Todo mundo gosta de ler. Então por que temos tanto medo da leitura?


Proibições de livros, chatbots, guerra pedagógica: o significado da leitura tornou-se um campo minado; entenda a crise

Por A.O. Scott

NYT - Todo mundo adora ler. Em princípio, pelo menos. Ninguém é contra, é? Em meio às nossas muitas discordâncias, concordamos que as pessoas precisam aprender a ler, aprender a gostar de ler e ler muito. Mas borbulhando sob esse consenso insípido e otimista está um fervilhar de ansiedade individual e pânico coletivo. Estamos passando por uma crise de leitura.

Vejamos as evidências. Em todo o país, políticos republicanos e ativistas conservadores estão removendo livros das salas de aula e bibliotecas, para proteger as crianças da “doutrinação” de ideias supostamente esquerdistas sobre raça, gênero, sexualidade e história. Essas proibições ligaram um alerta generalizado entre os defensores das liberdades civis e ocasionaram um processo contra um conselho escolar da Flórida, movido pela PEN America e pela maior editora americana, a Penguin Random House.

A PEN também se juntou ao coro de vozes que condenam a religiosidade censuradora nas redes sociais e nos campi universitários, onde livros considerados problemáticos se tornaram alvo de repressão e repreensão. Embora a direita e a esquerda não sejam equivalentes em suas motivações, elas compartilham a ideia de que é importante proteger os leitores vulneráveis de ler as coisas erradas. Incluindo aí, em certo condado de Utah, a Bíblia, que foi retirada das prateleiras das salas de aula, como tantos outros livros, por causa de uma reclamação das famílias – ao que parece, com a intenção de expor o absurdo de tais proibições.

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Mas o verdadeiro problema talvez seja que as crianças não estão aprendendo a ler. À medida que as pontuações dos testes caíram – uma tendência exacerbada pelos transtornos da covid-19 –, ressurgiu um conflito latente sobre os métodos de ensino. Famílias, professores e administradores se rebelaram contra as abordagens progressistas amplamente utilizadas e exigiram mais ênfase na fonética. Em maio, David Banks, diretor das escolas públicas da cidade de Nova York, por muitos anos um baluarte do ensino de “toda a linguagem”, anunciou uma forte reviravolta em direção à fonética, uma grande vitória para o movimento da “ciência da leitura” e um baque para os devotos de métodos de “alfabetização equilibrada”.

Artigo analisa a crise da leitura Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

A crise da leitura também reverbera nos escalões superiores do sistema educacional. Enquanto os modelos de gestão corporativa e as zelosas legislaturas estaduais transformam a academia em um posto avançado da gig economy, as humanidades perdem seu brilho para os alunos de graduação. De acordo com relatórios da New Yorker e de outros lugares, cada vez menos alunos estão se formando em língua inglesa, e muitos dos que o fazem (junto com seus professores) se afastaram das obras canônicas da literatura rumo à escrita contemporânea e à cultura pop. Alguém ainda lê Paraíso Perdido? Você já leu?

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Além da esfera educacional, existem perigos tecnológicos novos e antigos: mecanismos de distração como o streaming (aquilo que costumávamos chamar de TV) e o TikTok; os alfabetos pós-alfabetizados dos emojis e abreviações; os encantos sombrios da inteligência artificial generativa. Enquanto maratonamos séries, rolamos telas e mandamos DM, os robôs, que estão cada vez mais escrevendo por nós, também podem estar lendo.

Há muito com o que se preocupar. Uma atividade essencialmente humana vem sendo terceirizada para máquinas que não se importam com fonética, política, beleza nem verdade. Um precioso domínio de liberdade imaginativa e intelectual está ameaçado por políticas autoritárias. A exposição às palavras erradas está corrompendo nossos filhos, que não estão nem aprendendo a decifrar as palavras certas. Nossa capacidade de atenção foi picotada e mercantilizada, vendida para plataformas e algoritmos. Estamos ocupados demais, preguiçosos demais, preocupados demais para nos perdermos nos livros.

Você pode argumentar que essas preocupações díspares não se juntam em uma única crise. Você pode apontar que nem todas as notícias são ruins. As vendas de livros impressos, depois de caírem no início da era do e-book, aumentaram na última década. O New York Times relatou que alguns jovens no Brooklyn estão deixando o smartphone de lado para ler Crime e Castigo.

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E as más notícias não são novas. Tiranos, filisteus, fanáticos religiosos e pais histéricos vêm banindo livros desde que qualquer um consegue se lembrar. A atual batalha entre os defensores da ciência da leitura e seus rivais pedagógicos é a última escaramuça de uma série de “guerras da leitura” que convulsionaram a educação americana durante a maior parte do século passado, sobretudo depois da publicação do best-seller de Rudolf Flesch, Why Johnny Can’t Read [algo como “Por que Joãozinho não consegue ler”, em tradução livre], de 1955.

A crise da leitura ocorre em muitos níveis e em todos os lugares Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

Cinema, rádio e televisão atraíram as gerações anteriores de crianças para longe da alegria dos livros. Nos campi universitários, o estudo da literatura tem sido combatido e sitiado há tanto tempo que a crônica das controvérsias se tornou um promissor subcampo acadêmico por si só.

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Mas o fato de a situação atual ter uma história não significa que ela não seja concreta. Quando o mesmo conjunto de problemas ressurge em cada geração, é porque tem alguma coisa acontecendo. E mesmo que isso pareça se sobrepor a outras áreas de disputa perpétua – desigualdade social, política de identidade, escolaridade, tecnologia – a crise da leitura não é simplesmente mais uma zona de combate da guerra cultural. Reflete uma profunda ambivalência sobre a própria leitura, uma rachadura nos fundamentos da consciência moderna.

Afinal, o que é ler?

E para que serve? Por que é algo a se discutir e com que se preocupar? Ler não é sinônimo de alfabetização, que é uma das habilidades necessárias à existência contemporânea. Também não é idêntico à literatura, que designa um corpo de obras escritas dotadas de um prestígio especial, embora às vezes indescritível.

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Ler é outra coisa: uma atividade cujo valor, embora vastamente proclamado, é difícil de especificar. Existe algum outro empreendimento humano tão cheio de contradições? A leitura deve nos ensinar quem somos e nos ajudar a esquecer de nós mesmos, encantar e desencantar, nos tornar mais cosmopolitas, mais introspectivos, mais empáticos e mais inteligentes.

É um ato privado, até íntimo, envolto em silêncio e solidão – e, ao mesmo tempo, um empreendimento social. É democrático e elitista, reconfortante e desafiador, algo que fazemos por si só e também como um meio para vários fins culturais, materiais e morais.

Quando eu era criança, os desenhos animados das manhãs de sábado às vezes eram interrompidos por anúncios de serviço público da Reading Is Fundamental, uma organização dedicada a levar livros às mãos de crianças carentes.

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O slogan do grupo era “Ler é divertido!” Divertido e fundamental: juntas, essas palavras expressam uma promessa utilitária e utópica – a fé de que o que gostamos de fazer se tornará o que precisamos fazer, de que nossos prazeres e responsabilidades serão uma coisa só. Não é só bom: faz bem para você.

Mas nada é assim tão simples.

A leitura é, fundamentalmente, tanto uma ferramenta quanto um brinquedo. É essencial para o progresso social, a cidadania democrática, o bom governo e o esclarecimento geral. É também o passatempo mais fantástico, sublime e prodigiosamente inútil já inventado.

Professores, políticos, críticos literários e outras autoridades investidas trabalham poderosamente para separar o joio que distrai do trigo edificante, para controlar, policiar, corrigir e encurralar as energias transgressoras que impulsionam o virar das páginas. A crise é o que acontece quando esses esforços são bem-sucedidos ou quando falham. Todo mundo gosta de ler e todo mundo tem medo da leitura.

A leitura é uma adição relativamente nova ao repertório humano – tem menos de 6 mil anos – e a ideia de que pode estar disponível a todos é uma inovação ainda mais recente.

História

Durante a maior parte de nossa história, nossas línguas foram faladas, nossas imaginações literárias foram orais. Nas sociedades antigas onde surgiu a escrita – na Mesopotâmia e na Mesoamérica, no Egito e na China – tanto suas aplicações quanto o acesso a ela eram restritos. A linguagem escrita, associada à ascensão dos estados e à expansão do comércio, era vantajosa para os negócios, útil para a administração do governo e parte integrante de algumas práticas religiosas. A escrita era um meio para legislar, manter registros e criar escrituras, e a leitura era domínio dos religiosos e burocratas. Eles realizavam ritos, recitavam poemas e faziam circular informações dentro de uma esfera restrita e privilegiada.

Ou seja, durante a maior parte da história, a alfabetização universal foi uma contradição em termos.

A palavra latina literatus designava um membro da elite erudita. Não existia um público leitor geral da maneira como o entendemos agora, mesmo que a capacidade humana geral para ler fosse evidente desde o início. Qualquer um poderia aprender a fazê-lo, mas os mecanismos de aprendizagem eram negados à maioria das pessoas segundo sua casta, ocupação ou gênero.

Antigamente, pais se preocupavam se os filhos estavam lendo o suficiente; hoje, a questão é ler demais  Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

De acordo com o animado e informativo A History of Reading (2003), de Steven Roger Fischer, “a Europa Ocidental iniciou a transição de uma sociedade oral para uma sociedade letrada no início da Idade Média, começando com os degraus mais altos da sociedade – aristocracia e clero – e finalmente incluindo todos os outros cerca de 1200 anos depois”.

