Tony Bellotto é um raro artista capaz de se destacar em distintas áreas de produção criativa. Como guitarrista e compositor dos Titãs, desenvolveu sua faceta mais reconhecida. Na literatura, se estabeleceu como autor de thrillers policiais e virou referência para sumidades no gênero, como Raphael Montes.
Dessa vez sem Bellini, personagem que protagoniza boa parte de suas obras, Bellotto acaba de lançar o 11º livro, sem abrir mão do suspense e da riqueza temática presentes na saga do detetive paulistano.
Vento em Setembro, editado pela Companhia das Letras, transporta o leitor para os anos 70, em Assis, no interior de São Paulo, quando a orgia de iniciação sexual do filho mais novo de um magnata rural (Máximo Leonel, o ‘Barão da Soja’) termina em desgraça e propaga um mistério por gerações.
Em entrevista ao Estadão, por videoconferência, o titã se mostrou um libertário convicto. Para ele, a criação artística “parte da premissa da liberdade total” e independe de cor, credo ou classe social - parafraseando uma das mais belas baladas da banda paulista.
O artista de 64 anos também condenou a censura de livros no Brasil, caso de O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório; defendeu a legalização das drogas e do aborto; e ainda comentou sobre o interesse público em torno de seu casamento com a atriz Malu Mader.
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De que maneira sua carreira musical com os Titãs influenciou seu processo criativo na escrita?
Eu não vejo uma relação direta entre uma carreira e outra. Me parecem formas muito diferentes: a forma da criação musical, a maneira como trabalhamos coletivamente uma banda, e a criação literária, que é uma coisa muito solitária. Analisando agora, depois de tantos anos, já são 42 anos de Titãs e 30 escrevendo, que a partir do momento que eu comecei a escrever, em função de uma disciplina que a escrita exige, comecei a ficar um pouco mais regrado na composição e no trabalho da música. Então, de certa maneira, foi o inverso, a escrita me ajudou muito mais na carreira no sentido da importância da disciplina e da concentração. No começo da carreira, eu compunha de uma maneira meio caótica. Com a dinâmica do trabalho de escrita, apliquei esse mesmo jeito de trabalhar na música, na criação de canções, letras e riffs de guitarra de uma forma um pouco mais organizada.
Recentemente entrevistamos o Raphael Montes e ele citou você como uma das referências no gênero de thriller policial no Brasil. Como se sente?
Eu fico muito feliz e orgulhoso. O Raphael é um cara muito legal, o conheço há muito tempo. A primeira vez que eu o vi, e ainda não conhecia, foi em um evento literário em São Paulo. Ele apareceu e falou: ‘Ah, sou teu fã, eu escrevo também!’. E realmente ele tem uma carreira brilhante e contribui muito para a força desse gênero no Brasil atualmente. Acho que nos EUA, existiu um sucesso popular muito grande dessa literatura policial, desses livros de bolso e tal. Isso nunca ocorreu aqui no Brasil. Quando comecei a escrever ali nos anos 90, existia uma certa mística em cima da literatura policial. Era uma coisa mais de curtição, um pouco mais sofisticada, mas nunca foi um sucesso popular. É por isso que eu acho que não tem tanta gente trabalhando nesse formato. Sempre achei um formato muito interessante, isso tudo que o Edgar Allan Poe inventou, que é a história de detetive, a história de enigma. E mesmo a literatura fantástica, tipo o Stephen King, tudo isso foi criado pelo Edgar Allan Poe.
Como a história de ‘Vento em Setembro’ começou a tomar forma na sua cabeça?
