Tatiana Salem Levy encara seus demônios e escreve seu livro mais corajoso: ‘Melhor Não Contar’


Escritora diz que precisou de 25 anos para trabalhar com a história retratada neste romance autobiográfico, mas afirma: ‘Que bom que agora a gente esteja falando sobre assédio na infância e no ambiente familiar, que é algo tão, tão comum, e que destrói vidas’

Por Joselia Aguiar
Atualização:

Uma garota de dez anos se dá conta numa piscina, ao tirar o sutiã do biquíni, do desconforto de estar no próprio corpo. Os diários da adolescência de sua mãe, um exemplo de mulher livre e feminista à frente de seu tempo, chegam depois até essa filha, que desistira de escrever os seus. A lembrança desses dias de início da puberdade já nos dá material interessantíssimo para ler quando, na página 25, chegamos a isto: “Este livro é também sobre um segredo. Um segredo que não consegui – não pude, não quis – contar à minha mãe, tampouco aos meus diários.”

Tatiana Salem Levy conseguiu um grande feito: em Melhor Não Contar, publicado pela Todavia, ela trata de questões extremamente delicadas e de discussão urgente no País ao mobilizar um conjunto de recursos extraficcionais, sem deixar de prender os leitores com o tanto de suspense, e surpresa, que vão aparecendo com o passar das páginas, na melhor tradição romanesca.

Os tais recursos consistem em cartas, diários, exames médicos, suas memórias antigas e recentes, contextos históricos, citações de outros autores, uma liga que vai de Annie Ernaux a Umberto Eco. De fundo autobiográfico, funciona como um grande ensaio sobre o que é ser mulher, sobretudo no Brasil, neste começo de século 21: cabem reflexões sobre o assédio – o assédio na infância -, aborto legal, morte e luto, afetos e decisões éticas e, sempre, a escolha pela escrita – pelo contar.

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A escritora Tatiana Salem Levy, que lança novo livro: 'Melhor Não Contar' Foto: Estelle Valente/Todavia/Divulgação

A história da protagonista é dominada pela presença da própria mãe, com quem teve uma relação simbiótica, de admiração e espelhamento. Helena Salem, primeira mulher brasileira a atuar como correspondente de guerra e, mais tarde, estudiosa do cinema brasileiro, morreu precocemente, aos 51 anos, em 1999.

“Escrever sempre foi, para nós duas, uma forma de desdobramento do pessoal. Uma forma, também, de montar as cenas da memória, de articular umas com as outras, de dar a ver aquilo que nos inquieta”, diz Tatiana, que vive em Lisboa e está no país para cumprir uma agenda de lançamentos. Acabava de desembarcar no Rio quando respondeu a essas perguntas, por e-mail.

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Neste domingo, 30, participa de uma das mesas da programação da Feira do Livro, no Pacaembu. “Talvez eu possa dizer que precisei ir matando-a ao longo dos anos, para ela deixar de me engolir, para eu poder sair desse lugar da filha que, em certo sentido, foi abandonada – mesmo não tendo sido um abandono, a morte da mãe sempre é sentida pelos filhos como um abandono – e, finalmente, fazer o movimento contrário: ser eu a engoli-la.”

O uso da memória pessoal para construir romances é um das marcas de Tatiana desde a estreia com A Chave de Casa (2007), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Admite que desde o primeiro livro vem trabalhando a influência da mãe. “Mesmo quando eu não falava dela, a questão da herança, daquilo que se passa de geração em geração, está tão presente no que escrevo, que acredito ter a ver com essa relação e com essa perda precoce.” Uma descendente de judeus da Turquia, a escritora nasceu em Lisboa onde os pais se estabeleceram no exílio, passou infância e parte da juventude no Rio, mantendo o vínculo com os dois países, Brasil e Portugal.

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Vista Chinesa (2021), seu romance anterior, trazia a violência contra a mulher como centro de sua história, tendo como fio condutor a experiência traumática vivida por uma amiga, que sofreu um estupro às vésperas da Copa do Mundo, em 2016. A questão feminina continuou a movê-la, e Melhor Não Contar seria, de início, um ensaio breve de autoteoria, usando os diários de sua mãe como eixo inicial para pensar a escrita de mulheres que narram na primeira pessoa. Até que decidiu enfrentar seus demônios.

“Acho que precisei de 25 anos para conseguir fazer essas perguntas. A sorte é que a escrita é isso mesmo: tempo, tempo, tempo. Não adianta ter pressa. Precisei de outros romances e quase duas décadas para escrevê-lo.” O seu novo livro, ela define também como romance. “É um romance se a gente pensar que cabe tudo num romance”, pontua, “quis escrever sobre as várias transformações da mulher, do corpo da mulher, a partir da minha própria experiência, do assédio que eu sofri, do aborto que eu escolhi fazer enquanto escrevia”.

A chegada de Melhor Não Contar às livrarias coincide com o momento em que o País, mais uma vez, debate as condições legais para realizar um aborto, com a possibilidade de retrocesso no Congresso, enquanto instituições já se antecipam a impedir a interrupção da gravidez em condições antes permitidas. Essa discussão é indissociável de outra, a do assédio e estupro de meninas, na maioria das vezes por parte de pessoas da família. Sem conhecimento necessário, sequer sabem que ficaram grávidas e não têm condição psíquica e emocional de contar o que aconteceu.

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Trabalho com a palavra, passo a vida tentando nomear aquilo que não tem nome”

Tatiana Salem Levy

“É muito difícil ser mulher, né? São muitas violências sofridas ao longo da vida, opressão, silenciamentos impostos”, responde a autora. “Mas eu trabalho com a palavra, passo a vida tentando nomear aquilo que não tem nome, então eu realmente precisava contar essas histórias, que são a história da minha formação, mas também a de tantas mulheres.”