Finalmente! Essa transformação ganhou força em 1455, quando a leitura encontrou seu app matador na prensa de Johann Gutenberg. Antes disso, a escrita fora feita em tábuas e códices, rolos de papiro e peles de animal ou livros encadernados que muitas vezes eram copiados à mão – objetos de circulação necessariamente limitada. A revolução da prensa catalisou um mercado global que floresce até hoje: os livros se tornaram mercadorias e os leitores viraram consumidores.

Para Fischer, assim como para muitos autores de macro-histórias sintéticas de longo alcance, a história da leitura é uma crônica de progresso, fábula quase mítica sobre um superpoder latente liberado para o bem da humanidade. “Se faculdades e poderes humanos extraordinários permanecem adormecidos até que uma inovação social os chame à vida”, escreve ele, “talvez isso possa ajudar a explicar o avanço constante da humanidade”. “A leitura”, conclui, “virou a carteirinha do clube da humanidade”.

É uma ideia bonita – e não quero questioná-la, nem mesmo observar que os clubes podem ser ruins e o progresso acabar estagnado ou revertido. Humanidade, porém, é uma proposição notoriamente retorcida e espinhosa. E pode ser que a história da leitura, especialmente na era pós-Gutenberg, revele exatamente como sempre fomos criaturas complicadas e contraditórias.

Por um lado, o modelo mais antigo e restritivo de alfabetização como prerrogativa da elite provou ser tenaz, mesmo quando, no início da Europa moderna, a leitura se espalhou entre a burguesia e depois desceu a escada social.

Ler demais ou não ler

Hoje em dia, pais, mães e outros adultos preocupados temem que os jovens não leiam ou não gostem de ler. Seus equivalentes nos séculos 18 e 19 costumavam se preocupar com o risco de os jovens gostarem demais de ler. Quando uma classe média ganhou força na Europa, reivindicando o lazer como uma de suas características definidoras, os livros estiveram entre os bens mais identificados com esse lazer, especialmente para as mulheres.

O romance, mais do que qualquer outro gênero, atendeu a esse mercado. Como qualquer outro desenvolvimento na cultura popular moderna, provocou certo mal-estar social. Na melhor das hipóteses, os romances eram uma fonte de diversão inofensiva e instrução moral moderada. Na pior das hipóteses, pelas penas dos escritores errados ou nas mãos dos leitores errados, eram convites ao vício e um vício em si mesmos.

Os romancistas da época não hesitaram em capitalizar essa ansiedade. Em A Abadia de Northanger, de Jane Austen, o entusiasmo de Catherine Morland pela ficção gótica gera constrangimento social e dúvida filosófica, já que ela desastrosamente (ainda que comicamente) confunde sua leitura com a realidade. Para Emma Bovary, a confusão entre as fantasias oferecidas pelos romances populares e a banalidade da vida provinciana chega a uma dimensão trágica. Sua leitura a empurra para a ruína.

O perigo não se restringia às mulheres. Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi responsabilizado por uma epidemia de suicídios românticos entre leitores impressionáveis. A América vitoriana, sempre preocupada com o risco de seus jovens estarem no caminho da perdição, classificou a leitura de romances, juntamente com a bebida e o jogo, entre as causas da dissipação e da debilidade.

Essa superstição agora parece comparativamente benigna, um capítulo curioso na interminável saga de ansiedade da classe média sobre o que as crianças estão fazendo. Mais importante – e mais revelador do poder desestabilizador da leitura – foi o medo da alfabetização entre as classes trabalhadoras na Europa e nos Estados Unidos.

“Ler, escrever e contar”, afirmou o teórico político iluminista Bernard Mandeville, eram “muito perniciosos para os pobres” porque a educação geraria inquietação e descontentamento. “Homens que devem permanecer e encerrar seus dias em uma situação de vida laboriosa, cansativa e dolorosa, quanto mais cedo forem colocados nela no início, mais pacientemente se submeterão a ela para sempre.”

Em nenhum lugar essa noção brutal foi perseguida com mais ferocidade do que no sul dos Estados Unidos. “Era ilegal, além de inseguro, ensinar uma pessoa escravizada a ler”, Frederick Douglass escreve em sua Narrativa da Vida, lembrando as advertências de um de seus senhores, cuja esposa havia começado a ensinar as letras ao jovem Frederick. Se ela persistisse, explicou o senhor, suas posses “se tornariam incontroláveis e sem valor para seu mestre. Quanto a si mesmo, não lhe faria bem, mas muito mal. Iria deixá-lo descontente e infeliz”.

Refletindo sobre essas palavras, Douglass escreve: “Agora entendia o que havia sido para mim uma dificuldade muito desconcertante – a saber, o poder do homem branco de escravizar o homem negro”. A partir desse momento, ele percebeu que “o caminho da escravidão para a liberdade” passava pela palavra impressa e “que educação e escravidão eram incompatíveis entre si”.

A Narrativa da vida de Frederick Douglass – a primeira das memórias de Douglass, publicada em 1845, quando milhões de americanos ainda estavam escravizados – é em certo sentido a história de origem de um herói, o relato de como um jovem suportou adversidades terríveis para se tornar um dos principais oradores e intelectuais de seu tempo. É também um tratado cuidadosamente embasado sobre a natureza da liberdade, resgatando da abstração essa ideia cintilante e fugidia, fundamentando-a na ética e na psicologia da experiência vivida.

No início dos anos 2000, meus filhos frequentaram uma escola pública de ensino fundamental adorável, diversa e progressista no Brooklyn. Ali, os métodos de instrução de leitura associados ao Teachers College da Universidade de Columbia estavam em plena floração. Os alunos eram encorajados a pensar em si mesmos como escritores e leitores – e a fazer desenhos de si mesmos absortos nessas atividades.

Havia “festas de publicação” com a presença das famílias quando se concluíam os projetos de redação. As salas eram mobiliadas com estantes baixas e bem abastecidas e degraus acarpetados onde os jovens leitores podiam se aconchegar com os “livros certos”, seleções que correspondiam aos seus interesses e níveis de proficiência.

O objetivo não era apenas ensinar competências básicas – na visão dos críticos da ciência da leitura, quase não se fazia isso – mas também, e mais urgentemente, incutir nas crianças uma familiaridade e conforto com os livros e o que estava dentro deles, algo que as tornaria bibliófilos ao longo da vida.

É difícil imaginar uma cena de alfabetização mais completamente antitética àquelas relembradas na Narrativa de Douglass. Não é por acaso. Um dos principais projetos da educação americana ao longo do último meio século foi desfazer o legado da opressão que negou a tantas pessoas o acesso total aos benefícios do aprendizado. As salas de aula de meus filhos incorporavam um ideal essencial desse projeto: institucionalizar o senso de liberdade que Douglass conquistou por meio de luta e resistência.

É uma visão nobre com um evidente paradoxo. Esforços para proteger as crianças – ou cidadãos, nesse caso – do terror da liberdade, para proteger sua leitura dentro de limites seguros de vocabulário e representação, sempre vão fracassar.

Força incontrolável

A leitura, como a democracia ou o desejo sexual, é uma força incontrolável e inerentemente desestabilizadora na vida humana. Muitos dos governos revolucionários do século 20 começaram com programas para promover a alfabetização em massa e, assim que tiveram sucesso, começaram a proibir livros, prender escritores e substituir literatura por propaganda política. Os currículos escolares adotam versões mais brandas e menos abertamente repressivas do mesmo impulso.

A escola, embora concebida com benevolência e administrada com humanidade, é um lugar de autoridade, onde as energias dos jovens são reguladas, sua imaginação podada e treinada para entrar em conformidade. Por isso, inevitavelmente provocará resistência, rebelião e recusa total por parte de seus pupilos. As escolas existem para sufocar a liberdade e também para inculcá-la, uma dialética que é a essência da verdadeira educação. A leitura, mais do que qualquer outra disciplina, é o motor desse processo, justamente porque foge ao controle dos responsáveis.

Bíblia foi proibida em estado americano Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A proibição da Bíblia em Utah (que agora está sob apelação) prova isso: testemunha tanto a lógica implacável e niilista da censura, que pode encontrar subversão em qualquer lugar, quanto o poder subversivo da leitura, que é o que desencadeia os censores, para começo de conversa. O Antigo e o Novo Testamento estão cheios de sexo, violência, magia, ódio étnico e igualitarismo radical. Sua história é uma lição sobre o poder e o perigo da própria leitura. Travaram-se guerras literais por causa da maneira como a Bíblia deveria ser interpretada. Seu tradutor inglês mais famoso foi executado por heresia.

Não há como limitar a leitura de um aluno aos livros certos ou garantir que ele os leia do jeito certo. O jeito certo pode ser o jeito errado: o jeito do terror, do descontentamento. Os apóstolos da leitura gostam de citar o aforismo de Franz Kafka: “O livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”. A violência da metáfora é temperada por sua implicação terapêutica. Citada com menos frequência é a frase anterior de Kafka: “O que precisamos são livros que nos atinjam como a mais dolorosa desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio”.

