Stephen King lança livro ‘Holly’; leia trecho exclusivo sobre idosos que guardam segredo terrível


Romance chega às livrarias nesta terça-feira, 5, e resgata Holly Gibney, personagem secundária de ‘Mr. Mercedes’

Por Redação
Atualização:

Holly Gibney era uma personagem secundária em Mr. Mercedes. Stephen King, de 75 anos, no entanto, não conseguiu esquecê-la. Ela volta agora em um novo romance do mestre do terror para “resolver a terrível verdade por trás de vários desaparecimentos em uma cidade do meio-oeste americano”.

Holly é um lançamento da Suma e chega às livrarias de todo o mundo nesta terça-feira, 5. O livro tem 448 páginas e vai custar R$ 79,90 e R$ 39,90 o e-book.

Na história, segundo a sinopse, Penny Dahl está desesperada para encontrar a filha que sumiu sem deixar vestígios. Em busca de ajuda profissional, ela liga para a agência Achados e Perdidos, sob o comando de Holly Gibney. A detetive reluta em aceitar o caso, porque deveria estar de licença, mas algo na voz de Penny faz com que Holly não consiga ignorar o pedido.

continua após a publicidade
O escritor Stephen King, em 2022 Foto: Tom Brenner / Reuters

Ainda segundo a sinopse, a poucos quarteirões de onde Bonnie foi vista pela última vez, moram Rodney e Emily Harris. Um casal de acadêmicos octogenários, eles simbolizam a banalidade da classe média suburbana. No entanto, no porão de sua casa bem cuidada e repleta de livros, os dois escondem um segredo terrível.

O Estadão publica com exclusividade um trecho do novo livro de Stephen King.

continua após a publicidade
Capa de Holly, de Stephen King Foto: Reprodução/Suma

Leia um trecho de Holly

17 de outubro de 2012

continua após a publicidade

1

É uma cidade velha que não está mais na melhor forma, assim como o lago ao lado do qual foi construída, mas há partes que ainda são agradáveis. Os moradores antigos provavelmente concordariam que a melhor parte é Sugar Heights e a melhor rua que passa por lá é Ridge Road, que faz uma curva suave em declive da Faculdade Bell de Artes e Ciências até o parque Deerfield, três quilômetros abaixo. No caminho, a Ridge Road passa por muitas casas boas, algumas das quais pertencem a professores da faculdade e algumas aos profissionais mais bem-sucedidos da cidade: médicos, advo gados, banqueiros e executivos do topo da pirâmide. A maioria das casas é vitoriana, com pintura impecável, janelões projetados e muitos acabamentos elaborados.

O parque onde a Ridge Road termina não é tão grande quanto o que fica no meio de Manhattan, mas quase. Deerfield é o orgulho da cidade, e um pelotão de jardineiros o mantém fabuloso. Ah, tem o lado oeste descuidado, perto da avenida Red Bank, conhecido como Matagal, onde as pessoas que procuram ou vendem drogas conseguem ser encontradas às vezes depois que escurece, e onde há assaltos ocasionais, mas o Matagal só ocupa um hectare de trezentos. O resto é gramado e cheio de flores, com caminhos por onde os apaixonados passeiam e bancos onde homens idosos leem jor nais (e cada vez mais em dispositivos eletrônicos atualmente) e mulheres conversam, às vezes enquanto ninam bebês em carrinhos caros. Tem dois lagos e às vezes dá para ver homens ou garotos brincando com barcos de controle remoto em um deles. No outro, cisnes e patos deslizam de um lado para outro. Também tem um parquinho para os pequenos. Tem tudo, na verdade, menos piscina pública; de vez em quando o conselho da cidade discute a ideia, mas sempre fica para depois. Caro demais, sabe.

continua após a publicidade

A noite de outubro está quente para a época do ano, mas um chuvisco leve manteve todos dentro de casa, exceto um corredor bastante dedicado. Esse seria Jorge Castro, que trabalha como professor de escrita criativa e literatura latino-americana na faculdade. Apesar da especialidade, ele é nascido e criado nos Estados Unidos; gosta de dizer que é tão americano quanto torta de manzana.

Ele fez quarenta anos em julho e não pode mais enganar a si mesmo que ainda é o jovem leão que teve um sucesso momentâneo com seu primeiro livro best-seller. Quarenta é quando você tem que parar de enganar a si mesmo de que ainda é o jovem qualquer coisa. Se não fizer isso, se insistir em baboseiras autossatisfatórias como “os quarenta são os novos vinte e cinco”, você vai perceber que começa a escorregar. Só um pouco no come ço, depois um pouco mais, e de repente você tem cinquenta anos com uma barriga projetada por cima do cinto e remédio para colesterol no armário de medicamentos. Aos vinte, o corpo perdoa. Aos quarenta, o perdão é no máximo temporário. Jorge Castro não quer fazer cinquenta e descobrir que se tornou só mais um pateta americano.

É preciso começar a se cuidar aos quarenta. É preciso fazer a manutenção do maquinário porque não há opção de troca. Portanto, Jorge toma suco de laranja de manhã (tem potássio), na maioria dos dias com aveia (pelos antioxidantes) e só ingere carne vermelha uma vez por semana. Quando quer beliscar, costuma abrir uma lata de sardinha. É rico em Ômega-3. (E gostoso!) Ele faz exercícios simples de manhã e corre de noite, sem exagerar, para aerar os pulmões de quarenta anos e dar ao coração de quarenta anos a oportunidade de fazer o seu melhor (batimentos em repouso: 63). Jorge quer parecer ter e se sentir com quarenta anos quando fizer cinquenta, mas o destino é brincalhão. Jorge Castro não vai nem chegar aos 41.

continua após a publicidade

2

Sua rotina, que ele mantém mesmo em uma noite de chuvisco leve, é cor rer da casa que divide com Freddy (é deles, pelo menos, enquanto durar o emprego de escritor residente) por oitocentos metros da faculdade até o parque. Lá, ele alonga as costas, toma um pouco da Vitamin Water guardada na pochete e corre para casa. A chuvinha é revigorante, e não há mais nin guém correndo, caminhando ou andando de bicicleta de quem ele precise desviar. Os ciclistas são os piores, com a insistência de que têm todo o direito de andar pela calçada em vez de na rua, apesar de haver ciclovia. Naquela noite, ele está com a calçada toda para si. Nem precisa acenar para as pessoas que podem estar tomando ar noturno nas grandes varandas cobertas; o tempo fez todo mundo ficar dentro de casa.

Todo mundo, menos uma pessoa: a velha poeta. Ela está agasalhada com uma parka apesar de fazer pouco mais de dez graus às oito da noite, porque só tem cinquenta quilos (o médico sempre a repreende por causa do peso) e está com frio. Mais do que o frio, ela sente a umidade. Mas fica ali, porque há um poema a ser criado hoje se ela conseguir enfiar os dedos embaixo da tampa que o guarda e abri-la. Ela não escreveu nenhum desde o meio do verão e precisa fazer algo acontecer antes que a ferrugem se espalhe. Ela precisa representar, como seus alunos dizem às vezes. Mais importante, esse pode ser um bom poema. Talvez até um poema necessário.

continua após a publicidade

Precisa começar com a forma como a neblina gira em torno das luzes dos postes à frente dela e progredir para o que pensa ser o mistério. Que é tudo. A neblina cria auréolas que se movem lentamente, lindas e prateadas. Ela não quer usar auréolas porque é a palavra esperada, a palavra preguiçosa. Quase clichê. Já prateadas… ou talvez só prata…

Sua linha de raciocínio se interrompe o suficiente para observar um jovem (aos 89, quarenta anos parece muito jovem) passar correndo do ou tro lado da rua. Ela sabe quem é: o escritor residente que acha que Gabriel García Marquez pendurou a Lua no céu. Com o cabelo escuro comprido e o bigodinho de escovinha, ele lembra à velha poeta de um personagem encantador de A princesa prometida: “Meu nome é Inigo Montoya, você ma tou meu pai, prepare-se para morrer”. Ele está usando uma jaqueta amarela com uma faixa refletora nas costas e uma calça de corrida ridiculamente apertada. Está correndo como se fosse tirar o pai da forca, a mãe da poeta teria dito. Ou fugindo do badalo da igreja.

Badalo a fez pensar em sinos e seu olhar se volta para o poste direta mente à frente. Ela pensa: O corredor não ouve prata acima dele/ Esses sinos não dobram.

É errado porque é banal, mas é um começo. Ela conseguiu enfiar os dedos embaixo da tampa do poema. Precisa entrar em casa, pegar o caderno e começar a rabiscar. Mas fica sentada mais alguns momentos, vendo os círculos prateados girando em torno dos postes. Auréolas, ela pensa. Eu não posso usar essa palavra, mas é isso que parecem, caramba.

Há um vislumbre final da jaqueta amarela do corredor e ele some no escuro. A velha poeta se levanta com dificuldade, fazendo careta por causa da dor nos quadris, e entra em casa.

3

Jorge Castro acelera um pouco. Ele está com fôlego renovado, os pulmões absorvendo mais ar, as endorfinas a toda. O parque está logo à frente, cheio de postes antiquados que emitem um brilho amarelo místico. Tem um pequeno estacionamento na frente do parquinho deserto, exceto por uma van de passageiros com a porta lateral aberta e uma rampa descendo até o asfalto molhado. Perto do pé dela há um idoso de cadeira de rodas e uma idosa apoiada em um joelho, mexendo na cadeira.