Temas difíceis de falar, e que agora encontram espaço em obras corajosas com a sua. “Que bom que agora a gente esteja falando sobre assédio na infância e no ambiente familiar, que é algo tão, tão comum, e que destrói vidas. Sinto que faço parte de uma geração que fala, que tem decidido optar por contar, mesmo que depois de muito tempo.”

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Capa do livro Melhor Não Contar, de Tatiana Salem Levy, que resgata uma história de assédio sofrida pela autora na infância Foto: Reprodução/Editora Todavia

Leia trecho de ‘Melhor Não Contar’

Meus modelos na literatura foram sempre mulheres. Embora eu tenha caído de paixão por Faulkner, Melville, Camus, Kafka, Baudelaire, Pessoa, Dostoiévski, Rosa, entre tantos outros, nunca desejei ser nenhum deles. Nunca tive com eles a relação de intimidade que tive com Clarice, Virginia ou Simone. Eram elas que eu queria me tornar.

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Quando me apaixono por uma escritora, quero ler, além de seus versos, seus romances e seus contos, também sua correspondência, seus diários, seus escritos autobiográficos, tudo o que houver disponível sobre sua vida. Quero entender como elas se construíram com a escrita. Que mulheres elas se tornaram ao (se) escreverem?

Certo dia, caminhando por Lisboa, me deparei com um livro de Virginia Woolf, Momentos de vida. Comprei-o na hora. O volume, cujo título original é Moments of Being, reúne cinco narrativas escritas entre 1920 e 1936: “Reminiscências”, “Um esboço do passado” e três outras, lidas por Virginia no Clube das Memórias, que juntava ocasionalmente amigos para jantar, conviver e ler textos autobiográficos regidos pela franqueza absoluta.

Foi assim que descobri que Virginia e Vanessa haviam sido abusadas por seus irmãos mais velhos desde a infância até o fim da adolescência. Não sei se fiquei mais chocada com o fato em si, com a sua coragem de contar esse acontecimento num círculo de amigos ou com a ausência de comentários a esse respeito no mundo literário. Até então eu nunca tinha ouvido falar que Virginia Woolf tivesse sido abusada.

Tinha ouvido falar, isto sim, que depois de morta ela ganhara fama de depressiva, doentia e assexuada. Mas não que seu corpo tinha sido violentado tantas vezes — e pelos próprios irmãos.

Nem que ela havia escrito abertamente sobre isso. Em “Um esboço do passado”, ela conta: “Certa vez, quando eu era bem pequena, Gerald Duckworth me colocou ali sentada e começou a explorar o meu corpo. Eu me lembro da sensação da mão dele enfiando-se por baixo das minhas roupas; descendo mais e mais, firme e continuamente. Eu me lembro de como eu torci para que ele parasse; de como eu enrijeci o corpo e de como me contorcia quando sua mão se aproximou das minhas partes íntimas. Mas ele não parou”.

Gerald Duckworth era o mais novo dos três filhos do primeiro casamento de Julia Jackson (mais tarde, Julia Stephen), mãe de Virginia. Seu pai, Herbert Duckworth, morreu antes de seu nascimento. Quando Gerald tinha oito anos, Julia se casou com Leslie Stephen, com quem teve quatro filhos: Va nessa, Thoby, Virginia e Adrian.

Em “Hyde Park Gate 22″, apresentado no Clube das Memórias, ela conta como também foi abusada sexualmente por George, seu irmão mais velho: “Já quase adormecera. O quarto estava escuro. A casa em silêncio. Então, rangendo furtivamente, a porta abriu-se; avançando com todo o cuidado, alguém entrou no quarto. ‘Quem é?’, perguntei. ‘Não tenhas medo’, murmurou George. ‘E não acendas a luz. Oh, minha querida. Minha querida…’ e lançou-se para cima da minha cama, tomando-me nos braços. Sim, as velhas senhoras de Kensington e Belgravia nunca souberam que George Duckworth não era apenas pai e mãe, irmão e irmã daquelas pobres raparigas da família Stephen; era seu amante também”.

No texto seguinte, ela retoma o acontecimento: “Ouvi então uma pancada de leve na porta, a luz apagou-se e George lançou-se para a minha cama, acariciando-me, beijando-me e abraçando-me com o objetivo de reconfortar-me, segundo ele mesmo explicou mais tarde ao dr. Savage, pela doença fatal do meu pai, que, três ou quatro pisos mais abaixo, estava a morrer de cancro”.

Virginia tinha sofrido tristezas cedo demais, disso eu sabia. Perdeu a mãe aos treze anos. Aos quinze, a irmã mais velha, Stella. Sete anos depois, o pai. O que eu não sabia é que, enquanto ele agonizava na cama, doente, aquela menina, de quem a vida já exigira tanto, era abusada pelo próprio irmão, que a violentava com a desculpa do consolo.

Será assim tão comum que os homens abusem das mulheres em momentos de doenças familiares?

Será assim tão comum que os homens gostem de se deitar sobre corpos fragilizados pela dor?

Que Virginia tenha falado sobre isso na década de 1930, não canso de repetir, é algo extraordinário. Que ela mal tenha sido ouvida ao longo das décadas que se passaram, é o nosso mundo.

Que nos culpemos por violências que sofremos, é consequência: “Não sou capaz de ocultar a minha opinião de que Vanessa terá tido alguma culpa; não é que, na realidade, ela pudesse ter feito alguma coisa para evitá-lo, mas por vezes penso que se Vanessa tivesse nascido com um ombro mais alto do que o outro, coxa, vesga, com uma grande verruga na face esquerda, tanto a vida dela quanto a minha poderiam ter sido diferentes, para melhor.”

Se eu, Tatiana, não me parecesse com um camafeu, se a minha beleza não fosse para homens mais velhos, cultos, a minha vida poderia ter sido diferente, para melhor.