São esses os livros que você quer na sala de aula do seu filho? Ler desse jeito é ir contra a corrente, sentir-se em conflito, distante, só. As escolas existem para suprimir esses sentimentos, para embotar o machado e descongelar o mar com prudência. É um trabalho importante, mas é igualmente fundamental que esse trabalho seja subvertido, que todo o potencial destrutivo da leitura esteja ao alcance de mãos inocentes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

NYT - Todo mundo adora ler. Em princípio, pelo menos. Ninguém é contra, é? Em meio às nossas muitas discordâncias, concordamos que as pessoas precisam aprender a ler, aprender a gostar de ler e ler muito. Mas borbulhando sob esse consenso insípido e otimista está um fervilhar de ansiedade individual e pânico coletivo. Estamos passando por uma crise de leitura.

Vejamos as evidências. Em todo o país, políticos republicanos e ativistas conservadores estão removendo livros das salas de aula e bibliotecas, para proteger as crianças da “doutrinação” de ideias supostamente esquerdistas sobre raça, gênero, sexualidade e história. Essas proibições ligaram um alerta generalizado entre os defensores das liberdades civis e ocasionaram um processo contra um conselho escolar da Flórida, movido pela PEN America e pela maior editora americana, a Penguin Random House.

A PEN também se juntou ao coro de vozes que condenam a religiosidade censuradora nas redes sociais e nos campi universitários, onde livros considerados problemáticos se tornaram alvo de repressão e repreensão. Embora a direita e a esquerda não sejam equivalentes em suas motivações, elas compartilham a ideia de que é importante proteger os leitores vulneráveis de ler as coisas erradas. Incluindo aí, em certo condado de Utah, a Bíblia, que foi retirada das prateleiras das salas de aula, como tantos outros livros, por causa de uma reclamação das famílias – ao que parece, com a intenção de expor o absurdo de tais proibições.

Mas o verdadeiro problema talvez seja que as crianças não estão aprendendo a ler. À medida que as pontuações dos testes caíram – uma tendência exacerbada pelos transtornos da covid-19 –, ressurgiu um conflito latente sobre os métodos de ensino. Famílias, professores e administradores se rebelaram contra as abordagens progressistas amplamente utilizadas e exigiram mais ênfase na fonética. Em maio, David Banks, diretor das escolas públicas da cidade de Nova York, por muitos anos um baluarte do ensino de “toda a linguagem”, anunciou uma forte reviravolta em direção à fonética, uma grande vitória para o movimento da “ciência da leitura” e um baque para os devotos de métodos de “alfabetização equilibrada”.

Artigo analisa a crise da leitura Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

A crise da leitura também reverbera nos escalões superiores do sistema educacional. Enquanto os modelos de gestão corporativa e as zelosas legislaturas estaduais transformam a academia em um posto avançado da gig economy, as humanidades perdem seu brilho para os alunos de graduação. De acordo com relatórios da New Yorker e de outros lugares, cada vez menos alunos estão se formando em língua inglesa, e muitos dos que o fazem (junto com seus professores) se afastaram das obras canônicas da literatura rumo à escrita contemporânea e à cultura pop. Alguém ainda lê Paraíso Perdido? Você já leu?

Além da esfera educacional, existem perigos tecnológicos novos e antigos: mecanismos de distração como o streaming (aquilo que costumávamos chamar de TV) e o TikTok; os alfabetos pós-alfabetizados dos emojis e abreviações; os encantos sombrios da inteligência artificial generativa. Enquanto maratonamos séries, rolamos telas e mandamos DM, os robôs, que estão cada vez mais escrevendo por nós, também podem estar lendo.

Há muito com o que se preocupar. Uma atividade essencialmente humana vem sendo terceirizada para máquinas que não se importam com fonética, política, beleza nem verdade. Um precioso domínio de liberdade imaginativa e intelectual está ameaçado por políticas autoritárias. A exposição às palavras erradas está corrompendo nossos filhos, que não estão nem aprendendo a decifrar as palavras certas. Nossa capacidade de atenção foi picotada e mercantilizada, vendida para plataformas e algoritmos. Estamos ocupados demais, preguiçosos demais, preocupados demais para nos perdermos nos livros.

Você pode argumentar que essas preocupações díspares não se juntam em uma única crise. Você pode apontar que nem todas as notícias são ruins. As vendas de livros impressos, depois de caírem no início da era do e-book, aumentaram na última década. O New York Times relatou que alguns jovens no Brooklyn estão deixando o smartphone de lado para ler Crime e Castigo.

E as más notícias não são novas. Tiranos, filisteus, fanáticos religiosos e pais histéricos vêm banindo livros desde que qualquer um consegue se lembrar. A atual batalha entre os defensores da ciência da leitura e seus rivais pedagógicos é a última escaramuça de uma série de “guerras da leitura” que convulsionaram a educação americana durante a maior parte do século passado, sobretudo depois da publicação do best-seller de Rudolf Flesch, Why Johnny Can’t Read [algo como “Por que Joãozinho não consegue ler”, em tradução livre], de 1955.

A crise da leitura ocorre em muitos níveis e em todos os lugares Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

Cinema, rádio e televisão atraíram as gerações anteriores de crianças para longe da alegria dos livros. Nos campi universitários, o estudo da literatura tem sido combatido e sitiado há tanto tempo que a crônica das controvérsias se tornou um promissor subcampo acadêmico por si só.

Mas o fato de a situação atual ter uma história não significa que ela não seja concreta. Quando o mesmo conjunto de problemas ressurge em cada geração, é porque tem alguma coisa acontecendo. E mesmo que isso pareça se sobrepor a outras áreas de disputa perpétua – desigualdade social, política de identidade, escolaridade, tecnologia – a crise da leitura não é simplesmente mais uma zona de combate da guerra cultural. Reflete uma profunda ambivalência sobre a própria leitura, uma rachadura nos fundamentos da consciência moderna.

Afinal, o que é ler?

E para que serve? Por que é algo a se discutir e com que se preocupar? Ler não é sinônimo de alfabetização, que é uma das habilidades necessárias à existência contemporânea. Também não é idêntico à literatura, que designa um corpo de obras escritas dotadas de um prestígio especial, embora às vezes indescritível.

Ler é outra coisa: uma atividade cujo valor, embora vastamente proclamado, é difícil de especificar. Existe algum outro empreendimento humano tão cheio de contradições? A leitura deve nos ensinar quem somos e nos ajudar a esquecer de nós mesmos, encantar e desencantar, nos tornar mais cosmopolitas, mais introspectivos, mais empáticos e mais inteligentes.

É um ato privado, até íntimo, envolto em silêncio e solidão – e, ao mesmo tempo, um empreendimento social. É democrático e elitista, reconfortante e desafiador, algo que fazemos por si só e também como um meio para vários fins culturais, materiais e morais.

Quando eu era criança, os desenhos animados das manhãs de sábado às vezes eram interrompidos por anúncios de serviço público da Reading Is Fundamental, uma organização dedicada a levar livros às mãos de crianças carentes.

O slogan do grupo era “Ler é divertido!” Divertido e fundamental: juntas, essas palavras expressam uma promessa utilitária e utópica – a fé de que o que gostamos de fazer se tornará o que precisamos fazer, de que nossos prazeres e responsabilidades serão uma coisa só. Não é só bom: faz bem para você.

Mas nada é assim tão simples.

A leitura é, fundamentalmente, tanto uma ferramenta quanto um brinquedo. É essencial para o progresso social, a cidadania democrática, o bom governo e o esclarecimento geral. É também o passatempo mais fantástico, sublime e prodigiosamente inútil já inventado.

Professores, políticos, críticos literários e outras autoridades investidas trabalham poderosamente para separar o joio que distrai do trigo edificante, para controlar, policiar, corrigir e encurralar as energias transgressoras que impulsionam o virar das páginas. A crise é o que acontece quando esses esforços são bem-sucedidos ou quando falham. Todo mundo gosta de ler e todo mundo tem medo da leitura.

A leitura é uma adição relativamente nova ao repertório humano – tem menos de 6 mil anos – e a ideia de que pode estar disponível a todos é uma inovação ainda mais recente.

História

Durante a maior parte de nossa história, nossas línguas foram faladas, nossas imaginações literárias foram orais. Nas sociedades antigas onde surgiu a escrita – na Mesopotâmia e na Mesoamérica, no Egito e na China – tanto suas aplicações quanto o acesso a ela eram restritos. A linguagem escrita, associada à ascensão dos estados e à expansão do comércio, era vantajosa para os negócios, útil para a administração do governo e parte integrante de algumas práticas religiosas. A escrita era um meio para legislar, manter registros e criar escrituras, e a leitura era domínio dos religiosos e burocratas. Eles realizavam ritos, recitavam poemas e faziam circular informações dentro de uma esfera restrita e privilegiada.

Ou seja, durante a maior parte da história, a alfabetização universal foi uma contradição em termos.

A palavra latina literatus designava um membro da elite erudita. Não existia um público leitor geral da maneira como o entendemos agora, mesmo que a capacidade humana geral para ler fosse evidente desde o início. Qualquer um poderia aprender a fazê-lo, mas os mecanismos de aprendizagem eram negados à maioria das pessoas segundo sua casta, ocupação ou gênero.

Antigamente, pais se preocupavam se os filhos estavam lendo o suficiente; hoje, a questão é ler demais  Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

De acordo com o animado e informativo A History of Reading (2003), de Steven Roger Fischer, “a Europa Ocidental iniciou a transição de uma sociedade oral para uma sociedade letrada no início da Idade Média, começando com os degraus mais altos da sociedade – aristocracia e clero – e finalmente incluindo todos os outros cerca de 1200 anos depois”.