Jorge para por um momento, curvado, as mãos apoiadas nas pernas acima dos joelhos, recuperando o fôlego e olhando a van. A placa azul e branca atrás tem um desenho de cadeira de rodas.

Com um casaco acolchoado e um lenço, a mulher olha para ele. Primeiro, Jorge não tem certeza se a conhece; a luz nesse pequeno estacionamento auxiliar não é tão boa.

— Oi! Algum problema?

Ela fica em pé. O idoso na cadeira de rodas, usando um suéter de botão e boina, acena sem entusiasmo.

—A bateria morreu — responde a mulher. — É sr. Castro, não é? Jorge?

Agora ele a reconhece. É a professora universitária Emily Harris, que ensina literatura inglesa… ou ensinava; agora talvez seja emérita. E aquele é o marido dela, professor também, mas de escola. Jorge não sabia que ele era uma pessoa com deficiência, não o tem visto no campus — ele e Harris são de departamentos diferentes, em prédios diferentes —, mas acha que da última vez que o viu, o cara estava andando. Jorge a vê com frequência em reuniões de professores e eventos frequentados por pessoas ávidas por cultura. Acha que não é uma das pessoas favoritas dela, principalmente de pois da reunião de departamento sobre a agora falecida Oficina de Poesia. Aquilo ficou um pouco acalorado.

— Sim, sou eu — diz ele. — Imagino que vocês dois gostariam de ir para casa se secar.

— Seria ótimo — diz o sr. Harris. Ou talvez ele também seja professor universitário. Seu suéter é fino e ele está tremendo um pouco. — Será que você pode me empurrar pela rampa, rapaz? — Ele tosse, limpa a garganta, tosse de novo. A esposa, tão seca e autoritária nas reuniões de departamen to, parece meio perdida e desalinhada. Inconsolável. Jorge se pergunta há quanto tempo eles estão ali e por que ela não ligou para alguém pedindo ajuda. Talvez ela não tenha celular, pensa ele. Ou tenha deixado em casa. Gente velha às vezes é esquecida com essas coisas. Se bem que ela não pode ter muito mais do que setenta anos. O marido, na cadeira de rodas, parece mais velho.

— Acho que posso ajudar com isso. O freio está destravado?

— Sim, certamente — responde Emily Harris, recuando quando Jorge segura os apoios para as mãos e vira a cadeira para deixá-la voltada para a rampa. Ele a puxa para trás uns três metros, para pegar embalo. Cadeiras motorizadas costumam ser pesadas. A última coisa que quer é chegar na metade, perder o impulso e rolar para trás. Ou, que Deus não permita, virar para o lado e derrubar o coroa no chão.

— Lá vamos nós, sr. Harris. Aguenta aí, talvez sacuda um pouco.

Harris se segura nos apoios para os braços e Jorge repara que os ombros dele são muito largos. Parecem musculosos embaixo do suéter. Ele imagina que as pessoas que perdem o uso das pernas compensam de outras formas. Jorge acelera na rampa.

— Aiô! — grita o sr. Harris com alegria.

A primeira metade da rampa é fácil, mas a cadeira começa a perder impulso. Jorge se curva, faz força com as costas e a faz seguir em frente. Enquanto executa essa tarefa solidária, um pensamento estranho lhe ocorre: as placas daquele estado são vermelhas e brancas, e embora o casal more na Ridge Road, como ele (Jorge já viu Emily Harris no jardim várias vezes), a placa da van deles é azul e branca, como as do estado vizinho a oeste. Tem outra coisa estranha: ele não se lembra de já ter visto essa van na rua, embora tenha visto Emily sentada reta como uma vara ao volante de um Subaru bem cuidado com um adesivo do Obama no para-choque trasei…

Quando ele chega no topo da rampa, inclinado quase na horizontal agora, os braços esticados e os tênis de corrida flexionados, um inseto pica seu pescoço. Parece grande, pelo calor que se espalha a partir do ponto, talvez uma vespa, e ele está tendo uma reação. Nunca teve antes, mas tem primeira vez para tudo, e de repente sua visão fica borrada e a força some dos braços. Os tênis escorregam na rampa molhada e ele se apoia em um joelho.

A cadeira de rodas vai rolar pra trás, pra cima de mim…

Mas não rola. Rodney Harris aperta um botão e a cadeira de rodas

rola para dentro com um zumbido satisfeito. Harris se levanta, contorna a cadeira com agilidade e olha para o homem ajoelhado na rampa com o cabelo grudado na testa e o chuvisco molhando as bochechas como suor. Jorge cai de cara.

— Olha isso! — exclama Emily suavemente. — Perfeito!

— Me ajuda — diz Rodney.

A esposa, também usando tênis de corrida, segura os tornozelos de Jorge. O marido segura os braços. Eles o carregam para dentro. A rampa se fecha. Rodney (que na verdade também é professor universitário, no fim das contas) se acomoda no assento do motorista, à esquerda. Emily se ajoelha e prende os pulsos de Jorge com um lacre, embora essa precaução provavelmente seja desnecessária. Jorge está dormindo como uma pedra (uma comparação que a velha poeta certamente reprovaria) e roncando alto.

—Tudo bem? — pergunta Rodney Harris, o homem do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade Bell.

— Tudo bem! — A voz de Emily está vibrando de empolgação. — Nós conseguimos, Roddy! Pegamos o filho da puta!

— Olha o linguajar, querida — diz Rodney. E sorri. — Mas sim. Nós conseguimos. — Ele sai do estacionamento e começa a subir a colina.

A velha poeta ergue o rosto do caderno de trabalho, que tem a foto de um carrinho de mão vermelho na frente, vê a van passar e se curva nova mente para o poema.

A van entra no número 93 da Ridge Road, casa dos Harris há quase vinte e cinco anos. Pertence a eles, não à faculdade. Uma das duas portas da garagem sobe; a van entra na baia da esquerda; a porta da garagem se fecha; tudo fica novamente parado na Ridge Road. A neblina gira em torno das luzes dos postes.

Como auréolas.

Holly Gibney era uma personagem secundária em Mr. Mercedes. Stephen King, de 75 anos, no entanto, não conseguiu esquecê-la. Ela volta agora em um novo romance do mestre do terror para “resolver a terrível verdade por trás de vários desaparecimentos em uma cidade do meio-oeste americano”.

Holly é um lançamento da Suma e chega às livrarias de todo o mundo nesta terça-feira, 5. O livro tem 448 páginas e vai custar R$ 79,90 e R$ 39,90 o e-book.

Na história, segundo a sinopse, Penny Dahl está desesperada para encontrar a filha que sumiu sem deixar vestígios. Em busca de ajuda profissional, ela liga para a agência Achados e Perdidos, sob o comando de Holly Gibney. A detetive reluta em aceitar o caso, porque deveria estar de licença, mas algo na voz de Penny faz com que Holly não consiga ignorar o pedido.

O escritor Stephen King, em 2022 Foto: Tom Brenner / Reuters

Ainda segundo a sinopse, a poucos quarteirões de onde Bonnie foi vista pela última vez, moram Rodney e Emily Harris. Um casal de acadêmicos octogenários, eles simbolizam a banalidade da classe média suburbana. No entanto, no porão de sua casa bem cuidada e repleta de livros, os dois escondem um segredo terrível.

O Estadão publica com exclusividade um trecho do novo livro de Stephen King.

Capa de Holly, de Stephen King Foto: Reprodução/Suma

Leia um trecho de Holly

17 de outubro de 2012

1

É uma cidade velha que não está mais na melhor forma, assim como o lago ao lado do qual foi construída, mas há partes que ainda são agradáveis. Os moradores antigos provavelmente concordariam que a melhor parte é Sugar Heights e a melhor rua que passa por lá é Ridge Road, que faz uma curva suave em declive da Faculdade Bell de Artes e Ciências até o parque Deerfield, três quilômetros abaixo. No caminho, a Ridge Road passa por muitas casas boas, algumas das quais pertencem a professores da faculdade e algumas aos profissionais mais bem-sucedidos da cidade: médicos, advo gados, banqueiros e executivos do topo da pirâmide. A maioria das casas é vitoriana, com pintura impecável, janelões projetados e muitos acabamentos elaborados.

O parque onde a Ridge Road termina não é tão grande quanto o que fica no meio de Manhattan, mas quase. Deerfield é o orgulho da cidade, e um pelotão de jardineiros o mantém fabuloso. Ah, tem o lado oeste descuidado, perto da avenida Red Bank, conhecido como Matagal, onde as pessoas que procuram ou vendem drogas conseguem ser encontradas às vezes depois que escurece, e onde há assaltos ocasionais, mas o Matagal só ocupa um hectare de trezentos. O resto é gramado e cheio de flores, com caminhos por onde os apaixonados passeiam e bancos onde homens idosos leem jor nais (e cada vez mais em dispositivos eletrônicos atualmente) e mulheres conversam, às vezes enquanto ninam bebês em carrinhos caros. Tem dois lagos e às vezes dá para ver homens ou garotos brincando com barcos de controle remoto em um deles. No outro, cisnes e patos deslizam de um lado para outro. Também tem um parquinho para os pequenos. Tem tudo, na verdade, menos piscina pública; de vez em quando o conselho da cidade discute a ideia, mas sempre fica para depois. Caro demais, sabe.