E o que terão pensado as meninas com cabelo liso e franjinha? Que se tivessem o cabelo cacheado, sem franja, se não tivessem aquela beleza tão juvenil, a vida delas poderia ter sido diferente, para melhor?

Quanto mais eu leio histórias de mulheres, mais sentido vejo em escrevermos de forma pessoal. Aquilo que vivemos na intimidade, achando que só acontece com a gente, e por culpa nossa, acontece desde há muitos milênios com, se não todas, quase todas nós. Primeiro nos dizem para escrever em segredo sobre nós mesmas. Depois, quando decidimos mostrar para os outros o que escrevemos, nossos diários, nossas cartas, nossas narrativas em primeira pessoa não são consideradas literatura, ou são literatura menor. Só que nada fala mais de quem somos, de quem nos tornamos, coletivamente, do que as histórias de nossa vida.

Começo a ler A vergonha, da Annie Ernaux. O livro é sobre a sua primeira lembrança com data: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde. […] Foi no dia 15 de junho de 1952. A primeira data precisa e clara da minha infância”. Ela tem de onze para doze anos, e a primavera está terminando. As imagens e as poucas palavras daquele dia a perseguem vida afora, até o instante em que Annie consegue escrever sobre elas muitos anos depois. “Escrevo essa cena pela primeira vez. Até hoje me parecia impossível fazer isso, mesmo num diário. Como se fosse uma ação proibida que traria um castigo. Talvez o de não poder escrever mais nada depois.”

Não poder escrever nada depois: já pensei nisso algumas vezes. O que escrever depois de uma cena de assédio come tido pelo padrasto de uma menina? O que escrever depois da morte da mãe? O que escrever depois de um aborto?

Eu morreria se parasse de escrever depois?

Ou será que a escrita começa justamente nesse ponto no qual já não se pode escrever?

“Escrever.

Não posso.

Ninguém pode.

E se escreve.”

Marguerite Duras.

Na medida em que avancei na leitura, comecei a me perguntar: quantas mulheres carregarão a imagem dolorida de uma tarde da sua infância? Quantas meninas se tornaram mulheres num episódio de violência? Quantas mulheres ainda se encontram nas meninas que sofreram algum tipo de violência? Seria a escrita uma tentativa de arrancar a cena que existe dentro de nós, torná-la imagem para os outros, e assim pro faná-la, acabar com a sua aura sagrada?

Annie diz: “Mais tarde, cheguei a contar para alguns homens: ‘Meu pai tentou matar minha mãe pouco antes de eu fazer doze anos’. Ter vontade de dizer essa frase significava que eu estava apaixonada por eles. Todos se calaram depois de ouvi-la. Eu percebia que tinha cometido um erro, que eles não tinham condições de ouvir uma coisa dessas”.

Mais tarde, cheguei a contar para alguns homens: Meu padrasto me assediou. Ter vontade de dizer essa frase significava que eu estava apaixonada por eles. Quase todos se calaram depois de ouvi-la. Só percebi que tinha cometido um erro, que eles não tinham condições de ouvir uma coisa dessas, quando um namorado, vinte e sete anos mais velho, teve a coragem de me dizer aquilo que os outros deviam pensar.

Estávamos fazendo uma viagem romântica pelo Alentejo. Na jacuzzi de um belo hotel sediado num campo de oliveiras, contei-lhe o que havia se passado com o meu padrasto.

Eu tinha trinta anos, o assédio havia acontecido entre os meus dezessete e os meus vinte anos, para que falar disso na quele momento clichê-paraíso-do-amor-romântico-feliz?

Foi exatamente o que ele, um homem conhecido por dizer tudo frontalmente, me disse, Você não devia ter me contado isso. E me deu um conselho, Não o conte mais. Ele foi assertivo quando proferiu que nenhuma história de amor daria certo se eu contasse esse episódio. Os homens não querem saber essas coisas, ele assegurou. E nesse “os homens” havia ele, que estava muito contente com a nossa viagem pelo campo e achava que eu não deveria estragá-la com o passado.

Melhor Não Contar

  • Autora: Tatiana Salem Levy
  • Editora: Todavia (224 págs.; R$ 69,90; R$ 49,90 o e-book)

Uma garota de dez anos se dá conta numa piscina, ao tirar o sutiã do biquíni, do desconforto de estar no próprio corpo. Os diários da adolescência de sua mãe, um exemplo de mulher livre e feminista à frente de seu tempo, chegam depois até essa filha, que desistira de escrever os seus. A lembrança desses dias de início da puberdade já nos dá material interessantíssimo para ler quando, na página 25, chegamos a isto: “Este livro é também sobre um segredo. Um segredo que não consegui – não pude, não quis – contar à minha mãe, tampouco aos meus diários.”

Tatiana Salem Levy conseguiu um grande feito: em Melhor Não Contar, publicado pela Todavia, ela trata de questões extremamente delicadas e de discussão urgente no País ao mobilizar um conjunto de recursos extraficcionais, sem deixar de prender os leitores com o tanto de suspense, e surpresa, que vão aparecendo com o passar das páginas, na melhor tradição romanesca.

Os tais recursos consistem em cartas, diários, exames médicos, suas memórias antigas e recentes, contextos históricos, citações de outros autores, uma liga que vai de Annie Ernaux a Umberto Eco. De fundo autobiográfico, funciona como um grande ensaio sobre o que é ser mulher, sobretudo no Brasil, neste começo de século 21: cabem reflexões sobre o assédio – o assédio na infância -, aborto legal, morte e luto, afetos e decisões éticas e, sempre, a escolha pela escrita – pelo contar.