Finalmente! Essa transformação ganhou força em 1455, quando a leitura encontrou seu app matador na prensa de Johann Gutenberg. Antes disso, a escrita fora feita em tábuas e códices, rolos de papiro e peles de animal ou livros encadernados que muitas vezes eram copiados à mão – objetos de circulação necessariamente limitada. A revolução da prensa catalisou um mercado global que floresce até hoje: os livros se tornaram mercadorias e os leitores viraram consumidores.

Para Fischer, assim como para muitos autores de macro-histórias sintéticas de longo alcance, a história da leitura é uma crônica de progresso, fábula quase mítica sobre um superpoder latente liberado para o bem da humanidade. “Se faculdades e poderes humanos extraordinários permanecem adormecidos até que uma inovação social os chame à vida”, escreve ele, “talvez isso possa ajudar a explicar o avanço constante da humanidade”. “A leitura”, conclui, “virou a carteirinha do clube da humanidade”.

É uma ideia bonita – e não quero questioná-la, nem mesmo observar que os clubes podem ser ruins e o progresso acabar estagnado ou revertido. Humanidade, porém, é uma proposição notoriamente retorcida e espinhosa. E pode ser que a história da leitura, especialmente na era pós-Gutenberg, revele exatamente como sempre fomos criaturas complicadas e contraditórias.

Por um lado, o modelo mais antigo e restritivo de alfabetização como prerrogativa da elite provou ser tenaz, mesmo quando, no início da Europa moderna, a leitura se espalhou entre a burguesia e depois desceu a escada social.

Ler demais ou não ler

Hoje em dia, pais, mães e outros adultos preocupados temem que os jovens não leiam ou não gostem de ler. Seus equivalentes nos séculos 18 e 19 costumavam se preocupar com o risco de os jovens gostarem demais de ler. Quando uma classe média ganhou força na Europa, reivindicando o lazer como uma de suas características definidoras, os livros estiveram entre os bens mais identificados com esse lazer, especialmente para as mulheres.

O romance, mais do que qualquer outro gênero, atendeu a esse mercado. Como qualquer outro desenvolvimento na cultura popular moderna, provocou certo mal-estar social. Na melhor das hipóteses, os romances eram uma fonte de diversão inofensiva e instrução moral moderada. Na pior das hipóteses, pelas penas dos escritores errados ou nas mãos dos leitores errados, eram convites ao vício e um vício em si mesmos.

Os romancistas da época não hesitaram em capitalizar essa ansiedade. Em A Abadia de Northanger, de Jane Austen, o entusiasmo de Catherine Morland pela ficção gótica gera constrangimento social e dúvida filosófica, já que ela desastrosamente (ainda que comicamente) confunde sua leitura com a realidade. Para Emma Bovary, a confusão entre as fantasias oferecidas pelos romances populares e a banalidade da vida provinciana chega a uma dimensão trágica. Sua leitura a empurra para a ruína.

O perigo não se restringia às mulheres. Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi responsabilizado por uma epidemia de suicídios românticos entre leitores impressionáveis. A América vitoriana, sempre preocupada com o risco de seus jovens estarem no caminho da perdição, classificou a leitura de romances, juntamente com a bebida e o jogo, entre as causas da dissipação e da debilidade.

Essa superstição agora parece comparativamente benigna, um capítulo curioso na interminável saga de ansiedade da classe média sobre o que as crianças estão fazendo. Mais importante – e mais revelador do poder desestabilizador da leitura – foi o medo da alfabetização entre as classes trabalhadoras na Europa e nos Estados Unidos.

“Ler, escrever e contar”, afirmou o teórico político iluminista Bernard Mandeville, eram “muito perniciosos para os pobres” porque a educação geraria inquietação e descontentamento. “Homens que devem permanecer e encerrar seus dias em uma situação de vida laboriosa, cansativa e dolorosa, quanto mais cedo forem colocados nela no início, mais pacientemente se submeterão a ela para sempre.”

Em nenhum lugar essa noção brutal foi perseguida com mais ferocidade do que no sul dos Estados Unidos. “Era ilegal, além de inseguro, ensinar uma pessoa escravizada a ler”, Frederick Douglass escreve em sua Narrativa da Vida, lembrando as advertências de um de seus senhores, cuja esposa havia começado a ensinar as letras ao jovem Frederick. Se ela persistisse, explicou o senhor, suas posses “se tornariam incontroláveis e sem valor para seu mestre. Quanto a si mesmo, não lhe faria bem, mas muito mal. Iria deixá-lo descontente e infeliz”.

Refletindo sobre essas palavras, Douglass escreve: “Agora entendia o que havia sido para mim uma dificuldade muito desconcertante – a saber, o poder do homem branco de escravizar o homem negro”. A partir desse momento, ele percebeu que “o caminho da escravidão para a liberdade” passava pela palavra impressa e “que educação e escravidão eram incompatíveis entre si”.

A Narrativa da vida de Frederick Douglass – a primeira das memórias de Douglass, publicada em 1845, quando milhões de americanos ainda estavam escravizados – é em certo sentido a história de origem de um herói, o relato de como um jovem suportou adversidades terríveis para se tornar um dos principais oradores e intelectuais de seu tempo. É também um tratado cuidadosamente embasado sobre a natureza da liberdade, resgatando da abstração essa ideia cintilante e fugidia, fundamentando-a na ética e na psicologia da experiência vivida.

No início dos anos 2000, meus filhos frequentaram uma escola pública de ensino fundamental adorável, diversa e progressista no Brooklyn. Ali, os métodos de instrução de leitura associados ao Teachers College da Universidade de Columbia estavam em plena floração. Os alunos eram encorajados a pensar em si mesmos como escritores e leitores – e a fazer desenhos de si mesmos absortos nessas atividades.

Havia “festas de publicação” com a presença das famílias quando se concluíam os projetos de redação. As salas eram mobiliadas com estantes baixas e bem abastecidas e degraus acarpetados onde os jovens leitores podiam se aconchegar com os “livros certos”, seleções que correspondiam aos seus interesses e níveis de proficiência.

O objetivo não era apenas ensinar competências básicas – na visão dos críticos da ciência da leitura, quase não se fazia isso – mas também, e mais urgentemente, incutir nas crianças uma familiaridade e conforto com os livros e o que estava dentro deles, algo que as tornaria bibliófilos ao longo da vida.

É difícil imaginar uma cena de alfabetização mais completamente antitética àquelas relembradas na Narrativa de Douglass. Não é por acaso. Um dos principais projetos da educação americana ao longo do último meio século foi desfazer o legado da opressão que negou a tantas pessoas o acesso total aos benefícios do aprendizado. As salas de aula de meus filhos incorporavam um ideal essencial desse projeto: institucionalizar o senso de liberdade que Douglass conquistou por meio de luta e resistência.

É uma visão nobre com um evidente paradoxo. Esforços para proteger as crianças – ou cidadãos, nesse caso – do terror da liberdade, para proteger sua leitura dentro de limites seguros de vocabulário e representação, sempre vão fracassar.

Força incontrolável

A leitura, como a democracia ou o desejo sexual, é uma força incontrolável e inerentemente desestabilizadora na vida humana. Muitos dos governos revolucionários do século 20 começaram com programas para promover a alfabetização em massa e, assim que tiveram sucesso, começaram a proibir livros, prender escritores e substituir literatura por propaganda política. Os currículos escolares adotam versões mais brandas e menos abertamente repressivas do mesmo impulso.

A escola, embora concebida com benevolência e administrada com humanidade, é um lugar de autoridade, onde as energias dos jovens são reguladas, sua imaginação podada e treinada para entrar em conformidade. Por isso, inevitavelmente provocará resistência, rebelião e recusa total por parte de seus pupilos. As escolas existem para sufocar a liberdade e também para inculcá-la, uma dialética que é a essência da verdadeira educação. A leitura, mais do que qualquer outra disciplina, é o motor desse processo, justamente porque foge ao controle dos responsáveis.

Bíblia foi proibida em estado americano Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A proibição da Bíblia em Utah (que agora está sob apelação) prova isso: testemunha tanto a lógica implacável e niilista da censura, que pode encontrar subversão em qualquer lugar, quanto o poder subversivo da leitura, que é o que desencadeia os censores, para começo de conversa. O Antigo e o Novo Testamento estão cheios de sexo, violência, magia, ódio étnico e igualitarismo radical. Sua história é uma lição sobre o poder e o perigo da própria leitura. Travaram-se guerras literais por causa da maneira como a Bíblia deveria ser interpretada. Seu tradutor inglês mais famoso foi executado por heresia.

Não há como limitar a leitura de um aluno aos livros certos ou garantir que ele os leia do jeito certo. O jeito certo pode ser o jeito errado: o jeito do terror, do descontentamento. Os apóstolos da leitura gostam de citar o aforismo de Franz Kafka: “O livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”. A violência da metáfora é temperada por sua implicação terapêutica. Citada com menos frequência é a frase anterior de Kafka: “O que precisamos são livros que nos atinjam como a mais dolorosa desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio”.