A noite de outubro está quente para a época do ano, mas um chuvisco leve manteve todos dentro de casa, exceto um corredor bastante dedicado. Esse seria Jorge Castro, que trabalha como professor de escrita criativa e literatura latino-americana na faculdade. Apesar da especialidade, ele é nascido e criado nos Estados Unidos; gosta de dizer que é tão americano quanto torta de manzana.

Ele fez quarenta anos em julho e não pode mais enganar a si mesmo que ainda é o jovem leão que teve um sucesso momentâneo com seu primeiro livro best-seller. Quarenta é quando você tem que parar de enganar a si mesmo de que ainda é o jovem qualquer coisa. Se não fizer isso, se insistir em baboseiras autossatisfatórias como “os quarenta são os novos vinte e cinco”, você vai perceber que começa a escorregar. Só um pouco no come ço, depois um pouco mais, e de repente você tem cinquenta anos com uma barriga projetada por cima do cinto e remédio para colesterol no armário de medicamentos. Aos vinte, o corpo perdoa. Aos quarenta, o perdão é no máximo temporário. Jorge Castro não quer fazer cinquenta e descobrir que se tornou só mais um pateta americano.

É preciso começar a se cuidar aos quarenta. É preciso fazer a manutenção do maquinário porque não há opção de troca. Portanto, Jorge toma suco de laranja de manhã (tem potássio), na maioria dos dias com aveia (pelos antioxidantes) e só ingere carne vermelha uma vez por semana. Quando quer beliscar, costuma abrir uma lata de sardinha. É rico em Ômega-3. (E gostoso!) Ele faz exercícios simples de manhã e corre de noite, sem exagerar, para aerar os pulmões de quarenta anos e dar ao coração de quarenta anos a oportunidade de fazer o seu melhor (batimentos em repouso: 63). Jorge quer parecer ter e se sentir com quarenta anos quando fizer cinquenta, mas o destino é brincalhão. Jorge Castro não vai nem chegar aos 41.

2

Sua rotina, que ele mantém mesmo em uma noite de chuvisco leve, é cor rer da casa que divide com Freddy (é deles, pelo menos, enquanto durar o emprego de escritor residente) por oitocentos metros da faculdade até o parque. Lá, ele alonga as costas, toma um pouco da Vitamin Water guardada na pochete e corre para casa. A chuvinha é revigorante, e não há mais nin guém correndo, caminhando ou andando de bicicleta de quem ele precise desviar. Os ciclistas são os piores, com a insistência de que têm todo o direito de andar pela calçada em vez de na rua, apesar de haver ciclovia. Naquela noite, ele está com a calçada toda para si. Nem precisa acenar para as pessoas que podem estar tomando ar noturno nas grandes varandas cobertas; o tempo fez todo mundo ficar dentro de casa.

Todo mundo, menos uma pessoa: a velha poeta. Ela está agasalhada com uma parka apesar de fazer pouco mais de dez graus às oito da noite, porque só tem cinquenta quilos (o médico sempre a repreende por causa do peso) e está com frio. Mais do que o frio, ela sente a umidade. Mas fica ali, porque há um poema a ser criado hoje se ela conseguir enfiar os dedos embaixo da tampa que o guarda e abri-la. Ela não escreveu nenhum desde o meio do verão e precisa fazer algo acontecer antes que a ferrugem se espalhe. Ela precisa representar, como seus alunos dizem às vezes. Mais importante, esse pode ser um bom poema. Talvez até um poema necessário.

Precisa começar com a forma como a neblina gira em torno das luzes dos postes à frente dela e progredir para o que pensa ser o mistério. Que é tudo. A neblina cria auréolas que se movem lentamente, lindas e prateadas. Ela não quer usar auréolas porque é a palavra esperada, a palavra preguiçosa. Quase clichê. Já prateadas… ou talvez só prata…

Sua linha de raciocínio se interrompe o suficiente para observar um jovem (aos 89, quarenta anos parece muito jovem) passar correndo do ou tro lado da rua. Ela sabe quem é: o escritor residente que acha que Gabriel García Marquez pendurou a Lua no céu. Com o cabelo escuro comprido e o bigodinho de escovinha, ele lembra à velha poeta de um personagem encantador de A princesa prometida: “Meu nome é Inigo Montoya, você ma tou meu pai, prepare-se para morrer”. Ele está usando uma jaqueta amarela com uma faixa refletora nas costas e uma calça de corrida ridiculamente apertada. Está correndo como se fosse tirar o pai da forca, a mãe da poeta teria dito. Ou fugindo do badalo da igreja.

Badalo a fez pensar em sinos e seu olhar se volta para o poste direta mente à frente. Ela pensa: O corredor não ouve prata acima dele/ Esses sinos não dobram.

É errado porque é banal, mas é um começo. Ela conseguiu enfiar os dedos embaixo da tampa do poema. Precisa entrar em casa, pegar o caderno e começar a rabiscar. Mas fica sentada mais alguns momentos, vendo os círculos prateados girando em torno dos postes. Auréolas, ela pensa. Eu não posso usar essa palavra, mas é isso que parecem, caramba.

Há um vislumbre final da jaqueta amarela do corredor e ele some no escuro. A velha poeta se levanta com dificuldade, fazendo careta por causa da dor nos quadris, e entra em casa.

3

Jorge Castro acelera um pouco. Ele está com fôlego renovado, os pulmões absorvendo mais ar, as endorfinas a toda. O parque está logo à frente, cheio de postes antiquados que emitem um brilho amarelo místico. Tem um pequeno estacionamento na frente do parquinho deserto, exceto por uma van de passageiros com a porta lateral aberta e uma rampa descendo até o asfalto molhado. Perto do pé dela há um idoso de cadeira de rodas e uma idosa apoiada em um joelho, mexendo na cadeira.

Jorge para por um momento, curvado, as mãos apoiadas nas pernas acima dos joelhos, recuperando o fôlego e olhando a van. A placa azul e branca atrás tem um desenho de cadeira de rodas.

Com um casaco acolchoado e um lenço, a mulher olha para ele. Primeiro, Jorge não tem certeza se a conhece; a luz nesse pequeno estacionamento auxiliar não é tão boa.

— Oi! Algum problema?

Ela fica em pé. O idoso na cadeira de rodas, usando um suéter de botão e boina, acena sem entusiasmo.

—A bateria morreu — responde a mulher. — É sr. Castro, não é? Jorge?

Agora ele a reconhece. É a professora universitária Emily Harris, que ensina literatura inglesa… ou ensinava; agora talvez seja emérita. E aquele é o marido dela, professor também, mas de escola. Jorge não sabia que ele era uma pessoa com deficiência, não o tem visto no campus — ele e Harris são de departamentos diferentes, em prédios diferentes —, mas acha que da última vez que o viu, o cara estava andando. Jorge a vê com frequência em reuniões de professores e eventos frequentados por pessoas ávidas por cultura. Acha que não é uma das pessoas favoritas dela, principalmente de pois da reunião de departamento sobre a agora falecida Oficina de Poesia. Aquilo ficou um pouco acalorado.

— Sim, sou eu — diz ele. — Imagino que vocês dois gostariam de ir para casa se secar.

— Seria ótimo — diz o sr. Harris. Ou talvez ele também seja professor universitário. Seu suéter é fino e ele está tremendo um pouco. — Será que você pode me empurrar pela rampa, rapaz? — Ele tosse, limpa a garganta, tosse de novo. A esposa, tão seca e autoritária nas reuniões de departamen to, parece meio perdida e desalinhada. Inconsolável. Jorge se pergunta há quanto tempo eles estão ali e por que ela não ligou para alguém pedindo ajuda. Talvez ela não tenha celular, pensa ele. Ou tenha deixado em casa. Gente velha às vezes é esquecida com essas coisas. Se bem que ela não pode ter muito mais do que setenta anos. O marido, na cadeira de rodas, parece mais velho.

— Acho que posso ajudar com isso. O freio está destravado?

— Sim, certamente — responde Emily Harris, recuando quando Jorge segura os apoios para as mãos e vira a cadeira para deixá-la voltada para a rampa. Ele a puxa para trás uns três metros, para pegar embalo. Cadeiras motorizadas costumam ser pesadas. A última coisa que quer é chegar na metade, perder o impulso e rolar para trás. Ou, que Deus não permita, virar para o lado e derrubar o coroa no chão.

— Lá vamos nós, sr. Harris. Aguenta aí, talvez sacuda um pouco.

Harris se segura nos apoios para os braços e Jorge repara que os ombros dele são muito largos. Parecem musculosos embaixo do suéter. Ele imagina que as pessoas que perdem o uso das pernas compensam de outras formas. Jorge acelera na rampa.

— Aiô! — grita o sr. Harris com alegria.

A primeira metade da rampa é fácil, mas a cadeira começa a perder impulso. Jorge se curva, faz força com as costas e a faz seguir em frente. Enquanto executa essa tarefa solidária, um pensamento estranho lhe ocorre: as placas daquele estado são vermelhas e brancas, e embora o casal more na Ridge Road, como ele (Jorge já viu Emily Harris no jardim várias vezes), a placa da van deles é azul e branca, como as do estado vizinho a oeste. Tem outra coisa estranha: ele não se lembra de já ter visto essa van na rua, embora tenha visto Emily sentada reta como uma vara ao volante de um Subaru bem cuidado com um adesivo do Obama no para-choque trasei…

Quando ele chega no topo da rampa, inclinado quase na horizontal agora, os braços esticados e os tênis de corrida flexionados, um inseto pica seu pescoço. Parece grande, pelo calor que se espalha a partir do ponto, talvez uma vespa, e ele está tendo uma reação. Nunca teve antes, mas tem primeira vez para tudo, e de repente sua visão fica borrada e a força some dos braços. Os tênis escorregam na rampa molhada e ele se apoia em um joelho.