Pelo menos para mim, um romance nunca nasce como uma história já definida e eu nunca sento para escrever sabendo exatamente tudo que vai acontecer. Às vezes é uma ideia um pouco vaga, uma situação. No caso do Vento em Setembro, tem essa frase inicial que abre o livro: ‘No dia em que seu filho caçula perderia a virgindade, Máximo Leonel organizou uma orgia na maior de suas fazendas’... Essa ideia eu tomei conhecimento ainda na minha adolescência, quando morei em Assis, no interior de São Paulo, onde havia um certo costume de alguns homens de fazer dessa iniciação sexual dos filhos uma espécie de celebração. Foi uma coisa que sempre me impressionou, me assustou e ficou reverberando na minha cabeça até hoje. Por outro lado, acho que é um livro que eu poderia resumir como uma busca de identidade. Não sei se tem a ver com o fato de eu estar fazendo psicanálise há alguns anos, ou com o fato de eu já estar com 64 anos. Me parece muito um livro no qual fui fazendo uma avaliação da minha própria vida e colocando de forma ficcional várias épocas, locais e situações imaginárias da minha própria vida.
Por que essas orgias te impactaram tanto? Você chegou a ser convidado para alguma delas?
Quando morei em Assis, meus pais eram professores universitários. Então eu tinha uma outra formação, por isso aquilo me soou tão chocante. Nunca participei, nem fui convidado, mas na minha adolescência eu ouvia falar dessas festas. E aquilo me chocava, porque tinha uma certa brutalidade, mais como uma imposição paterna. O livro também é uma reflexão sobre o machismo, reacionarismo, homofobia, opressão masculina, elementos muito fortes nessa década de 70, ainda mais aqui no Brasil sob uma ditadura militar. Hoje em dia vivemos numa democracia plena, mas no governo anterior estivemos muito próximos de uma volta à ditadura, algo terrível de se imaginar. Acho que tudo isso me inspirou a fazer o livro, e todas essas questões estão contidas ali.
A prostituição é uma tema presente no livro. Como foi escrever sobre essa atividade sem soar banal?
Pensei muito na criação da personagem Laura, que é uma prostituta. Essa é uma questão que, pelo menos para os homens da minha geração, sempre foi muito presente, porque era relativamente comum a iniciação sexual dos rapazes ser com prostitutas, porque ainda existia uma repressão sexual muito forte. Existia uma certa mistificação da figura da prostituta na cabeça dos meninos e dos adolescentes. E essa figura sempre esteve presente nos meus livros. No primeiro, Bellini e a Esfinge, uma história de detetive bem tradicional, a personagem central é uma prostituta que desaparece e um sujeito que é apaixonado por ela vai procurar o detetive para que o ajude a encontrar seu paradeiro. Até na Bíblia você tem a imagem da prostituta, da Maria Madalena. É uma figura enigmática na nossa cultura.
Uma frase que permeia o livro todo é ‘Deus está morto’, do Nietzsche. Eu queria saber como essa frase ressoa em você, até pelo fato de você ser ateu...
Eu acho o Nietzsche um cara muito atual. Ele era um homem realmente brilhante. A filosofia do Nietzsche é uma coisa que é necessária para iluminar esse nosso momento presente, porque hoje em dia temos uma tendência muito grande desse retorno às trevas, essa questão do uso religioso no poder, desde o ataque às Torres Gêmeas [em 11 de setembro DE 2001, em Nova York]. No Brasil, temos essas bancadas religiosas querendo atuar na educação e na política, querendo impor seus códigos morais para toda a população. Então, claro, como um cara ateu, sem religião e que questiona esse uso político e doutrinário da religião, é um assunto que me interessa. No livro, começam a aparecer essas pichações de ‘Deus está morto’ nas igrejas históricas de Ouro Preto e aquilo se comunica com o personagem narrador.
Tony Bellotto
Sobre a censura de livros no Brasil, é algo que te revolta?
Mais do que me revoltar, me violenta. A censura aos livros é a coisa mais banal do fascismo. Tanto é que sempre lembro daquela cena do nazismo em que os livros estavam sendo queimados. Então, a censura aos livros é o exemplo mais profundo da censura da expressão humana. E os livros estão aí para nos alertar. Você tem o 1984, do Orwell, que está sendo muito citado hoje em dia, porque é um livro de quase 100 anos de idade, mas que contém todas as preocupações e o medo dessa ascensão do totalitarismo e da extrema-direita. Vejo com muito desespero essa censura à expressão artística, à cultura, porque a minha geração viveu a ditadura. Não há por que aceitar uma centelha dessa vontade que muitas pessoas têm de retroceder para aquilo. Temos que combater isso.