A escritora Tatiana Salem Levy, que lança novo livro: 'Melhor Não Contar' Foto: Estelle Valente/Todavia/Divulgação

A história da protagonista é dominada pela presença da própria mãe, com quem teve uma relação simbiótica, de admiração e espelhamento. Helena Salem, primeira mulher brasileira a atuar como correspondente de guerra e, mais tarde, estudiosa do cinema brasileiro, morreu precocemente, aos 51 anos, em 1999.

“Escrever sempre foi, para nós duas, uma forma de desdobramento do pessoal. Uma forma, também, de montar as cenas da memória, de articular umas com as outras, de dar a ver aquilo que nos inquieta”, diz Tatiana, que vive em Lisboa e está no país para cumprir uma agenda de lançamentos. Acabava de desembarcar no Rio quando respondeu a essas perguntas, por e-mail.

Neste domingo, 30, participa de uma das mesas da programação da Feira do Livro, no Pacaembu. “Talvez eu possa dizer que precisei ir matando-a ao longo dos anos, para ela deixar de me engolir, para eu poder sair desse lugar da filha que, em certo sentido, foi abandonada – mesmo não tendo sido um abandono, a morte da mãe sempre é sentida pelos filhos como um abandono – e, finalmente, fazer o movimento contrário: ser eu a engoli-la.”

O uso da memória pessoal para construir romances é um das marcas de Tatiana desde a estreia com A Chave de Casa (2007), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Admite que desde o primeiro livro vem trabalhando a influência da mãe. “Mesmo quando eu não falava dela, a questão da herança, daquilo que se passa de geração em geração, está tão presente no que escrevo, que acredito ter a ver com essa relação e com essa perda precoce.” Uma descendente de judeus da Turquia, a escritora nasceu em Lisboa onde os pais se estabeleceram no exílio, passou infância e parte da juventude no Rio, mantendo o vínculo com os dois países, Brasil e Portugal.

Vista Chinesa (2021), seu romance anterior, trazia a violência contra a mulher como centro de sua história, tendo como fio condutor a experiência traumática vivida por uma amiga, que sofreu um estupro às vésperas da Copa do Mundo, em 2016. A questão feminina continuou a movê-la, e Melhor Não Contar seria, de início, um ensaio breve de autoteoria, usando os diários de sua mãe como eixo inicial para pensar a escrita de mulheres que narram na primeira pessoa. Até que decidiu enfrentar seus demônios.

“Acho que precisei de 25 anos para conseguir fazer essas perguntas. A sorte é que a escrita é isso mesmo: tempo, tempo, tempo. Não adianta ter pressa. Precisei de outros romances e quase duas décadas para escrevê-lo.” O seu novo livro, ela define também como romance. “É um romance se a gente pensar que cabe tudo num romance”, pontua, “quis escrever sobre as várias transformações da mulher, do corpo da mulher, a partir da minha própria experiência, do assédio que eu sofri, do aborto que eu escolhi fazer enquanto escrevia”.

A chegada de Melhor Não Contar às livrarias coincide com o momento em que o País, mais uma vez, debate as condições legais para realizar um aborto, com a possibilidade de retrocesso no Congresso, enquanto instituições já se antecipam a impedir a interrupção da gravidez em condições antes permitidas. Essa discussão é indissociável de outra, a do assédio e estupro de meninas, na maioria das vezes por parte de pessoas da família. Sem conhecimento necessário, sequer sabem que ficaram grávidas e não têm condição psíquica e emocional de contar o que aconteceu.

Trabalho com a palavra, passo a vida tentando nomear aquilo que não tem nome”

Tatiana Salem Levy

“É muito difícil ser mulher, né? São muitas violências sofridas ao longo da vida, opressão, silenciamentos impostos”, responde a autora. “Mas eu trabalho com a palavra, passo a vida tentando nomear aquilo que não tem nome, então eu realmente precisava contar essas histórias, que são a história da minha formação, mas também a de tantas mulheres.”

Temas difíceis de falar, e que agora encontram espaço em obras corajosas com a sua. “Que bom que agora a gente esteja falando sobre assédio na infância e no ambiente familiar, que é algo tão, tão comum, e que destrói vidas. Sinto que faço parte de uma geração que fala, que tem decidido optar por contar, mesmo que depois de muito tempo.”

Capa do livro Melhor Não Contar, de Tatiana Salem Levy, que resgata uma história de assédio sofrida pela autora na infância Foto: Reprodução/Editora Todavia

Leia trecho de ‘Melhor Não Contar’

Meus modelos na literatura foram sempre mulheres. Embora eu tenha caído de paixão por Faulkner, Melville, Camus, Kafka, Baudelaire, Pessoa, Dostoiévski, Rosa, entre tantos outros, nunca desejei ser nenhum deles. Nunca tive com eles a relação de intimidade que tive com Clarice, Virginia ou Simone. Eram elas que eu queria me tornar.

Quando me apaixono por uma escritora, quero ler, além de seus versos, seus romances e seus contos, também sua correspondência, seus diários, seus escritos autobiográficos, tudo o que houver disponível sobre sua vida. Quero entender como elas se construíram com a escrita. Que mulheres elas se tornaram ao (se) escreverem?

Certo dia, caminhando por Lisboa, me deparei com um livro de Virginia Woolf, Momentos de vida. Comprei-o na hora. O volume, cujo título original é Moments of Being, reúne cinco narrativas escritas entre 1920 e 1936: “Reminiscências”, “Um esboço do passado” e três outras, lidas por Virginia no Clube das Memórias, que juntava ocasionalmente amigos para jantar, conviver e ler textos autobiográficos regidos pela franqueza absoluta.

Foi assim que descobri que Virginia e Vanessa haviam sido abusadas por seus irmãos mais velhos desde a infância até o fim da adolescência. Não sei se fiquei mais chocada com o fato em si, com a sua coragem de contar esse acontecimento num círculo de amigos ou com a ausência de comentários a esse respeito no mundo literário. Até então eu nunca tinha ouvido falar que Virginia Woolf tivesse sido abusada.