A cadeira de rodas vai rolar pra trás, pra cima de mim…

Mas não rola. Rodney Harris aperta um botão e a cadeira de rodas

rola para dentro com um zumbido satisfeito. Harris se levanta, contorna a cadeira com agilidade e olha para o homem ajoelhado na rampa com o cabelo grudado na testa e o chuvisco molhando as bochechas como suor. Jorge cai de cara.

— Olha isso! — exclama Emily suavemente. — Perfeito!

— Me ajuda — diz Rodney.

A esposa, também usando tênis de corrida, segura os tornozelos de Jorge. O marido segura os braços. Eles o carregam para dentro. A rampa se fecha. Rodney (que na verdade também é professor universitário, no fim das contas) se acomoda no assento do motorista, à esquerda. Emily se ajoelha e prende os pulsos de Jorge com um lacre, embora essa precaução provavelmente seja desnecessária. Jorge está dormindo como uma pedra (uma comparação que a velha poeta certamente reprovaria) e roncando alto.

—Tudo bem? — pergunta Rodney Harris, o homem do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade Bell.

— Tudo bem! — A voz de Emily está vibrando de empolgação. — Nós conseguimos, Roddy! Pegamos o filho da puta!

— Olha o linguajar, querida — diz Rodney. E sorri. — Mas sim. Nós conseguimos. — Ele sai do estacionamento e começa a subir a colina.

A velha poeta ergue o rosto do caderno de trabalho, que tem a foto de um carrinho de mão vermelho na frente, vê a van passar e se curva nova mente para o poema.

A van entra no número 93 da Ridge Road, casa dos Harris há quase vinte e cinco anos. Pertence a eles, não à faculdade. Uma das duas portas da garagem sobe; a van entra na baia da esquerda; a porta da garagem se fecha; tudo fica novamente parado na Ridge Road. A neblina gira em torno das luzes dos postes.

Como auréolas.

Holly Gibney era uma personagem secundária em Mr. Mercedes. Stephen King, de 75 anos, no entanto, não conseguiu esquecê-la. Ela volta agora em um novo romance do mestre do terror para “resolver a terrível verdade por trás de vários desaparecimentos em uma cidade do meio-oeste americano”.

Holly é um lançamento da Suma e chega às livrarias de todo o mundo nesta terça-feira, 5. O livro tem 448 páginas e vai custar R$ 79,90 e R$ 39,90 o e-book.

Na história, segundo a sinopse, Penny Dahl está desesperada para encontrar a filha que sumiu sem deixar vestígios. Em busca de ajuda profissional, ela liga para a agência Achados e Perdidos, sob o comando de Holly Gibney. A detetive reluta em aceitar o caso, porque deveria estar de licença, mas algo na voz de Penny faz com que Holly não consiga ignorar o pedido.

O escritor Stephen King, em 2022 Foto: Tom Brenner / Reuters

Ainda segundo a sinopse, a poucos quarteirões de onde Bonnie foi vista pela última vez, moram Rodney e Emily Harris. Um casal de acadêmicos octogenários, eles simbolizam a banalidade da classe média suburbana. No entanto, no porão de sua casa bem cuidada e repleta de livros, os dois escondem um segredo terrível.

O Estadão publica com exclusividade um trecho do novo livro de Stephen King.

Capa de Holly, de Stephen King Foto: Reprodução/Suma

Leia um trecho de Holly

17 de outubro de 2012

1

É uma cidade velha que não está mais na melhor forma, assim como o lago ao lado do qual foi construída, mas há partes que ainda são agradáveis. Os moradores antigos provavelmente concordariam que a melhor parte é Sugar Heights e a melhor rua que passa por lá é Ridge Road, que faz uma curva suave em declive da Faculdade Bell de Artes e Ciências até o parque Deerfield, três quilômetros abaixo. No caminho, a Ridge Road passa por muitas casas boas, algumas das quais pertencem a professores da faculdade e algumas aos profissionais mais bem-sucedidos da cidade: médicos, advo gados, banqueiros e executivos do topo da pirâmide. A maioria das casas é vitoriana, com pintura impecável, janelões projetados e muitos acabamentos elaborados.

O parque onde a Ridge Road termina não é tão grande quanto o que fica no meio de Manhattan, mas quase. Deerfield é o orgulho da cidade, e um pelotão de jardineiros o mantém fabuloso. Ah, tem o lado oeste descuidado, perto da avenida Red Bank, conhecido como Matagal, onde as pessoas que procuram ou vendem drogas conseguem ser encontradas às vezes depois que escurece, e onde há assaltos ocasionais, mas o Matagal só ocupa um hectare de trezentos. O resto é gramado e cheio de flores, com caminhos por onde os apaixonados passeiam e bancos onde homens idosos leem jor nais (e cada vez mais em dispositivos eletrônicos atualmente) e mulheres conversam, às vezes enquanto ninam bebês em carrinhos caros. Tem dois lagos e às vezes dá para ver homens ou garotos brincando com barcos de controle remoto em um deles. No outro, cisnes e patos deslizam de um lado para outro. Também tem um parquinho para os pequenos. Tem tudo, na verdade, menos piscina pública; de vez em quando o conselho da cidade discute a ideia, mas sempre fica para depois. Caro demais, sabe.

A noite de outubro está quente para a época do ano, mas um chuvisco leve manteve todos dentro de casa, exceto um corredor bastante dedicado. Esse seria Jorge Castro, que trabalha como professor de escrita criativa e literatura latino-americana na faculdade. Apesar da especialidade, ele é nascido e criado nos Estados Unidos; gosta de dizer que é tão americano quanto torta de manzana.

Ele fez quarenta anos em julho e não pode mais enganar a si mesmo que ainda é o jovem leão que teve um sucesso momentâneo com seu primeiro livro best-seller. Quarenta é quando você tem que parar de enganar a si mesmo de que ainda é o jovem qualquer coisa. Se não fizer isso, se insistir em baboseiras autossatisfatórias como “os quarenta são os novos vinte e cinco”, você vai perceber que começa a escorregar. Só um pouco no come ço, depois um pouco mais, e de repente você tem cinquenta anos com uma barriga projetada por cima do cinto e remédio para colesterol no armário de medicamentos. Aos vinte, o corpo perdoa. Aos quarenta, o perdão é no máximo temporário. Jorge Castro não quer fazer cinquenta e descobrir que se tornou só mais um pateta americano.

É preciso começar a se cuidar aos quarenta. É preciso fazer a manutenção do maquinário porque não há opção de troca. Portanto, Jorge toma suco de laranja de manhã (tem potássio), na maioria dos dias com aveia (pelos antioxidantes) e só ingere carne vermelha uma vez por semana. Quando quer beliscar, costuma abrir uma lata de sardinha. É rico em Ômega-3. (E gostoso!) Ele faz exercícios simples de manhã e corre de noite, sem exagerar, para aerar os pulmões de quarenta anos e dar ao coração de quarenta anos a oportunidade de fazer o seu melhor (batimentos em repouso: 63). Jorge quer parecer ter e se sentir com quarenta anos quando fizer cinquenta, mas o destino é brincalhão. Jorge Castro não vai nem chegar aos 41.

2

Sua rotina, que ele mantém mesmo em uma noite de chuvisco leve, é cor rer da casa que divide com Freddy (é deles, pelo menos, enquanto durar o emprego de escritor residente) por oitocentos metros da faculdade até o parque. Lá, ele alonga as costas, toma um pouco da Vitamin Water guardada na pochete e corre para casa. A chuvinha é revigorante, e não há mais nin guém correndo, caminhando ou andando de bicicleta de quem ele precise desviar. Os ciclistas são os piores, com a insistência de que têm todo o direito de andar pela calçada em vez de na rua, apesar de haver ciclovia. Naquela noite, ele está com a calçada toda para si. Nem precisa acenar para as pessoas que podem estar tomando ar noturno nas grandes varandas cobertas; o tempo fez todo mundo ficar dentro de casa.

Todo mundo, menos uma pessoa: a velha poeta. Ela está agasalhada com uma parka apesar de fazer pouco mais de dez graus às oito da noite, porque só tem cinquenta quilos (o médico sempre a repreende por causa do peso) e está com frio. Mais do que o frio, ela sente a umidade. Mas fica ali, porque há um poema a ser criado hoje se ela conseguir enfiar os dedos embaixo da tampa que o guarda e abri-la. Ela não escreveu nenhum desde o meio do verão e precisa fazer algo acontecer antes que a ferrugem se espalhe. Ela precisa representar, como seus alunos dizem às vezes. Mais importante, esse pode ser um bom poema. Talvez até um poema necessário.

Precisa começar com a forma como a neblina gira em torno das luzes dos postes à frente dela e progredir para o que pensa ser o mistério. Que é tudo. A neblina cria auréolas que se movem lentamente, lindas e prateadas. Ela não quer usar auréolas porque é a palavra esperada, a palavra preguiçosa. Quase clichê. Já prateadas… ou talvez só prata…

Sua linha de raciocínio se interrompe o suficiente para observar um jovem (aos 89, quarenta anos parece muito jovem) passar correndo do ou tro lado da rua. Ela sabe quem é: o escritor residente que acha que Gabriel García Marquez pendurou a Lua no céu. Com o cabelo escuro comprido e o bigodinho de escovinha, ele lembra à velha poeta de um personagem encantador de A princesa prometida: “Meu nome é Inigo Montoya, você ma tou meu pai, prepare-se para morrer”. Ele está usando uma jaqueta amarela com uma faixa refletora nas costas e uma calça de corrida ridiculamente apertada. Está correndo como se fosse tirar o pai da forca, a mãe da poeta teria dito. Ou fugindo do badalo da igreja.