São esses os livros que você quer na sala de aula do seu filho? Ler desse jeito é ir contra a corrente, sentir-se em conflito, distante, só. As escolas existem para suprimir esses sentimentos, para embotar o machado e descongelar o mar com prudência. É um trabalho importante, mas é igualmente fundamental que esse trabalho seja subvertido, que todo o potencial destrutivo da leitura esteja ao alcance de mãos inocentes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

NYT - Todo mundo adora ler. Em princípio, pelo menos. Ninguém é contra, é? Em meio às nossas muitas discordâncias, concordamos que as pessoas precisam aprender a ler, aprender a gostar de ler e ler muito. Mas borbulhando sob esse consenso insípido e otimista está um fervilhar de ansiedade individual e pânico coletivo. Estamos passando por uma crise de leitura.

Vejamos as evidências. Em todo o país, políticos republicanos e ativistas conservadores estão removendo livros das salas de aula e bibliotecas, para proteger as crianças da “doutrinação” de ideias supostamente esquerdistas sobre raça, gênero, sexualidade e história. Essas proibições ligaram um alerta generalizado entre os defensores das liberdades civis e ocasionaram um processo contra um conselho escolar da Flórida, movido pela PEN America e pela maior editora americana, a Penguin Random House.

A PEN também se juntou ao coro de vozes que condenam a religiosidade censuradora nas redes sociais e nos campi universitários, onde livros considerados problemáticos se tornaram alvo de repressão e repreensão. Embora a direita e a esquerda não sejam equivalentes em suas motivações, elas compartilham a ideia de que é importante proteger os leitores vulneráveis de ler as coisas erradas. Incluindo aí, em certo condado de Utah, a Bíblia, que foi retirada das prateleiras das salas de aula, como tantos outros livros, por causa de uma reclamação das famílias – ao que parece, com a intenção de expor o absurdo de tais proibições.

Mas o verdadeiro problema talvez seja que as crianças não estão aprendendo a ler. À medida que as pontuações dos testes caíram – uma tendência exacerbada pelos transtornos da covid-19 –, ressurgiu um conflito latente sobre os métodos de ensino. Famílias, professores e administradores se rebelaram contra as abordagens progressistas amplamente utilizadas e exigiram mais ênfase na fonética. Em maio, David Banks, diretor das escolas públicas da cidade de Nova York, por muitos anos um baluarte do ensino de “toda a linguagem”, anunciou uma forte reviravolta em direção à fonética, uma grande vitória para o movimento da “ciência da leitura” e um baque para os devotos de métodos de “alfabetização equilibrada”.

Artigo analisa a crise da leitura Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

A crise da leitura também reverbera nos escalões superiores do sistema educacional. Enquanto os modelos de gestão corporativa e as zelosas legislaturas estaduais transformam a academia em um posto avançado da gig economy, as humanidades perdem seu brilho para os alunos de graduação. De acordo com relatórios da New Yorker e de outros lugares, cada vez menos alunos estão se formando em língua inglesa, e muitos dos que o fazem (junto com seus professores) se afastaram das obras canônicas da literatura rumo à escrita contemporânea e à cultura pop. Alguém ainda lê Paraíso Perdido? Você já leu?

Além da esfera educacional, existem perigos tecnológicos novos e antigos: mecanismos de distração como o streaming (aquilo que costumávamos chamar de TV) e o TikTok; os alfabetos pós-alfabetizados dos emojis e abreviações; os encantos sombrios da inteligência artificial generativa. Enquanto maratonamos séries, rolamos telas e mandamos DM, os robôs, que estão cada vez mais escrevendo por nós, também podem estar lendo.

Há muito com o que se preocupar. Uma atividade essencialmente humana vem sendo terceirizada para máquinas que não se importam com fonética, política, beleza nem verdade. Um precioso domínio de liberdade imaginativa e intelectual está ameaçado por políticas autoritárias. A exposição às palavras erradas está corrompendo nossos filhos, que não estão nem aprendendo a decifrar as palavras certas. Nossa capacidade de atenção foi picotada e mercantilizada, vendida para plataformas e algoritmos. Estamos ocupados demais, preguiçosos demais, preocupados demais para nos perdermos nos livros.

Você pode argumentar que essas preocupações díspares não se juntam em uma única crise. Você pode apontar que nem todas as notícias são ruins. As vendas de livros impressos, depois de caírem no início da era do e-book, aumentaram na última década. O New York Times relatou que alguns jovens no Brooklyn estão deixando o smartphone de lado para ler Crime e Castigo.

E as más notícias não são novas. Tiranos, filisteus, fanáticos religiosos e pais histéricos vêm banindo livros desde que qualquer um consegue se lembrar. A atual batalha entre os defensores da ciência da leitura e seus rivais pedagógicos é a última escaramuça de uma série de “guerras da leitura” que convulsionaram a educação americana durante a maior parte do século passado, sobretudo depois da publicação do best-seller de Rudolf Flesch, Why Johnny Can’t Read [algo como “Por que Joãozinho não consegue ler”, em tradução livre], de 1955.

A crise da leitura ocorre em muitos níveis e em todos os lugares Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

Cinema, rádio e televisão atraíram as gerações anteriores de crianças para longe da alegria dos livros. Nos campi universitários, o estudo da literatura tem sido combatido e sitiado há tanto tempo que a crônica das controvérsias se tornou um promissor subcampo acadêmico por si só.

Mas o fato de a situação atual ter uma história não significa que ela não seja concreta. Quando o mesmo conjunto de problemas ressurge em cada geração, é porque tem alguma coisa acontecendo. E mesmo que isso pareça se sobrepor a outras áreas de disputa perpétua – desigualdade social, política de identidade, escolaridade, tecnologia – a crise da leitura não é simplesmente mais uma zona de combate da guerra cultural. Reflete uma profunda ambivalência sobre a própria leitura, uma rachadura nos fundamentos da consciência moderna.

Afinal, o que é ler?

E para que serve? Por que é algo a se discutir e com que se preocupar? Ler não é sinônimo de alfabetização, que é uma das habilidades necessárias à existência contemporânea. Também não é idêntico à literatura, que designa um corpo de obras escritas dotadas de um prestígio especial, embora às vezes indescritível.

Ler é outra coisa: uma atividade cujo valor, embora vastamente proclamado, é difícil de especificar. Existe algum outro empreendimento humano tão cheio de contradições? A leitura deve nos ensinar quem somos e nos ajudar a esquecer de nós mesmos, encantar e desencantar, nos tornar mais cosmopolitas, mais introspectivos, mais empáticos e mais inteligentes.

É um ato privado, até íntimo, envolto em silêncio e solidão – e, ao mesmo tempo, um empreendimento social. É democrático e elitista, reconfortante e desafiador, algo que fazemos por si só e também como um meio para vários fins culturais, materiais e morais.

Quando eu era criança, os desenhos animados das manhãs de sábado às vezes eram interrompidos por anúncios de serviço público da Reading Is Fundamental, uma organização dedicada a levar livros às mãos de crianças carentes.

O slogan do grupo era “Ler é divertido!” Divertido e fundamental: juntas, essas palavras expressam uma promessa utilitária e utópica – a fé de que o que gostamos de fazer se tornará o que precisamos fazer, de que nossos prazeres e responsabilidades serão uma coisa só. Não é só bom: faz bem para você.

Mas nada é assim tão simples.

A leitura é, fundamentalmente, tanto uma ferramenta quanto um brinquedo. É essencial para o progresso social, a cidadania democrática, o bom governo e o esclarecimento geral. É também o passatempo mais fantástico, sublime e prodigiosamente inútil já inventado.

Professores, políticos, críticos literários e outras autoridades investidas trabalham poderosamente para separar o joio que distrai do trigo edificante, para controlar, policiar, corrigir e encurralar as energias transgressoras que impulsionam o virar das páginas. A crise é o que acontece quando esses esforços são bem-sucedidos ou quando falham. Todo mundo gosta de ler e todo mundo tem medo da leitura.

A leitura é uma adição relativamente nova ao repertório humano – tem menos de 6 mil anos – e a ideia de que pode estar disponível a todos é uma inovação ainda mais recente.

História

Durante a maior parte de nossa história, nossas línguas foram faladas, nossas imaginações literárias foram orais. Nas sociedades antigas onde surgiu a escrita – na Mesopotâmia e na Mesoamérica, no Egito e na China – tanto suas aplicações quanto o acesso a ela eram restritos. A linguagem escrita, associada à ascensão dos estados e à expansão do comércio, era vantajosa para os negócios, útil para a administração do governo e parte integrante de algumas práticas religiosas. A escrita era um meio para legislar, manter registros e criar escrituras, e a leitura era domínio dos religiosos e burocratas. Eles realizavam ritos, recitavam poemas e faziam circular informações dentro de uma esfera restrita e privilegiada.

Ou seja, durante a maior parte da história, a alfabetização universal foi uma contradição em termos.

A palavra latina literatus designava um membro da elite erudita. Não existia um público leitor geral da maneira como o entendemos agora, mesmo que a capacidade humana geral para ler fosse evidente desde o início. Qualquer um poderia aprender a fazê-lo, mas os mecanismos de aprendizagem eram negados à maioria das pessoas segundo sua casta, ocupação ou gênero.

Antigamente, pais se preocupavam se os filhos estavam lendo o suficiente; hoje, a questão é ler demais  Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

De acordo com o animado e informativo A History of Reading (2003), de Steven Roger Fischer, “a Europa Ocidental iniciou a transição de uma sociedade oral para uma sociedade letrada no início da Idade Média, começando com os degraus mais altos da sociedade – aristocracia e clero – e finalmente incluindo todos os outros cerca de 1200 anos depois”.