Tinha ouvido falar, isto sim, que depois de morta ela ganhara fama de depressiva, doentia e assexuada. Mas não que seu corpo tinha sido violentado tantas vezes — e pelos próprios irmãos.

Nem que ela havia escrito abertamente sobre isso. Em “Um esboço do passado”, ela conta: “Certa vez, quando eu era bem pequena, Gerald Duckworth me colocou ali sentada e começou a explorar o meu corpo. Eu me lembro da sensação da mão dele enfiando-se por baixo das minhas roupas; descendo mais e mais, firme e continuamente. Eu me lembro de como eu torci para que ele parasse; de como eu enrijeci o corpo e de como me contorcia quando sua mão se aproximou das minhas partes íntimas. Mas ele não parou”.

Gerald Duckworth era o mais novo dos três filhos do primeiro casamento de Julia Jackson (mais tarde, Julia Stephen), mãe de Virginia. Seu pai, Herbert Duckworth, morreu antes de seu nascimento. Quando Gerald tinha oito anos, Julia se casou com Leslie Stephen, com quem teve quatro filhos: Va nessa, Thoby, Virginia e Adrian.

Em “Hyde Park Gate 22″, apresentado no Clube das Memórias, ela conta como também foi abusada sexualmente por George, seu irmão mais velho: “Já quase adormecera. O quarto estava escuro. A casa em silêncio. Então, rangendo furtivamente, a porta abriu-se; avançando com todo o cuidado, alguém entrou no quarto. ‘Quem é?’, perguntei. ‘Não tenhas medo’, murmurou George. ‘E não acendas a luz. Oh, minha querida. Minha querida…’ e lançou-se para cima da minha cama, tomando-me nos braços. Sim, as velhas senhoras de Kensington e Belgravia nunca souberam que George Duckworth não era apenas pai e mãe, irmão e irmã daquelas pobres raparigas da família Stephen; era seu amante também”.

No texto seguinte, ela retoma o acontecimento: “Ouvi então uma pancada de leve na porta, a luz apagou-se e George lançou-se para a minha cama, acariciando-me, beijando-me e abraçando-me com o objetivo de reconfortar-me, segundo ele mesmo explicou mais tarde ao dr. Savage, pela doença fatal do meu pai, que, três ou quatro pisos mais abaixo, estava a morrer de cancro”.

Virginia tinha sofrido tristezas cedo demais, disso eu sabia. Perdeu a mãe aos treze anos. Aos quinze, a irmã mais velha, Stella. Sete anos depois, o pai. O que eu não sabia é que, enquanto ele agonizava na cama, doente, aquela menina, de quem a vida já exigira tanto, era abusada pelo próprio irmão, que a violentava com a desculpa do consolo.

Será assim tão comum que os homens abusem das mulheres em momentos de doenças familiares?

Será assim tão comum que os homens gostem de se deitar sobre corpos fragilizados pela dor?

Que Virginia tenha falado sobre isso na década de 1930, não canso de repetir, é algo extraordinário. Que ela mal tenha sido ouvida ao longo das décadas que se passaram, é o nosso mundo.

Que nos culpemos por violências que sofremos, é consequência: “Não sou capaz de ocultar a minha opinião de que Vanessa terá tido alguma culpa; não é que, na realidade, ela pudesse ter feito alguma coisa para evitá-lo, mas por vezes penso que se Vanessa tivesse nascido com um ombro mais alto do que o outro, coxa, vesga, com uma grande verruga na face esquerda, tanto a vida dela quanto a minha poderiam ter sido diferentes, para melhor.”

Se eu, Tatiana, não me parecesse com um camafeu, se a minha beleza não fosse para homens mais velhos, cultos, a minha vida poderia ter sido diferente, para melhor.

E o que terão pensado as meninas com cabelo liso e franjinha? Que se tivessem o cabelo cacheado, sem franja, se não tivessem aquela beleza tão juvenil, a vida delas poderia ter sido diferente, para melhor?

Quanto mais eu leio histórias de mulheres, mais sentido vejo em escrevermos de forma pessoal. Aquilo que vivemos na intimidade, achando que só acontece com a gente, e por culpa nossa, acontece desde há muitos milênios com, se não todas, quase todas nós. Primeiro nos dizem para escrever em segredo sobre nós mesmas. Depois, quando decidimos mostrar para os outros o que escrevemos, nossos diários, nossas cartas, nossas narrativas em primeira pessoa não são consideradas literatura, ou são literatura menor. Só que nada fala mais de quem somos, de quem nos tornamos, coletivamente, do que as histórias de nossa vida.

Começo a ler A vergonha, da Annie Ernaux. O livro é sobre a sua primeira lembrança com data: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde. […] Foi no dia 15 de junho de 1952. A primeira data precisa e clara da minha infância”. Ela tem de onze para doze anos, e a primavera está terminando. As imagens e as poucas palavras daquele dia a perseguem vida afora, até o instante em que Annie consegue escrever sobre elas muitos anos depois. “Escrevo essa cena pela primeira vez. Até hoje me parecia impossível fazer isso, mesmo num diário. Como se fosse uma ação proibida que traria um castigo. Talvez o de não poder escrever mais nada depois.”

Não poder escrever nada depois: já pensei nisso algumas vezes. O que escrever depois de uma cena de assédio come tido pelo padrasto de uma menina? O que escrever depois da morte da mãe? O que escrever depois de um aborto?

Eu morreria se parasse de escrever depois?

Ou será que a escrita começa justamente nesse ponto no qual já não se pode escrever?

“Escrever.

Não posso.

Ninguém pode.

E se escreve.”

Marguerite Duras.