Badalo a fez pensar em sinos e seu olhar se volta para o poste direta mente à frente. Ela pensa: O corredor não ouve prata acima dele/ Esses sinos não dobram.

É errado porque é banal, mas é um começo. Ela conseguiu enfiar os dedos embaixo da tampa do poema. Precisa entrar em casa, pegar o caderno e começar a rabiscar. Mas fica sentada mais alguns momentos, vendo os círculos prateados girando em torno dos postes. Auréolas, ela pensa. Eu não posso usar essa palavra, mas é isso que parecem, caramba.

Há um vislumbre final da jaqueta amarela do corredor e ele some no escuro. A velha poeta se levanta com dificuldade, fazendo careta por causa da dor nos quadris, e entra em casa.

3

Jorge Castro acelera um pouco. Ele está com fôlego renovado, os pulmões absorvendo mais ar, as endorfinas a toda. O parque está logo à frente, cheio de postes antiquados que emitem um brilho amarelo místico. Tem um pequeno estacionamento na frente do parquinho deserto, exceto por uma van de passageiros com a porta lateral aberta e uma rampa descendo até o asfalto molhado. Perto do pé dela há um idoso de cadeira de rodas e uma idosa apoiada em um joelho, mexendo na cadeira.

Jorge para por um momento, curvado, as mãos apoiadas nas pernas acima dos joelhos, recuperando o fôlego e olhando a van. A placa azul e branca atrás tem um desenho de cadeira de rodas.

Com um casaco acolchoado e um lenço, a mulher olha para ele. Primeiro, Jorge não tem certeza se a conhece; a luz nesse pequeno estacionamento auxiliar não é tão boa.

— Oi! Algum problema?

Ela fica em pé. O idoso na cadeira de rodas, usando um suéter de botão e boina, acena sem entusiasmo.

—A bateria morreu — responde a mulher. — É sr. Castro, não é? Jorge?

Agora ele a reconhece. É a professora universitária Emily Harris, que ensina literatura inglesa… ou ensinava; agora talvez seja emérita. E aquele é o marido dela, professor também, mas de escola. Jorge não sabia que ele era uma pessoa com deficiência, não o tem visto no campus — ele e Harris são de departamentos diferentes, em prédios diferentes —, mas acha que da última vez que o viu, o cara estava andando. Jorge a vê com frequência em reuniões de professores e eventos frequentados por pessoas ávidas por cultura. Acha que não é uma das pessoas favoritas dela, principalmente de pois da reunião de departamento sobre a agora falecida Oficina de Poesia. Aquilo ficou um pouco acalorado.

— Sim, sou eu — diz ele. — Imagino que vocês dois gostariam de ir para casa se secar.

— Seria ótimo — diz o sr. Harris. Ou talvez ele também seja professor universitário. Seu suéter é fino e ele está tremendo um pouco. — Será que você pode me empurrar pela rampa, rapaz? — Ele tosse, limpa a garganta, tosse de novo. A esposa, tão seca e autoritária nas reuniões de departamen to, parece meio perdida e desalinhada. Inconsolável. Jorge se pergunta há quanto tempo eles estão ali e por que ela não ligou para alguém pedindo ajuda. Talvez ela não tenha celular, pensa ele. Ou tenha deixado em casa. Gente velha às vezes é esquecida com essas coisas. Se bem que ela não pode ter muito mais do que setenta anos. O marido, na cadeira de rodas, parece mais velho.

— Acho que posso ajudar com isso. O freio está destravado?

— Sim, certamente — responde Emily Harris, recuando quando Jorge segura os apoios para as mãos e vira a cadeira para deixá-la voltada para a rampa. Ele a puxa para trás uns três metros, para pegar embalo. Cadeiras motorizadas costumam ser pesadas. A última coisa que quer é chegar na metade, perder o impulso e rolar para trás. Ou, que Deus não permita, virar para o lado e derrubar o coroa no chão.

— Lá vamos nós, sr. Harris. Aguenta aí, talvez sacuda um pouco.

Harris se segura nos apoios para os braços e Jorge repara que os ombros dele são muito largos. Parecem musculosos embaixo do suéter. Ele imagina que as pessoas que perdem o uso das pernas compensam de outras formas. Jorge acelera na rampa.

— Aiô! — grita o sr. Harris com alegria.

A primeira metade da rampa é fácil, mas a cadeira começa a perder impulso. Jorge se curva, faz força com as costas e a faz seguir em frente. Enquanto executa essa tarefa solidária, um pensamento estranho lhe ocorre: as placas daquele estado são vermelhas e brancas, e embora o casal more na Ridge Road, como ele (Jorge já viu Emily Harris no jardim várias vezes), a placa da van deles é azul e branca, como as do estado vizinho a oeste. Tem outra coisa estranha: ele não se lembra de já ter visto essa van na rua, embora tenha visto Emily sentada reta como uma vara ao volante de um Subaru bem cuidado com um adesivo do Obama no para-choque trasei…

Quando ele chega no topo da rampa, inclinado quase na horizontal agora, os braços esticados e os tênis de corrida flexionados, um inseto pica seu pescoço. Parece grande, pelo calor que se espalha a partir do ponto, talvez uma vespa, e ele está tendo uma reação. Nunca teve antes, mas tem primeira vez para tudo, e de repente sua visão fica borrada e a força some dos braços. Os tênis escorregam na rampa molhada e ele se apoia em um joelho.

A cadeira de rodas vai rolar pra trás, pra cima de mim…

Mas não rola. Rodney Harris aperta um botão e a cadeira de rodas

rola para dentro com um zumbido satisfeito. Harris se levanta, contorna a cadeira com agilidade e olha para o homem ajoelhado na rampa com o cabelo grudado na testa e o chuvisco molhando as bochechas como suor. Jorge cai de cara.

— Olha isso! — exclama Emily suavemente. — Perfeito!

— Me ajuda — diz Rodney.

A esposa, também usando tênis de corrida, segura os tornozelos de Jorge. O marido segura os braços. Eles o carregam para dentro. A rampa se fecha. Rodney (que na verdade também é professor universitário, no fim das contas) se acomoda no assento do motorista, à esquerda. Emily se ajoelha e prende os pulsos de Jorge com um lacre, embora essa precaução provavelmente seja desnecessária. Jorge está dormindo como uma pedra (uma comparação que a velha poeta certamente reprovaria) e roncando alto.

—Tudo bem? — pergunta Rodney Harris, o homem do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade Bell.

— Tudo bem! — A voz de Emily está vibrando de empolgação. — Nós conseguimos, Roddy! Pegamos o filho da puta!

— Olha o linguajar, querida — diz Rodney. E sorri. — Mas sim. Nós conseguimos. — Ele sai do estacionamento e começa a subir a colina.

A velha poeta ergue o rosto do caderno de trabalho, que tem a foto de um carrinho de mão vermelho na frente, vê a van passar e se curva nova mente para o poema.

A van entra no número 93 da Ridge Road, casa dos Harris há quase vinte e cinco anos. Pertence a eles, não à faculdade. Uma das duas portas da garagem sobe; a van entra na baia da esquerda; a porta da garagem se fecha; tudo fica novamente parado na Ridge Road. A neblina gira em torno das luzes dos postes.

Como auréolas.

Holly Gibney era uma personagem secundária em Mr. Mercedes. Stephen King, de 75 anos, no entanto, não conseguiu esquecê-la. Ela volta agora em um novo romance do mestre do terror para “resolver a terrível verdade por trás de vários desaparecimentos em uma cidade do meio-oeste americano”.

Holly é um lançamento da Suma e chega às livrarias de todo o mundo nesta terça-feira, 5. O livro tem 448 páginas e vai custar R$ 79,90 e R$ 39,90 o e-book.

Na história, segundo a sinopse, Penny Dahl está desesperada para encontrar a filha que sumiu sem deixar vestígios. Em busca de ajuda profissional, ela liga para a agência Achados e Perdidos, sob o comando de Holly Gibney. A detetive reluta em aceitar o caso, porque deveria estar de licença, mas algo na voz de Penny faz com que Holly não consiga ignorar o pedido.

O escritor Stephen King, em 2022 Foto: Tom Brenner / Reuters

Ainda segundo a sinopse, a poucos quarteirões de onde Bonnie foi vista pela última vez, moram Rodney e Emily Harris. Um casal de acadêmicos octogenários, eles simbolizam a banalidade da classe média suburbana. No entanto, no porão de sua casa bem cuidada e repleta de livros, os dois escondem um segredo terrível.

O Estadão publica com exclusividade um trecho do novo livro de Stephen King.