Finalmente! Essa transformação ganhou força em 1455, quando a leitura encontrou seu app matador na prensa de Johann Gutenberg. Antes disso, a escrita fora feita em tábuas e códices, rolos de papiro e peles de animal ou livros encadernados que muitas vezes eram copiados à mão – objetos de circulação necessariamente limitada. A revolução da prensa catalisou um mercado global que floresce até hoje: os livros se tornaram mercadorias e os leitores viraram consumidores.

Para Fischer, assim como para muitos autores de macro-histórias sintéticas de longo alcance, a história da leitura é uma crônica de progresso, fábula quase mítica sobre um superpoder latente liberado para o bem da humanidade. “Se faculdades e poderes humanos extraordinários permanecem adormecidos até que uma inovação social os chame à vida”, escreve ele, “talvez isso possa ajudar a explicar o avanço constante da humanidade”. “A leitura”, conclui, “virou a carteirinha do clube da humanidade”.

É uma ideia bonita – e não quero questioná-la, nem mesmo observar que os clubes podem ser ruins e o progresso acabar estagnado ou revertido. Humanidade, porém, é uma proposição notoriamente retorcida e espinhosa. E pode ser que a história da leitura, especialmente na era pós-Gutenberg, revele exatamente como sempre fomos criaturas complicadas e contraditórias.

Por um lado, o modelo mais antigo e restritivo de alfabetização como prerrogativa da elite provou ser tenaz, mesmo quando, no início da Europa moderna, a leitura se espalhou entre a burguesia e depois desceu a escada social.

Ler demais ou não ler

Hoje em dia, pais, mães e outros adultos preocupados temem que os jovens não leiam ou não gostem de ler. Seus equivalentes nos séculos 18 e 19 costumavam se preocupar com o risco de os jovens gostarem demais de ler. Quando uma classe média ganhou força na Europa, reivindicando o lazer como uma de suas características definidoras, os livros estiveram entre os bens mais identificados com esse lazer, especialmente para as mulheres.

O romance, mais do que qualquer outro gênero, atendeu a esse mercado. Como qualquer outro desenvolvimento na cultura popular moderna, provocou certo mal-estar social. Na melhor das hipóteses, os romances eram uma fonte de diversão inofensiva e instrução moral moderada. Na pior das hipóteses, pelas penas dos escritores errados ou nas mãos dos leitores errados, eram convites ao vício e um vício em si mesmos.

Os romancistas da época não hesitaram em capitalizar essa ansiedade. Em A Abadia de Northanger, de Jane Austen, o entusiasmo de Catherine Morland pela ficção gótica gera constrangimento social e dúvida filosófica, já que ela desastrosamente (ainda que comicamente) confunde sua leitura com a realidade. Para Emma Bovary, a confusão entre as fantasias oferecidas pelos romances populares e a banalidade da vida provinciana chega a uma dimensão trágica. Sua leitura a empurra para a ruína.

O perigo não se restringia às mulheres. Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi responsabilizado por uma epidemia de suicídios românticos entre leitores impressionáveis. A América vitoriana, sempre preocupada com o risco de seus jovens estarem no caminho da perdição, classificou a leitura de romances, juntamente com a bebida e o jogo, entre as causas da dissipação e da debilidade.

Essa superstição agora parece comparativamente benigna, um capítulo curioso na interminável saga de ansiedade da classe média sobre o que as crianças estão fazendo. Mais importante – e mais revelador do poder desestabilizador da leitura – foi o medo da alfabetização entre as classes trabalhadoras na Europa e nos Estados Unidos.

“Ler, escrever e contar”, afirmou o teórico político iluminista Bernard Mandeville, eram “muito perniciosos para os pobres” porque a educação geraria inquietação e descontentamento. “Homens que devem permanecer e encerrar seus dias em uma situação de vida laboriosa, cansativa e dolorosa, quanto mais cedo forem colocados nela no início, mais pacientemente se submeterão a ela para sempre.”

Em nenhum lugar essa noção brutal foi perseguida com mais ferocidade do que no sul dos Estados Unidos. “Era ilegal, além de inseguro, ensinar uma pessoa escravizada a ler”, Frederick Douglass escreve em sua Narrativa da Vida, lembrando as advertências de um de seus senhores, cuja esposa havia começado a ensinar as letras ao jovem Frederick. Se ela persistisse, explicou o senhor, suas posses “se tornariam incontroláveis e sem valor para seu mestre. Quanto a si mesmo, não lhe faria bem, mas muito mal. Iria deixá-lo descontente e infeliz”.

Refletindo sobre essas palavras, Douglass escreve: “Agora entendia o que havia sido para mim uma dificuldade muito desconcertante – a saber, o poder do homem branco de escravizar o homem negro”. A partir desse momento, ele percebeu que “o caminho da escravidão para a liberdade” passava pela palavra impressa e “que educação e escravidão eram incompatíveis entre si”.

A Narrativa da vida de Frederick Douglass – a primeira das memórias de Douglass, publicada em 1845, quando milhões de americanos ainda estavam escravizados – é em certo sentido a história de origem de um herói, o relato de como um jovem suportou adversidades terríveis para se tornar um dos principais oradores e intelectuais de seu tempo. É também um tratado cuidadosamente embasado sobre a natureza da liberdade, resgatando da abstração essa ideia cintilante e fugidia, fundamentando-a na ética e na psicologia da experiência vivida.

No início dos anos 2000, meus filhos frequentaram uma escola pública de ensino fundamental adorável, diversa e progressista no Brooklyn. Ali, os métodos de instrução de leitura associados ao Teachers College da Universidade de Columbia estavam em plena floração. Os alunos eram encorajados a pensar em si mesmos como escritores e leitores – e a fazer desenhos de si mesmos absortos nessas atividades.

Havia “festas de publicação” com a presença das famílias quando se concluíam os projetos de redação. As salas eram mobiliadas com estantes baixas e bem abastecidas e degraus acarpetados onde os jovens leitores podiam se aconchegar com os “livros certos”, seleções que correspondiam aos seus interesses e níveis de proficiência.

O objetivo não era apenas ensinar competências básicas – na visão dos críticos da ciência da leitura, quase não se fazia isso – mas também, e mais urgentemente, incutir nas crianças uma familiaridade e conforto com os livros e o que estava dentro deles, algo que as tornaria bibliófilos ao longo da vida.

É difícil imaginar uma cena de alfabetização mais completamente antitética àquelas relembradas na Narrativa de Douglass. Não é por acaso. Um dos principais projetos da educação americana ao longo do último meio século foi desfazer o legado da opressão que negou a tantas pessoas o acesso total aos benefícios do aprendizado. As salas de aula de meus filhos incorporavam um ideal essencial desse projeto: institucionalizar o senso de liberdade que Douglass conquistou por meio de luta e resistência.

É uma visão nobre com um evidente paradoxo. Esforços para proteger as crianças – ou cidadãos, nesse caso – do terror da liberdade, para proteger sua leitura dentro de limites seguros de vocabulário e representação, sempre vão fracassar.

Força incontrolável

A leitura, como a democracia ou o desejo sexual, é uma força incontrolável e inerentemente desestabilizadora na vida humana. Muitos dos governos revolucionários do século 20 começaram com programas para promover a alfabetização em massa e, assim que tiveram sucesso, começaram a proibir livros, prender escritores e substituir literatura por propaganda política. Os currículos escolares adotam versões mais brandas e menos abertamente repressivas do mesmo impulso.

A escola, embora concebida com benevolência e administrada com humanidade, é um lugar de autoridade, onde as energias dos jovens são reguladas, sua imaginação podada e treinada para entrar em conformidade. Por isso, inevitavelmente provocará resistência, rebelião e recusa total por parte de seus pupilos. As escolas existem para sufocar a liberdade e também para inculcá-la, uma dialética que é a essência da verdadeira educação. A leitura, mais do que qualquer outra disciplina, é o motor desse processo, justamente porque foge ao controle dos responsáveis.

Bíblia foi proibida em estado americano Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A proibição da Bíblia em Utah (que agora está sob apelação) prova isso: testemunha tanto a lógica implacável e niilista da censura, que pode encontrar subversão em qualquer lugar, quanto o poder subversivo da leitura, que é o que desencadeia os censores, para começo de conversa. O Antigo e o Novo Testamento estão cheios de sexo, violência, magia, ódio étnico e igualitarismo radical. Sua história é uma lição sobre o poder e o perigo da própria leitura. Travaram-se guerras literais por causa da maneira como a Bíblia deveria ser interpretada. Seu tradutor inglês mais famoso foi executado por heresia.

Não há como limitar a leitura de um aluno aos livros certos ou garantir que ele os leia do jeito certo. O jeito certo pode ser o jeito errado: o jeito do terror, do descontentamento. Os apóstolos da leitura gostam de citar o aforismo de Franz Kafka: “O livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”. A violência da metáfora é temperada por sua implicação terapêutica. Citada com menos frequência é a frase anterior de Kafka: “O que precisamos são livros que nos atinjam como a mais dolorosa desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio”.