Na medida em que avancei na leitura, comecei a me perguntar: quantas mulheres carregarão a imagem dolorida de uma tarde da sua infância? Quantas meninas se tornaram mulheres num episódio de violência? Quantas mulheres ainda se encontram nas meninas que sofreram algum tipo de violência? Seria a escrita uma tentativa de arrancar a cena que existe dentro de nós, torná-la imagem para os outros, e assim pro faná-la, acabar com a sua aura sagrada?

Annie diz: “Mais tarde, cheguei a contar para alguns homens: ‘Meu pai tentou matar minha mãe pouco antes de eu fazer doze anos’. Ter vontade de dizer essa frase significava que eu estava apaixonada por eles. Todos se calaram depois de ouvi-la. Eu percebia que tinha cometido um erro, que eles não tinham condições de ouvir uma coisa dessas”.

Mais tarde, cheguei a contar para alguns homens: Meu padrasto me assediou. Ter vontade de dizer essa frase significava que eu estava apaixonada por eles. Quase todos se calaram depois de ouvi-la. Só percebi que tinha cometido um erro, que eles não tinham condições de ouvir uma coisa dessas, quando um namorado, vinte e sete anos mais velho, teve a coragem de me dizer aquilo que os outros deviam pensar.

Estávamos fazendo uma viagem romântica pelo Alentejo. Na jacuzzi de um belo hotel sediado num campo de oliveiras, contei-lhe o que havia se passado com o meu padrasto.

Eu tinha trinta anos, o assédio havia acontecido entre os meus dezessete e os meus vinte anos, para que falar disso na quele momento clichê-paraíso-do-amor-romântico-feliz?

Foi exatamente o que ele, um homem conhecido por dizer tudo frontalmente, me disse, Você não devia ter me contado isso. E me deu um conselho, Não o conte mais. Ele foi assertivo quando proferiu que nenhuma história de amor daria certo se eu contasse esse episódio. Os homens não querem saber essas coisas, ele assegurou. E nesse “os homens” havia ele, que estava muito contente com a nossa viagem pelo campo e achava que eu não deveria estragá-la com o passado.

Melhor Não Contar

  • Autora: Tatiana Salem Levy
  • Editora: Todavia (224 págs.; R$ 69,90; R$ 49,90 o e-book)

Uma garota de dez anos se dá conta numa piscina, ao tirar o sutiã do biquíni, do desconforto de estar no próprio corpo. Os diários da adolescência de sua mãe, um exemplo de mulher livre e feminista à frente de seu tempo, chegam depois até essa filha, que desistira de escrever os seus. A lembrança desses dias de início da puberdade já nos dá material interessantíssimo para ler quando, na página 25, chegamos a isto: “Este livro é também sobre um segredo. Um segredo que não consegui – não pude, não quis – contar à minha mãe, tampouco aos meus diários.”

Tatiana Salem Levy conseguiu um grande feito: em Melhor Não Contar, publicado pela Todavia, ela trata de questões extremamente delicadas e de discussão urgente no País ao mobilizar um conjunto de recursos extraficcionais, sem deixar de prender os leitores com o tanto de suspense, e surpresa, que vão aparecendo com o passar das páginas, na melhor tradição romanesca.

Os tais recursos consistem em cartas, diários, exames médicos, suas memórias antigas e recentes, contextos históricos, citações de outros autores, uma liga que vai de Annie Ernaux a Umberto Eco. De fundo autobiográfico, funciona como um grande ensaio sobre o que é ser mulher, sobretudo no Brasil, neste começo de século 21: cabem reflexões sobre o assédio – o assédio na infância -, aborto legal, morte e luto, afetos e decisões éticas e, sempre, a escolha pela escrita – pelo contar.

A escritora Tatiana Salem Levy, que lança novo livro: 'Melhor Não Contar' Foto: Estelle Valente/Todavia/Divulgação

A história da protagonista é dominada pela presença da própria mãe, com quem teve uma relação simbiótica, de admiração e espelhamento. Helena Salem, primeira mulher brasileira a atuar como correspondente de guerra e, mais tarde, estudiosa do cinema brasileiro, morreu precocemente, aos 51 anos, em 1999.

“Escrever sempre foi, para nós duas, uma forma de desdobramento do pessoal. Uma forma, também, de montar as cenas da memória, de articular umas com as outras, de dar a ver aquilo que nos inquieta”, diz Tatiana, que vive em Lisboa e está no país para cumprir uma agenda de lançamentos. Acabava de desembarcar no Rio quando respondeu a essas perguntas, por e-mail.

Neste domingo, 30, participa de uma das mesas da programação da Feira do Livro, no Pacaembu. “Talvez eu possa dizer que precisei ir matando-a ao longo dos anos, para ela deixar de me engolir, para eu poder sair desse lugar da filha que, em certo sentido, foi abandonada – mesmo não tendo sido um abandono, a morte da mãe sempre é sentida pelos filhos como um abandono – e, finalmente, fazer o movimento contrário: ser eu a engoli-la.”

O uso da memória pessoal para construir romances é um das marcas de Tatiana desde a estreia com A Chave de Casa (2007), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Admite que desde o primeiro livro vem trabalhando a influência da mãe. “Mesmo quando eu não falava dela, a questão da herança, daquilo que se passa de geração em geração, está tão presente no que escrevo, que acredito ter a ver com essa relação e com essa perda precoce.” Uma descendente de judeus da Turquia, a escritora nasceu em Lisboa onde os pais se estabeleceram no exílio, passou infância e parte da juventude no Rio, mantendo o vínculo com os dois países, Brasil e Portugal.

Vista Chinesa (2021), seu romance anterior, trazia a violência contra a mulher como centro de sua história, tendo como fio condutor a experiência traumática vivida por uma amiga, que sofreu um estupro às vésperas da Copa do Mundo, em 2016. A questão feminina continuou a movê-la, e Melhor Não Contar seria, de início, um ensaio breve de autoteoria, usando os diários de sua mãe como eixo inicial para pensar a escrita de mulheres que narram na primeira pessoa. Até que decidiu enfrentar seus demônios.