Capa de Holly, de Stephen King Foto: Reprodução/Suma

Leia um trecho de Holly

17 de outubro de 2012

1

É uma cidade velha que não está mais na melhor forma, assim como o lago ao lado do qual foi construída, mas há partes que ainda são agradáveis. Os moradores antigos provavelmente concordariam que a melhor parte é Sugar Heights e a melhor rua que passa por lá é Ridge Road, que faz uma curva suave em declive da Faculdade Bell de Artes e Ciências até o parque Deerfield, três quilômetros abaixo. No caminho, a Ridge Road passa por muitas casas boas, algumas das quais pertencem a professores da faculdade e algumas aos profissionais mais bem-sucedidos da cidade: médicos, advo gados, banqueiros e executivos do topo da pirâmide. A maioria das casas é vitoriana, com pintura impecável, janelões projetados e muitos acabamentos elaborados.

O parque onde a Ridge Road termina não é tão grande quanto o que fica no meio de Manhattan, mas quase. Deerfield é o orgulho da cidade, e um pelotão de jardineiros o mantém fabuloso. Ah, tem o lado oeste descuidado, perto da avenida Red Bank, conhecido como Matagal, onde as pessoas que procuram ou vendem drogas conseguem ser encontradas às vezes depois que escurece, e onde há assaltos ocasionais, mas o Matagal só ocupa um hectare de trezentos. O resto é gramado e cheio de flores, com caminhos por onde os apaixonados passeiam e bancos onde homens idosos leem jor nais (e cada vez mais em dispositivos eletrônicos atualmente) e mulheres conversam, às vezes enquanto ninam bebês em carrinhos caros. Tem dois lagos e às vezes dá para ver homens ou garotos brincando com barcos de controle remoto em um deles. No outro, cisnes e patos deslizam de um lado para outro. Também tem um parquinho para os pequenos. Tem tudo, na verdade, menos piscina pública; de vez em quando o conselho da cidade discute a ideia, mas sempre fica para depois. Caro demais, sabe.

A noite de outubro está quente para a época do ano, mas um chuvisco leve manteve todos dentro de casa, exceto um corredor bastante dedicado. Esse seria Jorge Castro, que trabalha como professor de escrita criativa e literatura latino-americana na faculdade. Apesar da especialidade, ele é nascido e criado nos Estados Unidos; gosta de dizer que é tão americano quanto torta de manzana.

Ele fez quarenta anos em julho e não pode mais enganar a si mesmo que ainda é o jovem leão que teve um sucesso momentâneo com seu primeiro livro best-seller. Quarenta é quando você tem que parar de enganar a si mesmo de que ainda é o jovem qualquer coisa. Se não fizer isso, se insistir em baboseiras autossatisfatórias como “os quarenta são os novos vinte e cinco”, você vai perceber que começa a escorregar. Só um pouco no come ço, depois um pouco mais, e de repente você tem cinquenta anos com uma barriga projetada por cima do cinto e remédio para colesterol no armário de medicamentos. Aos vinte, o corpo perdoa. Aos quarenta, o perdão é no máximo temporário. Jorge Castro não quer fazer cinquenta e descobrir que se tornou só mais um pateta americano.

É preciso começar a se cuidar aos quarenta. É preciso fazer a manutenção do maquinário porque não há opção de troca. Portanto, Jorge toma suco de laranja de manhã (tem potássio), na maioria dos dias com aveia (pelos antioxidantes) e só ingere carne vermelha uma vez por semana. Quando quer beliscar, costuma abrir uma lata de sardinha. É rico em Ômega-3. (E gostoso!) Ele faz exercícios simples de manhã e corre de noite, sem exagerar, para aerar os pulmões de quarenta anos e dar ao coração de quarenta anos a oportunidade de fazer o seu melhor (batimentos em repouso: 63). Jorge quer parecer ter e se sentir com quarenta anos quando fizer cinquenta, mas o destino é brincalhão. Jorge Castro não vai nem chegar aos 41.

2

Sua rotina, que ele mantém mesmo em uma noite de chuvisco leve, é cor rer da casa que divide com Freddy (é deles, pelo menos, enquanto durar o emprego de escritor residente) por oitocentos metros da faculdade até o parque. Lá, ele alonga as costas, toma um pouco da Vitamin Water guardada na pochete e corre para casa. A chuvinha é revigorante, e não há mais nin guém correndo, caminhando ou andando de bicicleta de quem ele precise desviar. Os ciclistas são os piores, com a insistência de que têm todo o direito de andar pela calçada em vez de na rua, apesar de haver ciclovia. Naquela noite, ele está com a calçada toda para si. Nem precisa acenar para as pessoas que podem estar tomando ar noturno nas grandes varandas cobertas; o tempo fez todo mundo ficar dentro de casa.

Todo mundo, menos uma pessoa: a velha poeta. Ela está agasalhada com uma parka apesar de fazer pouco mais de dez graus às oito da noite, porque só tem cinquenta quilos (o médico sempre a repreende por causa do peso) e está com frio. Mais do que o frio, ela sente a umidade. Mas fica ali, porque há um poema a ser criado hoje se ela conseguir enfiar os dedos embaixo da tampa que o guarda e abri-la. Ela não escreveu nenhum desde o meio do verão e precisa fazer algo acontecer antes que a ferrugem se espalhe. Ela precisa representar, como seus alunos dizem às vezes. Mais importante, esse pode ser um bom poema. Talvez até um poema necessário.

Precisa começar com a forma como a neblina gira em torno das luzes dos postes à frente dela e progredir para o que pensa ser o mistério. Que é tudo. A neblina cria auréolas que se movem lentamente, lindas e prateadas. Ela não quer usar auréolas porque é a palavra esperada, a palavra preguiçosa. Quase clichê. Já prateadas… ou talvez só prata…

Sua linha de raciocínio se interrompe o suficiente para observar um jovem (aos 89, quarenta anos parece muito jovem) passar correndo do ou tro lado da rua. Ela sabe quem é: o escritor residente que acha que Gabriel García Marquez pendurou a Lua no céu. Com o cabelo escuro comprido e o bigodinho de escovinha, ele lembra à velha poeta de um personagem encantador de A princesa prometida: “Meu nome é Inigo Montoya, você ma tou meu pai, prepare-se para morrer”. Ele está usando uma jaqueta amarela com uma faixa refletora nas costas e uma calça de corrida ridiculamente apertada. Está correndo como se fosse tirar o pai da forca, a mãe da poeta teria dito. Ou fugindo do badalo da igreja.

Badalo a fez pensar em sinos e seu olhar se volta para o poste direta mente à frente. Ela pensa: O corredor não ouve prata acima dele/ Esses sinos não dobram.

É errado porque é banal, mas é um começo. Ela conseguiu enfiar os dedos embaixo da tampa do poema. Precisa entrar em casa, pegar o caderno e começar a rabiscar. Mas fica sentada mais alguns momentos, vendo os círculos prateados girando em torno dos postes. Auréolas, ela pensa. Eu não posso usar essa palavra, mas é isso que parecem, caramba.

Há um vislumbre final da jaqueta amarela do corredor e ele some no escuro. A velha poeta se levanta com dificuldade, fazendo careta por causa da dor nos quadris, e entra em casa.

3

Jorge Castro acelera um pouco. Ele está com fôlego renovado, os pulmões absorvendo mais ar, as endorfinas a toda. O parque está logo à frente, cheio de postes antiquados que emitem um brilho amarelo místico. Tem um pequeno estacionamento na frente do parquinho deserto, exceto por uma van de passageiros com a porta lateral aberta e uma rampa descendo até o asfalto molhado. Perto do pé dela há um idoso de cadeira de rodas e uma idosa apoiada em um joelho, mexendo na cadeira.

Jorge para por um momento, curvado, as mãos apoiadas nas pernas acima dos joelhos, recuperando o fôlego e olhando a van. A placa azul e branca atrás tem um desenho de cadeira de rodas.

Com um casaco acolchoado e um lenço, a mulher olha para ele. Primeiro, Jorge não tem certeza se a conhece; a luz nesse pequeno estacionamento auxiliar não é tão boa.

— Oi! Algum problema?

Ela fica em pé. O idoso na cadeira de rodas, usando um suéter de botão e boina, acena sem entusiasmo.

—A bateria morreu — responde a mulher. — É sr. Castro, não é? Jorge?

Agora ele a reconhece. É a professora universitária Emily Harris, que ensina literatura inglesa… ou ensinava; agora talvez seja emérita. E aquele é o marido dela, professor também, mas de escola. Jorge não sabia que ele era uma pessoa com deficiência, não o tem visto no campus — ele e Harris são de departamentos diferentes, em prédios diferentes —, mas acha que da última vez que o viu, o cara estava andando. Jorge a vê com frequência em reuniões de professores e eventos frequentados por pessoas ávidas por cultura. Acha que não é uma das pessoas favoritas dela, principalmente de pois da reunião de departamento sobre a agora falecida Oficina de Poesia. Aquilo ficou um pouco acalorado.

— Sim, sou eu — diz ele. — Imagino que vocês dois gostariam de ir para casa se secar.

— Seria ótimo — diz o sr. Harris. Ou talvez ele também seja professor universitário. Seu suéter é fino e ele está tremendo um pouco. — Será que você pode me empurrar pela rampa, rapaz? — Ele tosse, limpa a garganta, tosse de novo. A esposa, tão seca e autoritária nas reuniões de departamen to, parece meio perdida e desalinhada. Inconsolável. Jorge se pergunta há quanto tempo eles estão ali e por que ela não ligou para alguém pedindo ajuda. Talvez ela não tenha celular, pensa ele. Ou tenha deixado em casa. Gente velha às vezes é esquecida com essas coisas. Se bem que ela não pode ter muito mais do que setenta anos. O marido, na cadeira de rodas, parece mais velho.