São esses os livros que você quer na sala de aula do seu filho? Ler desse jeito é ir contra a corrente, sentir-se em conflito, distante, só. As escolas existem para suprimir esses sentimentos, para embotar o machado e descongelar o mar com prudência. É um trabalho importante, mas é igualmente fundamental que esse trabalho seja subvertido, que todo o potencial destrutivo da leitura esteja ao alcance de mãos inocentes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

NYT - Todo mundo adora ler. Em princípio, pelo menos. Ninguém é contra, é? Em meio às nossas muitas discordâncias, concordamos que as pessoas precisam aprender a ler, aprender a gostar de ler e ler muito. Mas borbulhando sob esse consenso insípido e otimista está um fervilhar de ansiedade individual e pânico coletivo. Estamos passando por uma crise de leitura.

Vejamos as evidências. Em todo o país, políticos republicanos e ativistas conservadores estão removendo livros das salas de aula e bibliotecas, para proteger as crianças da “doutrinação” de ideias supostamente esquerdistas sobre raça, gênero, sexualidade e história. Essas proibições ligaram um alerta generalizado entre os defensores das liberdades civis e ocasionaram um processo contra um conselho escolar da Flórida, movido pela PEN America e pela maior editora americana, a Penguin Random House.

A PEN também se juntou ao coro de vozes que condenam a religiosidade censuradora nas redes sociais e nos campi universitários, onde livros considerados problemáticos se tornaram alvo de repressão e repreensão. Embora a direita e a esquerda não sejam equivalentes em suas motivações, elas compartilham a ideia de que é importante proteger os leitores vulneráveis de ler as coisas erradas. Incluindo aí, em certo condado de Utah, a Bíblia, que foi retirada das prateleiras das salas de aula, como tantos outros livros, por causa de uma reclamação das famílias – ao que parece, com a intenção de expor o absurdo de tais proibições.

Mas o verdadeiro problema talvez seja que as crianças não estão aprendendo a ler. À medida que as pontuações dos testes caíram – uma tendência exacerbada pelos transtornos da covid-19 –, ressurgiu um conflito latente sobre os métodos de ensino. Famílias, professores e administradores se rebelaram contra as abordagens progressistas amplamente utilizadas e exigiram mais ênfase na fonética. Em maio, David Banks, diretor das escolas públicas da cidade de Nova York, por muitos anos um baluarte do ensino de “toda a linguagem”, anunciou uma forte reviravolta em direção à fonética, uma grande vitória para o movimento da “ciência da leitura” e um baque para os devotos de métodos de “alfabetização equilibrada”.

Artigo analisa a crise da leitura Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

A crise da leitura também reverbera nos escalões superiores do sistema educacional. Enquanto os modelos de gestão corporativa e as zelosas legislaturas estaduais transformam a academia em um posto avançado da gig economy, as humanidades perdem seu brilho para os alunos de graduação. De acordo com relatórios da New Yorker e de outros lugares, cada vez menos alunos estão se formando em língua inglesa, e muitos dos que o fazem (junto com seus professores) se afastaram das obras canônicas da literatura rumo à escrita contemporânea e à cultura pop. Alguém ainda lê Paraíso Perdido? Você já leu?

Além da esfera educacional, existem perigos tecnológicos novos e antigos: mecanismos de distração como o streaming (aquilo que costumávamos chamar de TV) e o TikTok; os alfabetos pós-alfabetizados dos emojis e abreviações; os encantos sombrios da inteligência artificial generativa. Enquanto maratonamos séries, rolamos telas e mandamos DM, os robôs, que estão cada vez mais escrevendo por nós, também podem estar lendo.

Há muito com o que se preocupar. Uma atividade essencialmente humana vem sendo terceirizada para máquinas que não se importam com fonética, política, beleza nem verdade. Um precioso domínio de liberdade imaginativa e intelectual está ameaçado por políticas autoritárias. A exposição às palavras erradas está corrompendo nossos filhos, que não estão nem aprendendo a decifrar as palavras certas. Nossa capacidade de atenção foi picotada e mercantilizada, vendida para plataformas e algoritmos. Estamos ocupados demais, preguiçosos demais, preocupados demais para nos perdermos nos livros.

Você pode argumentar que essas preocupações díspares não se juntam em uma única crise. Você pode apontar que nem todas as notícias são ruins. As vendas de livros impressos, depois de caírem no início da era do e-book, aumentaram na última década. O New York Times relatou que alguns jovens no Brooklyn estão deixando o smartphone de lado para ler Crime e Castigo.

E as más notícias não são novas. Tiranos, filisteus, fanáticos religiosos e pais histéricos vêm banindo livros desde que qualquer um consegue se lembrar. A atual batalha entre os defensores da ciência da leitura e seus rivais pedagógicos é a última escaramuça de uma série de “guerras da leitura” que convulsionaram a educação americana durante a maior parte do século passado, sobretudo depois da publicação do best-seller de Rudolf Flesch, Why Johnny Can’t Read [algo como “Por que Joãozinho não consegue ler”, em tradução livre], de 1955.

A crise da leitura ocorre em muitos níveis e em todos os lugares Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

Cinema, rádio e televisão atraíram as gerações anteriores de crianças para longe da alegria dos livros. Nos campi universitários, o estudo da literatura tem sido combatido e sitiado há tanto tempo que a crônica das controvérsias se tornou um promissor subcampo acadêmico por si só.

Mas o fato de a situação atual ter uma história não significa que ela não seja concreta. Quando o mesmo conjunto de problemas ressurge em cada geração, é porque tem alguma coisa acontecendo. E mesmo que isso pareça se sobrepor a outras áreas de disputa perpétua – desigualdade social, política de identidade, escolaridade, tecnologia – a crise da leitura não é simplesmente mais uma zona de combate da guerra cultural. Reflete uma profunda ambivalência sobre a própria leitura, uma rachadura nos fundamentos da consciência moderna.

Afinal, o que é ler?

E para que serve? Por que é algo a se discutir e com que se preocupar? Ler não é sinônimo de alfabetização, que é uma das habilidades necessárias à existência contemporânea. Também não é idêntico à literatura, que designa um corpo de obras escritas dotadas de um prestígio especial, embora às vezes indescritível.

Ler é outra coisa: uma atividade cujo valor, embora vastamente proclamado, é difícil de especificar. Existe algum outro empreendimento humano tão cheio de contradições? A leitura deve nos ensinar quem somos e nos ajudar a esquecer de nós mesmos, encantar e desencantar, nos tornar mais cosmopolitas, mais introspectivos, mais empáticos e mais inteligentes.

É um ato privado, até íntimo, envolto em silêncio e solidão – e, ao mesmo tempo, um empreendimento social. É democrático e elitista, reconfortante e desafiador, algo que fazemos por si só e também como um meio para vários fins culturais, materiais e morais.

Quando eu era criança, os desenhos animados das manhãs de sábado às vezes eram interrompidos por anúncios de serviço público da Reading Is Fundamental, uma organização dedicada a levar livros às mãos de crianças carentes.

O slogan do grupo era “Ler é divertido!” Divertido e fundamental: juntas, essas palavras expressam uma promessa utilitária e utópica – a fé de que o que gostamos de fazer se tornará o que precisamos fazer, de que nossos prazeres e responsabilidades serão uma coisa só. Não é só bom: faz bem para você.

Mas nada é assim tão simples.

A leitura é, fundamentalmente, tanto uma ferramenta quanto um brinquedo. É essencial para o progresso social, a cidadania democrática, o bom governo e o esclarecimento geral. É também o passatempo mais fantástico, sublime e prodigiosamente inútil já inventado.

Professores, políticos, críticos literários e outras autoridades investidas trabalham poderosamente para separar o joio que distrai do trigo edificante, para controlar, policiar, corrigir e encurralar as energias transgressoras que impulsionam o virar das páginas. A crise é o que acontece quando esses esforços são bem-sucedidos ou quando falham. Todo mundo gosta de ler e todo mundo tem medo da leitura.

A leitura é uma adição relativamente nova ao repertório humano – tem menos de 6 mil anos – e a ideia de que pode estar disponível a todos é uma inovação ainda mais recente.

História

Durante a maior parte de nossa história, nossas línguas foram faladas, nossas imaginações literárias foram orais. Nas sociedades antigas onde surgiu a escrita – na Mesopotâmia e na Mesoamérica, no Egito e na China – tanto suas aplicações quanto o acesso a ela eram restritos. A linguagem escrita, associada à ascensão dos estados e à expansão do comércio, era vantajosa para os negócios, útil para a administração do governo e parte integrante de algumas práticas religiosas. A escrita era um meio para legislar, manter registros e criar escrituras, e a leitura era domínio dos religiosos e burocratas. Eles realizavam ritos, recitavam poemas e faziam circular informações dentro de uma esfera restrita e privilegiada.

Ou seja, durante a maior parte da história, a alfabetização universal foi uma contradição em termos.

A palavra latina literatus designava um membro da elite erudita. Não existia um público leitor geral da maneira como o entendemos agora, mesmo que a capacidade humana geral para ler fosse evidente desde o início. Qualquer um poderia aprender a fazê-lo, mas os mecanismos de aprendizagem eram negados à maioria das pessoas segundo sua casta, ocupação ou gênero.

Antigamente, pais se preocupavam se os filhos estavam lendo o suficiente; hoje, a questão é ler demais  Foto: Rodrigo Corral/The New York Times

De acordo com o animado e informativo A History of Reading (2003), de Steven Roger Fischer, “a Europa Ocidental iniciou a transição de uma sociedade oral para uma sociedade letrada no início da Idade Média, começando com os degraus mais altos da sociedade – aristocracia e clero – e finalmente incluindo todos os outros cerca de 1200 anos depois”.