“Acho que precisei de 25 anos para conseguir fazer essas perguntas. A sorte é que a escrita é isso mesmo: tempo, tempo, tempo. Não adianta ter pressa. Precisei de outros romances e quase duas décadas para escrevê-lo.” O seu novo livro, ela define também como romance. “É um romance se a gente pensar que cabe tudo num romance”, pontua, “quis escrever sobre as várias transformações da mulher, do corpo da mulher, a partir da minha própria experiência, do assédio que eu sofri, do aborto que eu escolhi fazer enquanto escrevia”.

A chegada de Melhor Não Contar às livrarias coincide com o momento em que o País, mais uma vez, debate as condições legais para realizar um aborto, com a possibilidade de retrocesso no Congresso, enquanto instituições já se antecipam a impedir a interrupção da gravidez em condições antes permitidas. Essa discussão é indissociável de outra, a do assédio e estupro de meninas, na maioria das vezes por parte de pessoas da família. Sem conhecimento necessário, sequer sabem que ficaram grávidas e não têm condição psíquica e emocional de contar o que aconteceu.

Trabalho com a palavra, passo a vida tentando nomear aquilo que não tem nome”

Tatiana Salem Levy

“É muito difícil ser mulher, né? São muitas violências sofridas ao longo da vida, opressão, silenciamentos impostos”, responde a autora. “Mas eu trabalho com a palavra, passo a vida tentando nomear aquilo que não tem nome, então eu realmente precisava contar essas histórias, que são a história da minha formação, mas também a de tantas mulheres.”

Temas difíceis de falar, e que agora encontram espaço em obras corajosas com a sua. “Que bom que agora a gente esteja falando sobre assédio na infância e no ambiente familiar, que é algo tão, tão comum, e que destrói vidas. Sinto que faço parte de uma geração que fala, que tem decidido optar por contar, mesmo que depois de muito tempo.”

Capa do livro Melhor Não Contar, de Tatiana Salem Levy, que resgata uma história de assédio sofrida pela autora na infância Foto: Reprodução/Editora Todavia

Leia trecho de ‘Melhor Não Contar’

Meus modelos na literatura foram sempre mulheres. Embora eu tenha caído de paixão por Faulkner, Melville, Camus, Kafka, Baudelaire, Pessoa, Dostoiévski, Rosa, entre tantos outros, nunca desejei ser nenhum deles. Nunca tive com eles a relação de intimidade que tive com Clarice, Virginia ou Simone. Eram elas que eu queria me tornar.

Quando me apaixono por uma escritora, quero ler, além de seus versos, seus romances e seus contos, também sua correspondência, seus diários, seus escritos autobiográficos, tudo o que houver disponível sobre sua vida. Quero entender como elas se construíram com a escrita. Que mulheres elas se tornaram ao (se) escreverem?

Certo dia, caminhando por Lisboa, me deparei com um livro de Virginia Woolf, Momentos de vida. Comprei-o na hora. O volume, cujo título original é Moments of Being, reúne cinco narrativas escritas entre 1920 e 1936: “Reminiscências”, “Um esboço do passado” e três outras, lidas por Virginia no Clube das Memórias, que juntava ocasionalmente amigos para jantar, conviver e ler textos autobiográficos regidos pela franqueza absoluta.

Foi assim que descobri que Virginia e Vanessa haviam sido abusadas por seus irmãos mais velhos desde a infância até o fim da adolescência. Não sei se fiquei mais chocada com o fato em si, com a sua coragem de contar esse acontecimento num círculo de amigos ou com a ausência de comentários a esse respeito no mundo literário. Até então eu nunca tinha ouvido falar que Virginia Woolf tivesse sido abusada.

Tinha ouvido falar, isto sim, que depois de morta ela ganhara fama de depressiva, doentia e assexuada. Mas não que seu corpo tinha sido violentado tantas vezes — e pelos próprios irmãos.

Nem que ela havia escrito abertamente sobre isso. Em “Um esboço do passado”, ela conta: “Certa vez, quando eu era bem pequena, Gerald Duckworth me colocou ali sentada e começou a explorar o meu corpo. Eu me lembro da sensação da mão dele enfiando-se por baixo das minhas roupas; descendo mais e mais, firme e continuamente. Eu me lembro de como eu torci para que ele parasse; de como eu enrijeci o corpo e de como me contorcia quando sua mão se aproximou das minhas partes íntimas. Mas ele não parou”.

Gerald Duckworth era o mais novo dos três filhos do primeiro casamento de Julia Jackson (mais tarde, Julia Stephen), mãe de Virginia. Seu pai, Herbert Duckworth, morreu antes de seu nascimento. Quando Gerald tinha oito anos, Julia se casou com Leslie Stephen, com quem teve quatro filhos: Va nessa, Thoby, Virginia e Adrian.

Em “Hyde Park Gate 22″, apresentado no Clube das Memórias, ela conta como também foi abusada sexualmente por George, seu irmão mais velho: “Já quase adormecera. O quarto estava escuro. A casa em silêncio. Então, rangendo furtivamente, a porta abriu-se; avançando com todo o cuidado, alguém entrou no quarto. ‘Quem é?’, perguntei. ‘Não tenhas medo’, murmurou George. ‘E não acendas a luz. Oh, minha querida. Minha querida…’ e lançou-se para cima da minha cama, tomando-me nos braços. Sim, as velhas senhoras de Kensington e Belgravia nunca souberam que George Duckworth não era apenas pai e mãe, irmão e irmã daquelas pobres raparigas da família Stephen; era seu amante também”.