— Acho que posso ajudar com isso. O freio está destravado?

— Sim, certamente — responde Emily Harris, recuando quando Jorge segura os apoios para as mãos e vira a cadeira para deixá-la voltada para a rampa. Ele a puxa para trás uns três metros, para pegar embalo. Cadeiras motorizadas costumam ser pesadas. A última coisa que quer é chegar na metade, perder o impulso e rolar para trás. Ou, que Deus não permita, virar para o lado e derrubar o coroa no chão.

— Lá vamos nós, sr. Harris. Aguenta aí, talvez sacuda um pouco.

Harris se segura nos apoios para os braços e Jorge repara que os ombros dele são muito largos. Parecem musculosos embaixo do suéter. Ele imagina que as pessoas que perdem o uso das pernas compensam de outras formas. Jorge acelera na rampa.

— Aiô! — grita o sr. Harris com alegria.

A primeira metade da rampa é fácil, mas a cadeira começa a perder impulso. Jorge se curva, faz força com as costas e a faz seguir em frente. Enquanto executa essa tarefa solidária, um pensamento estranho lhe ocorre: as placas daquele estado são vermelhas e brancas, e embora o casal more na Ridge Road, como ele (Jorge já viu Emily Harris no jardim várias vezes), a placa da van deles é azul e branca, como as do estado vizinho a oeste. Tem outra coisa estranha: ele não se lembra de já ter visto essa van na rua, embora tenha visto Emily sentada reta como uma vara ao volante de um Subaru bem cuidado com um adesivo do Obama no para-choque trasei…

Quando ele chega no topo da rampa, inclinado quase na horizontal agora, os braços esticados e os tênis de corrida flexionados, um inseto pica seu pescoço. Parece grande, pelo calor que se espalha a partir do ponto, talvez uma vespa, e ele está tendo uma reação. Nunca teve antes, mas tem primeira vez para tudo, e de repente sua visão fica borrada e a força some dos braços. Os tênis escorregam na rampa molhada e ele se apoia em um joelho.

A cadeira de rodas vai rolar pra trás, pra cima de mim…

Mas não rola. Rodney Harris aperta um botão e a cadeira de rodas

rola para dentro com um zumbido satisfeito. Harris se levanta, contorna a cadeira com agilidade e olha para o homem ajoelhado na rampa com o cabelo grudado na testa e o chuvisco molhando as bochechas como suor. Jorge cai de cara.

— Olha isso! — exclama Emily suavemente. — Perfeito!

— Me ajuda — diz Rodney.

A esposa, também usando tênis de corrida, segura os tornozelos de Jorge. O marido segura os braços. Eles o carregam para dentro. A rampa se fecha. Rodney (que na verdade também é professor universitário, no fim das contas) se acomoda no assento do motorista, à esquerda. Emily se ajoelha e prende os pulsos de Jorge com um lacre, embora essa precaução provavelmente seja desnecessária. Jorge está dormindo como uma pedra (uma comparação que a velha poeta certamente reprovaria) e roncando alto.

—Tudo bem? — pergunta Rodney Harris, o homem do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade Bell.

— Tudo bem! — A voz de Emily está vibrando de empolgação. — Nós conseguimos, Roddy! Pegamos o filho da puta!

— Olha o linguajar, querida — diz Rodney. E sorri. — Mas sim. Nós conseguimos. — Ele sai do estacionamento e começa a subir a colina.

A velha poeta ergue o rosto do caderno de trabalho, que tem a foto de um carrinho de mão vermelho na frente, vê a van passar e se curva nova mente para o poema.

A van entra no número 93 da Ridge Road, casa dos Harris há quase vinte e cinco anos. Pertence a eles, não à faculdade. Uma das duas portas da garagem sobe; a van entra na baia da esquerda; a porta da garagem se fecha; tudo fica novamente parado na Ridge Road. A neblina gira em torno das luzes dos postes.

Como auréolas.

Holly Gibney era uma personagem secundária em Mr. Mercedes. Stephen King, de 75 anos, no entanto, não conseguiu esquecê-la. Ela volta agora em um novo romance do mestre do terror para “resolver a terrível verdade por trás de vários desaparecimentos em uma cidade do meio-oeste americano”.

Holly é um lançamento da Suma e chega às livrarias de todo o mundo nesta terça-feira, 5. O livro tem 448 páginas e vai custar R$ 79,90 e R$ 39,90 o e-book.

Na história, segundo a sinopse, Penny Dahl está desesperada para encontrar a filha que sumiu sem deixar vestígios. Em busca de ajuda profissional, ela liga para a agência Achados e Perdidos, sob o comando de Holly Gibney. A detetive reluta em aceitar o caso, porque deveria estar de licença, mas algo na voz de Penny faz com que Holly não consiga ignorar o pedido.

O escritor Stephen King, em 2022 Foto: Tom Brenner / Reuters

Ainda segundo a sinopse, a poucos quarteirões de onde Bonnie foi vista pela última vez, moram Rodney e Emily Harris. Um casal de acadêmicos octogenários, eles simbolizam a banalidade da classe média suburbana. No entanto, no porão de sua casa bem cuidada e repleta de livros, os dois escondem um segredo terrível.

O Estadão publica com exclusividade um trecho do novo livro de Stephen King.

Capa de Holly, de Stephen King Foto: Reprodução/Suma

Leia um trecho de Holly

17 de outubro de 2012

1

É uma cidade velha que não está mais na melhor forma, assim como o lago ao lado do qual foi construída, mas há partes que ainda são agradáveis. Os moradores antigos provavelmente concordariam que a melhor parte é Sugar Heights e a melhor rua que passa por lá é Ridge Road, que faz uma curva suave em declive da Faculdade Bell de Artes e Ciências até o parque Deerfield, três quilômetros abaixo. No caminho, a Ridge Road passa por muitas casas boas, algumas das quais pertencem a professores da faculdade e algumas aos profissionais mais bem-sucedidos da cidade: médicos, advo gados, banqueiros e executivos do topo da pirâmide. A maioria das casas é vitoriana, com pintura impecável, janelões projetados e muitos acabamentos elaborados.

O parque onde a Ridge Road termina não é tão grande quanto o que fica no meio de Manhattan, mas quase. Deerfield é o orgulho da cidade, e um pelotão de jardineiros o mantém fabuloso. Ah, tem o lado oeste descuidado, perto da avenida Red Bank, conhecido como Matagal, onde as pessoas que procuram ou vendem drogas conseguem ser encontradas às vezes depois que escurece, e onde há assaltos ocasionais, mas o Matagal só ocupa um hectare de trezentos. O resto é gramado e cheio de flores, com caminhos por onde os apaixonados passeiam e bancos onde homens idosos leem jor nais (e cada vez mais em dispositivos eletrônicos atualmente) e mulheres conversam, às vezes enquanto ninam bebês em carrinhos caros. Tem dois lagos e às vezes dá para ver homens ou garotos brincando com barcos de controle remoto em um deles. No outro, cisnes e patos deslizam de um lado para outro. Também tem um parquinho para os pequenos. Tem tudo, na verdade, menos piscina pública; de vez em quando o conselho da cidade discute a ideia, mas sempre fica para depois. Caro demais, sabe.

A noite de outubro está quente para a época do ano, mas um chuvisco leve manteve todos dentro de casa, exceto um corredor bastante dedicado. Esse seria Jorge Castro, que trabalha como professor de escrita criativa e literatura latino-americana na faculdade. Apesar da especialidade, ele é nascido e criado nos Estados Unidos; gosta de dizer que é tão americano quanto torta de manzana.

Ele fez quarenta anos em julho e não pode mais enganar a si mesmo que ainda é o jovem leão que teve um sucesso momentâneo com seu primeiro livro best-seller. Quarenta é quando você tem que parar de enganar a si mesmo de que ainda é o jovem qualquer coisa. Se não fizer isso, se insistir em baboseiras autossatisfatórias como “os quarenta são os novos vinte e cinco”, você vai perceber que começa a escorregar. Só um pouco no come ço, depois um pouco mais, e de repente você tem cinquenta anos com uma barriga projetada por cima do cinto e remédio para colesterol no armário de medicamentos. Aos vinte, o corpo perdoa. Aos quarenta, o perdão é no máximo temporário. Jorge Castro não quer fazer cinquenta e descobrir que se tornou só mais um pateta americano.

É preciso começar a se cuidar aos quarenta. É preciso fazer a manutenção do maquinário porque não há opção de troca. Portanto, Jorge toma suco de laranja de manhã (tem potássio), na maioria dos dias com aveia (pelos antioxidantes) e só ingere carne vermelha uma vez por semana. Quando quer beliscar, costuma abrir uma lata de sardinha. É rico em Ômega-3. (E gostoso!) Ele faz exercícios simples de manhã e corre de noite, sem exagerar, para aerar os pulmões de quarenta anos e dar ao coração de quarenta anos a oportunidade de fazer o seu melhor (batimentos em repouso: 63). Jorge quer parecer ter e se sentir com quarenta anos quando fizer cinquenta, mas o destino é brincalhão. Jorge Castro não vai nem chegar aos 41.

