadorismo ou parnasianismo reinante, mas, sobretudo, fazer da tradução um instrumento de reflexão sobre o que está em jogo no ato de traduzir e no texto traduzido”.

Num ponto, porém, o trabalho de Faleiros poderá frustrar o leitor. Numa das páginas culminantes do poema lemos o verso: “Rien n’aura eu lieu que le lieu”, que alude, entre outras coisas, ao fracasso das palavras em preencher de sentido o vazio existencial. A tradução de Faleiros diz: “Nada terá tido o lugar senão o lugar”. A expressão vernácula é “ter lugar”, sem o artigo “o”, e significa “ter cabimento”, “caber”, “ser oportuno”. Ela também pode significar, embora isso seja considerado pelos puristas francesismo, ou galicismo, “acontecer”, e é nessa acepção, parece-me, que deveria ser usada na tradução do poema de Mallarmé. A tradução de Haroldo de Campos emprega “ter lugar” e não o inusitado “ter o lugar”. A versão portuguesa de Armando Silva Carvalho, de 2001, confirma a de Campos. 

A presença do artigo “o” nessa frase vernácula não foi um casual erro de impressão, pois o tradutor, ao longo do ensaio que precede a sua versão, repete várias vezes a expressão “nada terá tido o lugar”, que esperamos possa ser devidamente explicada na próxima edição de Um Lance de Dados. Deve-se destacar, porém, que essa nova edição, conforme se lê na primeira orelha, “leva em conta as indicações de formato deixadas por Mallarmé”, cuidado que a tradução anterior não teria tomado.

Entre maio e agosto de 2014, no Museum zu Allerheiligen, de Schaffhausen, na Suíça, o escultor e poeta norte-americano Carl Andre expôs seus poemas visuais, que flertam com a tradição modernista iniciada por Mallarmé. Na ocasião, foi lançado o livro Poems, com uma expressiva amostra da produção textual desse mestre do minimalismo, ainda ativo. Durante muitos anos, os poemas de Andre ficaram à sombra das suas esculturas revolucionárias, mas, depois da publicação, em 2011, de Carl Andre: Things in Their Elements (Phaidon), de Alistairf Rider, ela começou a receber maior atenção dos leitores. Agora, com esse lançamento, seu universo verbal se expande e ganha vida própria, embora não se separe das esculturas.

Alguns poemas de Carl Andre são, de fato, esculturas verbais e aludem, por exemplo, à famosa obra A Coluna Infinita, de Constantin Brancusi, ao reproduzir na página, com o uso de letras apenas, uma sequência de formas romboidais que recria o perfil em zigue-zague da escultura do mestre romeno que ergueu, em Târgu Jiu, na Romênia, em 1937, uma coluna de quase 30 metros de altura, feita de módulos idênticos que se repetem. A noção de “sequência ininterrupta”, que é a repetição de uma forma básica, também aparece na série One Hundred Sonnets, de Andre: um quadrado (representando os versos de um soneto) repete-se em várias páginas, alterando-se apenas as letras que o compõem – no primeiro soneto, apenas a letra “I”, que significa o pronome pessoal “eu” em inglês.

Há poemas sem letras, feitos de traços, e algumas colagens que recorrem à fotografia. Mas o que predomina é o uso de letras batidas à máquina (os poemas datam dos anos 1960) que criam formas geométricas na página – o que revelaria influência da poesia concreta, embora Andre só assuma explicitamente como mestres Gertrude Stein, Ezra Pound e William Carlos Williams. Talvez o poema mais mallarmeano do autor seja Flags, descrito por ele como “uma ópera para três vozes”, a qual pode ser lida, de fato, como uma partitura, exatamente como também Mallarmé desejava que o seu Um Lance de Dados fosse lido. 

UM LANCE DE DADOSAutor: Stéphane Mallarmé Trad.: Álvaro Faleiros Editora: Ateliê (104 págs.; R$ 40)

POEMS Autor: Carl Andre Editora: JRP/Ringier (Importado, 144 págs.; US$ 54,90)

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