No texto seguinte, ela retoma o acontecimento: “Ouvi então uma pancada de leve na porta, a luz apagou-se e George lançou-se para a minha cama, acariciando-me, beijando-me e abraçando-me com o objetivo de reconfortar-me, segundo ele mesmo explicou mais tarde ao dr. Savage, pela doença fatal do meu pai, que, três ou quatro pisos mais abaixo, estava a morrer de cancro”.

Virginia tinha sofrido tristezas cedo demais, disso eu sabia. Perdeu a mãe aos treze anos. Aos quinze, a irmã mais velha, Stella. Sete anos depois, o pai. O que eu não sabia é que, enquanto ele agonizava na cama, doente, aquela menina, de quem a vida já exigira tanto, era abusada pelo próprio irmão, que a violentava com a desculpa do consolo.

Será assim tão comum que os homens abusem das mulheres em momentos de doenças familiares?

Será assim tão comum que os homens gostem de se deitar sobre corpos fragilizados pela dor?

Que Virginia tenha falado sobre isso na década de 1930, não canso de repetir, é algo extraordinário. Que ela mal tenha sido ouvida ao longo das décadas que se passaram, é o nosso mundo.

Que nos culpemos por violências que sofremos, é consequência: “Não sou capaz de ocultar a minha opinião de que Vanessa terá tido alguma culpa; não é que, na realidade, ela pudesse ter feito alguma coisa para evitá-lo, mas por vezes penso que se Vanessa tivesse nascido com um ombro mais alto do que o outro, coxa, vesga, com uma grande verruga na face esquerda, tanto a vida dela quanto a minha poderiam ter sido diferentes, para melhor.”

Se eu, Tatiana, não me parecesse com um camafeu, se a minha beleza não fosse para homens mais velhos, cultos, a minha vida poderia ter sido diferente, para melhor.

E o que terão pensado as meninas com cabelo liso e franjinha? Que se tivessem o cabelo cacheado, sem franja, se não tivessem aquela beleza tão juvenil, a vida delas poderia ter sido diferente, para melhor?

Quanto mais eu leio histórias de mulheres, mais sentido vejo em escrevermos de forma pessoal. Aquilo que vivemos na intimidade, achando que só acontece com a gente, e por culpa nossa, acontece desde há muitos milênios com, se não todas, quase todas nós. Primeiro nos dizem para escrever em segredo sobre nós mesmas. Depois, quando decidimos mostrar para os outros o que escrevemos, nossos diários, nossas cartas, nossas narrativas em primeira pessoa não são consideradas literatura, ou são literatura menor. Só que nada fala mais de quem somos, de quem nos tornamos, coletivamente, do que as histórias de nossa vida.

Começo a ler A vergonha, da Annie Ernaux. O livro é sobre a sua primeira lembrança com data: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde. […] Foi no dia 15 de junho de 1952. A primeira data precisa e clara da minha infância”. Ela tem de onze para doze anos, e a primavera está terminando. As imagens e as poucas palavras daquele dia a perseguem vida afora, até o instante em que Annie consegue escrever sobre elas muitos anos depois. “Escrevo essa cena pela primeira vez. Até hoje me parecia impossível fazer isso, mesmo num diário. Como se fosse uma ação proibida que traria um castigo. Talvez o de não poder escrever mais nada depois.”

Não poder escrever nada depois: já pensei nisso algumas vezes. O que escrever depois de uma cena de assédio come tido pelo padrasto de uma menina? O que escrever depois da morte da mãe? O que escrever depois de um aborto?

Eu morreria se parasse de escrever depois?

Ou será que a escrita começa justamente nesse ponto no qual já não se pode escrever?

“Escrever.

Não posso.

Ninguém pode.

E se escreve.”

Marguerite Duras.

Na medida em que avancei na leitura, comecei a me perguntar: quantas mulheres carregarão a imagem dolorida de uma tarde da sua infância? Quantas meninas se tornaram mulheres num episódio de violência? Quantas mulheres ainda se encontram nas meninas que sofreram algum tipo de violência? Seria a escrita uma tentativa de arrancar a cena que existe dentro de nós, torná-la imagem para os outros, e assim pro faná-la, acabar com a sua aura sagrada?

Annie diz: “Mais tarde, cheguei a contar para alguns homens: ‘Meu pai tentou matar minha mãe pouco antes de eu fazer doze anos’. Ter vontade de dizer essa frase significava que eu estava apaixonada por eles. Todos se calaram depois de ouvi-la. Eu percebia que tinha cometido um erro, que eles não tinham condições de ouvir uma coisa dessas”.

Mais tarde, cheguei a contar para alguns homens: Meu padrasto me assediou. Ter vontade de dizer essa frase significava que eu estava apaixonada por eles. Quase todos se calaram depois de ouvi-la. Só percebi que tinha cometido um erro, que eles não tinham condições de ouvir uma coisa dessas, quando um namorado, vinte e sete anos mais velho, teve a coragem de me dizer aquilo que os outros deviam pensar.

Estávamos fazendo uma viagem romântica pelo Alentejo. Na jacuzzi de um belo hotel sediado num campo de oliveiras, contei-lhe o que havia se passado com o meu padrasto.

Eu tinha trinta anos, o assédio havia acontecido entre os meus dezessete e os meus vinte anos, para que falar disso na quele momento clichê-paraíso-do-amor-romântico-feliz?

Foi exatamente o que ele, um homem conhecido por dizer tudo frontalmente, me disse, Você não devia ter me contado isso. E me deu um conselho, Não o conte mais. Ele foi assertivo quando proferiu que nenhuma história de amor daria certo se eu contasse esse episódio. Os homens não querem saber essas coisas, ele assegurou. E nesse “os homens” havia ele, que estava muito contente com a nossa viagem pelo campo e achava que eu não deveria estragá-la com o passado.

Melhor Não Contar

  • Autora: Tatiana Salem Levy
  • Editora: Todavia (224 págs.; R$ 69,90; R$ 49,90 o e-book)

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