2

Sua rotina, que ele mantém mesmo em uma noite de chuvisco leve, é cor rer da casa que divide com Freddy (é deles, pelo menos, enquanto durar o emprego de escritor residente) por oitocentos metros da faculdade até o parque. Lá, ele alonga as costas, toma um pouco da Vitamin Water guardada na pochete e corre para casa. A chuvinha é revigorante, e não há mais nin guém correndo, caminhando ou andando de bicicleta de quem ele precise desviar. Os ciclistas são os piores, com a insistência de que têm todo o direito de andar pela calçada em vez de na rua, apesar de haver ciclovia. Naquela noite, ele está com a calçada toda para si. Nem precisa acenar para as pessoas que podem estar tomando ar noturno nas grandes varandas cobertas; o tempo fez todo mundo ficar dentro de casa.

Todo mundo, menos uma pessoa: a velha poeta. Ela está agasalhada com uma parka apesar de fazer pouco mais de dez graus às oito da noite, porque só tem cinquenta quilos (o médico sempre a repreende por causa do peso) e está com frio. Mais do que o frio, ela sente a umidade. Mas fica ali, porque há um poema a ser criado hoje se ela conseguir enfiar os dedos embaixo da tampa que o guarda e abri-la. Ela não escreveu nenhum desde o meio do verão e precisa fazer algo acontecer antes que a ferrugem se espalhe. Ela precisa representar, como seus alunos dizem às vezes. Mais importante, esse pode ser um bom poema. Talvez até um poema necessário.

Precisa começar com a forma como a neblina gira em torno das luzes dos postes à frente dela e progredir para o que pensa ser o mistério. Que é tudo. A neblina cria auréolas que se movem lentamente, lindas e prateadas. Ela não quer usar auréolas porque é a palavra esperada, a palavra preguiçosa. Quase clichê. Já prateadas… ou talvez só prata…

Sua linha de raciocínio se interrompe o suficiente para observar um jovem (aos 89, quarenta anos parece muito jovem) passar correndo do ou tro lado da rua. Ela sabe quem é: o escritor residente que acha que Gabriel García Marquez pendurou a Lua no céu. Com o cabelo escuro comprido e o bigodinho de escovinha, ele lembra à velha poeta de um personagem encantador de A princesa prometida: “Meu nome é Inigo Montoya, você ma tou meu pai, prepare-se para morrer”. Ele está usando uma jaqueta amarela com uma faixa refletora nas costas e uma calça de corrida ridiculamente apertada. Está correndo como se fosse tirar o pai da forca, a mãe da poeta teria dito. Ou fugindo do badalo da igreja.

Badalo a fez pensar em sinos e seu olhar se volta para o poste direta mente à frente. Ela pensa: O corredor não ouve prata acima dele/ Esses sinos não dobram.

É errado porque é banal, mas é um começo. Ela conseguiu enfiar os dedos embaixo da tampa do poema. Precisa entrar em casa, pegar o caderno e começar a rabiscar. Mas fica sentada mais alguns momentos, vendo os círculos prateados girando em torno dos postes. Auréolas, ela pensa. Eu não posso usar essa palavra, mas é isso que parecem, caramba.

Há um vislumbre final da jaqueta amarela do corredor e ele some no escuro. A velha poeta se levanta com dificuldade, fazendo careta por causa da dor nos quadris, e entra em casa.

3

Jorge Castro acelera um pouco. Ele está com fôlego renovado, os pulmões absorvendo mais ar, as endorfinas a toda. O parque está logo à frente, cheio de postes antiquados que emitem um brilho amarelo místico. Tem um pequeno estacionamento na frente do parquinho deserto, exceto por uma van de passageiros com a porta lateral aberta e uma rampa descendo até o asfalto molhado. Perto do pé dela há um idoso de cadeira de rodas e uma idosa apoiada em um joelho, mexendo na cadeira.

Jorge para por um momento, curvado, as mãos apoiadas nas pernas acima dos joelhos, recuperando o fôlego e olhando a van. A placa azul e branca atrás tem um desenho de cadeira de rodas.

Com um casaco acolchoado e um lenço, a mulher olha para ele. Primeiro, Jorge não tem certeza se a conhece; a luz nesse pequeno estacionamento auxiliar não é tão boa.

— Oi! Algum problema?

Ela fica em pé. O idoso na cadeira de rodas, usando um suéter de botão e boina, acena sem entusiasmo.

—A bateria morreu — responde a mulher. — É sr. Castro, não é? Jorge?

Agora ele a reconhece. É a professora universitária Emily Harris, que ensina literatura inglesa… ou ensinava; agora talvez seja emérita. E aquele é o marido dela, professor também, mas de escola. Jorge não sabia que ele era uma pessoa com deficiência, não o tem visto no campus — ele e Harris são de departamentos diferentes, em prédios diferentes —, mas acha que da última vez que o viu, o cara estava andando. Jorge a vê com frequência em reuniões de professores e eventos frequentados por pessoas ávidas por cultura. Acha que não é uma das pessoas favoritas dela, principalmente de pois da reunião de departamento sobre a agora falecida Oficina de Poesia. Aquilo ficou um pouco acalorado.

— Sim, sou eu — diz ele. — Imagino que vocês dois gostariam de ir para casa se secar.

— Seria ótimo — diz o sr. Harris. Ou talvez ele também seja professor universitário. Seu suéter é fino e ele está tremendo um pouco. — Será que você pode me empurrar pela rampa, rapaz? — Ele tosse, limpa a garganta, tosse de novo. A esposa, tão seca e autoritária nas reuniões de departamen to, parece meio perdida e desalinhada. Inconsolável. Jorge se pergunta há quanto tempo eles estão ali e por que ela não ligou para alguém pedindo ajuda. Talvez ela não tenha celular, pensa ele. Ou tenha deixado em casa. Gente velha às vezes é esquecida com essas coisas. Se bem que ela não pode ter muito mais do que setenta anos. O marido, na cadeira de rodas, parece mais velho.

— Acho que posso ajudar com isso. O freio está destravado?

— Sim, certamente — responde Emily Harris, recuando quando Jorge segura os apoios para as mãos e vira a cadeira para deixá-la voltada para a rampa. Ele a puxa para trás uns três metros, para pegar embalo. Cadeiras motorizadas costumam ser pesadas. A última coisa que quer é chegar na metade, perder o impulso e rolar para trás. Ou, que Deus não permita, virar para o lado e derrubar o coroa no chão.

— Lá vamos nós, sr. Harris. Aguenta aí, talvez sacuda um pouco.

Harris se segura nos apoios para os braços e Jorge repara que os ombros dele são muito largos. Parecem musculosos embaixo do suéter. Ele imagina que as pessoas que perdem o uso das pernas compensam de outras formas. Jorge acelera na rampa.

— Aiô! — grita o sr. Harris com alegria.

A primeira metade da rampa é fácil, mas a cadeira começa a perder impulso. Jorge se curva, faz força com as costas e a faz seguir em frente. Enquanto executa essa tarefa solidária, um pensamento estranho lhe ocorre: as placas daquele estado são vermelhas e brancas, e embora o casal more na Ridge Road, como ele (Jorge já viu Emily Harris no jardim várias vezes), a placa da van deles é azul e branca, como as do estado vizinho a oeste. Tem outra coisa estranha: ele não se lembra de já ter visto essa van na rua, embora tenha visto Emily sentada reta como uma vara ao volante de um Subaru bem cuidado com um adesivo do Obama no para-choque trasei…

Quando ele chega no topo da rampa, inclinado quase na horizontal agora, os braços esticados e os tênis de corrida flexionados, um inseto pica seu pescoço. Parece grande, pelo calor que se espalha a partir do ponto, talvez uma vespa, e ele está tendo uma reação. Nunca teve antes, mas tem primeira vez para tudo, e de repente sua visão fica borrada e a força some dos braços. Os tênis escorregam na rampa molhada e ele se apoia em um joelho.

A cadeira de rodas vai rolar pra trás, pra cima de mim…

Mas não rola. Rodney Harris aperta um botão e a cadeira de rodas

rola para dentro com um zumbido satisfeito. Harris se levanta, contorna a cadeira com agilidade e olha para o homem ajoelhado na rampa com o cabelo grudado na testa e o chuvisco molhando as bochechas como suor. Jorge cai de cara.

— Olha isso! — exclama Emily suavemente. — Perfeito!

— Me ajuda — diz Rodney.

A esposa, também usando tênis de corrida, segura os tornozelos de Jorge. O marido segura os braços. Eles o carregam para dentro. A rampa se fecha. Rodney (que na verdade também é professor universitário, no fim das contas) se acomoda no assento do motorista, à esquerda. Emily se ajoelha e prende os pulsos de Jorge com um lacre, embora essa precaução provavelmente seja desnecessária. Jorge está dormindo como uma pedra (uma comparação que a velha poeta certamente reprovaria) e roncando alto.

—Tudo bem? — pergunta Rodney Harris, o homem do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade Bell.

— Tudo bem! — A voz de Emily está vibrando de empolgação. — Nós conseguimos, Roddy! Pegamos o filho da puta!

— Olha o linguajar, querida — diz Rodney. E sorri. — Mas sim. Nós conseguimos. — Ele sai do estacionamento e começa a subir a colina.

A velha poeta ergue o rosto do caderno de trabalho, que tem a foto de um carrinho de mão vermelho na frente, vê a van passar e se curva nova mente para o poema.

A van entra no número 93 da Ridge Road, casa dos Harris há quase vinte e cinco anos. Pertence a eles, não à faculdade. Uma das duas portas da garagem sobe; a van entra na baia da esquerda; a porta da garagem se fecha; tudo fica novamente parado na Ridge Road. A neblina gira em torno das luzes dos postes.

Como auréolas.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.