Finalmente! Essa transformação ganhou força em 1455, quando a leitura encontrou seu app matador na prensa de Johann Gutenberg. Antes disso, a escrita fora feita em tábuas e códices, rolos de papiro e peles de animal ou livros encadernados que muitas vezes eram copiados à mão – objetos de circulação necessariamente limitada. A revolução da prensa catalisou um mercado global que floresce até hoje: os livros se tornaram mercadorias e os leitores viraram consumidores.

Para Fischer, assim como para muitos autores de macro-histórias sintéticas de longo alcance, a história da leitura é uma crônica de progresso, fábula quase mítica sobre um superpoder latente liberado para o bem da humanidade. “Se faculdades e poderes humanos extraordinários permanecem adormecidos até que uma inovação social os chame à vida”, escreve ele, “talvez isso possa ajudar a explicar o avanço constante da humanidade”. “A leitura”, conclui, “virou a carteirinha do clube da humanidade”.

É uma ideia bonita – e não quero questioná-la, nem mesmo observar que os clubes podem ser ruins e o progresso acabar estagnado ou revertido. Humanidade, porém, é uma proposição notoriamente retorcida e espinhosa. E pode ser que a história da leitura, especialmente na era pós-Gutenberg, revele exatamente como sempre fomos criaturas complicadas e contraditórias.

Por um lado, o modelo mais antigo e restritivo de alfabetização como prerrogativa da elite provou ser tenaz, mesmo quando, no início da Europa moderna, a leitura se espalhou entre a burguesia e depois desceu a escada social.

Ler demais ou não ler

Hoje em dia, pais, mães e outros adultos preocupados temem que os jovens não leiam ou não gostem de ler. Seus equivalentes nos séculos 18 e 19 costumavam se preocupar com o risco de os jovens gostarem demais de ler. Quando uma classe média ganhou força na Europa, reivindicando o lazer como uma de suas características definidoras, os livros estiveram entre os bens mais identificados com esse lazer, especialmente para as mulheres.

O romance, mais do que qualquer outro gênero, atendeu a esse mercado. Como qualquer outro desenvolvimento na cultura popular moderna, provocou certo mal-estar social. Na melhor das hipóteses, os romances eram uma fonte de diversão inofensiva e instrução moral moderada. Na pior das hipóteses, pelas penas dos escritores errados ou nas mãos dos leitores errados, eram convites ao vício e um vício em si mesmos.

Os romancistas da época não hesitaram em capitalizar essa ansiedade. Em A Abadia de Northanger, de Jane Austen, o entusiasmo de Catherine Morland pela ficção gótica gera constrangimento social e dúvida filosófica, já que ela desastrosamente (ainda que comicamente) confunde sua leitura com a realidade. Para Emma Bovary, a confusão entre as fantasias oferecidas pelos romances populares e a banalidade da vida provinciana chega a uma dimensão trágica. Sua leitura a empurra para a ruína.

O perigo não se restringia às mulheres. Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi responsabilizado por uma epidemia de suicídios românticos entre leitores impressionáveis. A América vitoriana, sempre preocupada com o risco de seus jovens estarem no caminho da perdição, classificou a leitura de romances, juntamente com a bebida e o jogo, entre as causas da dissipação e da debilidade.

Essa superstição agora parece comparativamente benigna, um capítulo curioso na interminável saga de ansiedade da classe média sobre o que as crianças estão fazendo. Mais importante – e mais revelador do poder desestabilizador da leitura – foi o medo da alfabetização entre as classes trabalhadoras na Europa e nos Estados Unidos.

“Ler, escrever e contar”, afirmou o teórico político iluminista Bernard Mandeville, eram “muito perniciosos para os pobres” porque a educação geraria inquietação e descontentamento. “Homens que devem permanecer e encerrar seus dias em uma situação de vida laboriosa, cansativa e dolorosa, quanto mais cedo forem colocados nela no início, mais pacientemente se submeterão a ela para sempre.”

Em nenhum lugar essa noção brutal foi perseguida com mais ferocidade do que no sul dos Estados Unidos. “Era ilegal, além de inseguro, ensinar uma pessoa escravizada a ler”, Frederick Douglass escreve em sua Narrativa da Vida, lembrando as advertências de um de seus senhores, cuja esposa havia começado a ensinar as letras ao jovem Frederick. Se ela persistisse, explicou o senhor, suas posses “se tornariam incontroláveis e sem valor para seu mestre. Quanto a si mesmo, não lhe faria bem, mas muito mal. Iria deixá-lo descontente e infeliz”.

Refletindo sobre essas palavras, Douglass escreve: “Agora entendia o que havia sido para mim uma dificuldade muito desconcertante – a saber, o poder do homem branco de escravizar o homem negro”. A partir desse momento, ele percebeu que “o caminho da escravidão para a liberdade” passava pela palavra impressa e “que educação e escravidão eram incompatíveis entre si”.

A Narrativa da vida de Frederick Douglass – a primeira das memórias de Douglass, publicada em 1845, quando milhões de americanos ainda estavam escravizados – é em certo sentido a história de origem de um herói, o relato de como um jovem suportou adversidades terríveis para se tornar um dos principais oradores e intelectuais de seu tempo. É também um tratado cuidadosamente embasado sobre a natureza da liberdade, resgatando da abstração essa ideia cintilante e fugidia, fundamentando-a na ética e na psicologia da experiência vivida.

No início dos anos 2000, meus filhos frequentaram uma escola pública de ensino fundamental adorável, diversa e progressista no Brooklyn. Ali, os métodos de instrução de leitura associados ao Teachers College da Universidade de Columbia estavam em plena floração. Os alunos eram encorajados a pensar em si mesmos como escritores e leitores – e a fazer desenhos de si mesmos absortos nessas atividades.

Havia “festas de publicação” com a presença das famílias quando se concluíam os projetos de redação. As salas eram mobiliadas com estantes baixas e bem abastecidas e degraus acarpetados onde os jovens leitores podiam se aconchegar com os “livros certos”, seleções que correspondiam aos seus interesses e níveis de proficiência.

O objetivo não era apenas ensinar competências básicas – na visão dos críticos da ciência da leitura, quase não se fazia isso – mas também, e mais urgentemente, incutir nas crianças uma familiaridade e conforto com os livros e o que estava dentro deles, algo que as tornaria bibliófilos ao longo da vida.

É difícil imaginar uma cena de alfabetização mais completamente antitética àquelas relembradas na Narrativa de Douglass. Não é por acaso. Um dos principais projetos da educação americana ao longo do último meio século foi desfazer o legado da opressão que negou a tantas pessoas o acesso total aos benefícios do aprendizado. As salas de aula de meus filhos incorporavam um ideal essencial desse projeto: institucionalizar o senso de liberdade que Douglass conquistou por meio de luta e resistência.

É uma visão nobre com um evidente paradoxo. Esforços para proteger as crianças – ou cidadãos, nesse caso – do terror da liberdade, para proteger sua leitura dentro de limites seguros de vocabulário e representação, sempre vão fracassar.

Força incontrolável

A leitura, como a democracia ou o desejo sexual, é uma força incontrolável e inerentemente desestabilizadora na vida humana. Muitos dos governos revolucionários do século 20 começaram com programas para promover a alfabetização em massa e, assim que tiveram sucesso, começaram a proibir livros, prender escritores e substituir literatura por propaganda política. Os currículos escolares adotam versões mais brandas e menos abertamente repressivas do mesmo impulso.

A escola, embora concebida com benevolência e administrada com humanidade, é um lugar de autoridade, onde as energias dos jovens são reguladas, sua imaginação podada e treinada para entrar em conformidade. Por isso, inevitavelmente provocará resistência, rebelião e recusa total por parte de seus pupilos. As escolas existem para sufocar a liberdade e também para inculcá-la, uma dialética que é a essência da verdadeira educação. A leitura, mais do que qualquer outra disciplina, é o motor desse processo, justamente porque foge ao controle dos responsáveis.

Bíblia foi proibida em estado americano Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A proibição da Bíblia em Utah (que agora está sob apelação) prova isso: testemunha tanto a lógica implacável e niilista da censura, que pode encontrar subversão em qualquer lugar, quanto o poder subversivo da leitura, que é o que desencadeia os censores, para começo de conversa. O Antigo e o Novo Testamento estão cheios de sexo, violência, magia, ódio étnico e igualitarismo radical. Sua história é uma lição sobre o poder e o perigo da própria leitura. Travaram-se guerras literais por causa da maneira como a Bíblia deveria ser interpretada. Seu tradutor inglês mais famoso foi executado por heresia.

Não há como limitar a leitura de um aluno aos livros certos ou garantir que ele os leia do jeito certo. O jeito certo pode ser o jeito errado: o jeito do terror, do descontentamento. Os apóstolos da leitura gostam de citar o aforismo de Franz Kafka: “O livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”. A violência da metáfora é temperada por sua implicação terapêutica. Citada com menos frequência é a frase anterior de Kafka: “O que precisamos são livros que nos atinjam como a mais dolorosa desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio”.

São esses os livros que você quer na sala de aula do seu filho? Ler desse jeito é ir contra a corrente, sentir-se em conflito, distante, só. As escolas existem para suprimir esses sentimentos, para embotar o machado e descongelar o mar com prudência. É um trabalho importante, mas é igualmente fundamental que esse trabalho seja subvertido, que todo o potencial destrutivo da leitura esteja ao alcance de mãos inocentes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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