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Ignácio de Loyola Brandão, colunista do ‘Estadão’, disse que há uma espécie de ‘ditadura’ na literatura: ‘Agora existe o chamado ‘lugar de fala’. Você só pode escrever sobre negros, trans ou homossexuais se for um. Se infringir, pode ser cancelado’. Você concorda?
Adoro o Ignácio, sou um fã incondicional, leitor dele desde a minha adolescência. É um amigo querido, um escritor brilhante. Acho que a criação literária tem que ter a premissa da liberdade total. Se eu for escrever só sobre o que eu sei, do que eu conheço, só poderia criar personagens idosos, brancos de classe média, homens... Eu iria dissertar sobre o quê? Problemas de próstata? (risos). E se eu quiser criar um personagem negro, mulher, trans, bom, mau, irreal ou absurdo, como o Kafka criou o Gregor Samsa [em A Metamorfose], que se transforma num inseto, ou o autor de O Silêncio dos Inocentes, que fez um vilão terrível que gosta de comer carne humana? Tudo é válido na criação artística. Ela não pode ser reprimida de nenhuma maneira. Porém, por outro lado, acho muito importantes as lutas das minorias que vêm sendo massacradas e oprimidas por séculos. No meu caso, escrevo com toda a liberdade, mas antes de dar o livro por completo, confiro se não cometi alguma gafe, porque, como um homem de 64 anos, branco, de classe média, eu posso ter cometido ali, sem querer, algum preconceito. Diferente de um preconceito que eu tenha colocado propositalmente, como eu coloco no personagem do Máximo Leonel. Ele é um cara racista, machista, homofóbico, e tenho que expressar isso na fala dele.
Você já foi preso no passado pelo porte de drogas. Concorda com a recente decisão do STF sobre descriminalização do porte pessoal da maconha?
Eu não só concordo, como acho que todas as drogas deviam ser descriminalizadas e legalizadas. Acho que isso está comprovado. Não é nenhuma questão ideológica, é uma questão até de economia. Os economistas mais avançados do mundo percebem que a melhor maneira de vencer o crime, o tráfico de drogas, é legalizando as drogas e transformando-as em artigos comuns, que pagam impostos, como o álcool. Se liberamos o álcool e o tabaco, por que não liberamos a maconha, a cocaína e as demais? Há muita hipocrisia, moralismo e preconceito religioso contra a legalização das drogas e também do aborto. É um absurdo o país criminalizar o aborto. A minha posição é muito libertária nesse ponto, a favor da legalização de coisas que as pessoas fazem. As pessoas não vão deixar de usar drogas nem vão deixar de fazer aborto. Então não adianta proibir, é preciso construir políticas, é preciso fazer informação. Por exemplo, a questão do aborto, que eu até prefiro chamar de gravidez indesejada, se você legaliza o aborto e faz campanhas de informação para evitar que meninas adolescentes engravidem sem querer, funciona muito melhor do que deixar tudo proibido e fingir que não existe.
Para finalizar, te incomoda o interesse público em torno do seu casamento com a Malu Mader? Ou vocês lidam bem com isso?
No geral, lidamos muito bem com isso, porque estamos juntos há 34 anos. Sempre foi muito claro pra mim e para Malu que uma premissa das profissões que escolhemos era essa, né? Se a tua profissão está dando certo, você está ficando famoso, isso naturalmente vai atrair a atenção das pessoas. É claro que existe um limite, tem hora que, realmente, as pessoas não respeitam a tua privacidade. Acontece às vezes, e quando acontece, damos um jeito de tirar de letra também, mas sem desrespeitar os fãs, porque o impulso do fã sempre é muito positivo - ele perde às vezes a noção porque está muito feliz. Lembro que muito no começo da carreira, eu estava no aeroporto de Congonhas, vi o Pelé atrair uma multidão e ele tentou atender todo mundo. Aquilo foi uma lição pra mim.
Vento em Setembro
- Autor: Tony Bellotto
- Editora: Companhia das Letras (296 págs.; R$87,79)