O ódio arranja maneiras de se manter em forma, anunciou a poeta polonesa Wislawa Szymborska no poema O Ódio, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Não se iguala aos outros sentimentos, fracotes e molengas. “Desde quando a fraternidade pode contar com a multidão? / Alguma vez a compaixão / chegou primeiro à meta? / Quantos a dúvida arrasta consigo? / Só ele, que sabe o que faz, arrasta.”
Fruto da certeza imaginária e refratário à dúvida e ao convívio, eis aqui um afeto frequentemente nomeado nas relações entre os brasileiros. Crimes de ódio estampam intolerâncias materializadas em agressões e mortes, enquanto corre frouxa a incitação na fala e nas redes sociais. De 2006 para cá, mais de 2 milhões de denúncias de discurso de ódio na internet foram contabilizadas pela ONG SaferNet Brasil. A leitura de comentários nas redes sociais e a escuta de gritos intolerantes propostos ou sancionados por lideranças políticas dão a tônica do poder de coesão e de mobilização do ódio. Odiar juntos tem função de comunhão, sob o pretexto dos tão almejados ordem e progresso. Como efeito, obtém-se uma alarmante corrosão da vivência comunitária e uma desarticulação de quaisquer possibilidades de estar junto ‘apesar de’.
Apesar das diferenças, apesar das discordâncias, apesar de não haver qualquer estima. O muro que “preserva” os iguais é o mesmo que confere o status de indesejado a quem fica de fora; o linchamento que elimina o alvo dá aos agressores o falso lastro da justiça. Neste contexto, a tensão social escala para níveis de pouca ou nenhuma conciliação, e o resultado é inevitavelmente de sofrimento, adverte o livro As Escritas do Ódio: Psicanálise e Política, lançado pela editora Escuta com organização de Miriam Debieux Rosa, Ana Maria Medeiros da Costa e Sérgio Prudente.
O ódio exibido cotidianamente enseja reflexões teórico-clínicas de caráter emergencial: qual antítese oferecer à estratégia de fragmentação coletiva colocada em curso em nosso país? A indagação percorre os 24 artigos do livro, assinados por 28 autores. A forma é resistência em si, já que a visão pluralista confronta o fechamento típico exercido pelo ódio.
Partindo da experiência subjetiva na clínica, de trabalhos externos aos consultórios e da observação de acontecimentos da História brasileira, como o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, os autores utilizam como vetor da investigação a escuta não somente da inscrição pessoal, mas também histórico-social do ódio.
Tomado como um problema individual de quem odeia e de quem é odiado, tal afeto torna-se uma abstração da intimidade, como se não coubesse a responsabilização daqueles que fazem a gestão do ódio no social. É nesta implicação que a prática clínica da psicanálise encontra a política e convoca a ética, sustentam os organizadores do livro.
A palavra carregada de ódio vem sendo exercida na escrita e no ato, sem mediação de suas consequências. Torna-se palavra pré-guerra, pró-combate, e o outro recebe um lugar de estrangeiro intolerável, alguém a ser exterminado. A depreciação e a desumanização tornam possíveis as práticas de segregação, racismo e sexismo e escancaram um luto ainda não realizado de tragédias como o nazismo e as ditaduras. O desamparo, o medo, a desilusão e a insegurança são encobertos pela assertividade bárbara de um afeto que se supõe solucionador.
Tempo e memória também recebem considerações reflexivas. A pressa estimulada pelo ódio obstrui o pensamento da hesitação e prioriza a impulsividade, o que fomenta convívios à queima-roupa no dia a dia dos brasileiros. Sob esta perspectiva, o decreto que amplia a posse de armas de fogo no Brasil ganha caráter ainda mais preocupante.
Com lamento se constata que o ódio tem sido moeda discursiva de alta cotação no país. Internet, imprensa e tecnologia ora protagonizam, ora oferecem carona às mensagens de discórdia, especialmente instrumentalizados pelas notícias falsas.
A difamação, aliás, é aposta frequente (e impune) de certos gestores públicos, enquanto as relações de poder público e privado encontram ainda mais subsídio para silenciamentos diversos.
Não é que o ódio não deva constar de nossas relações – tanto Freud como Lacan nos lembram que ele é constitutivo de cada sujeito. É sua potencialidade destrutiva que está em questão, sob a importante ponderação de que destruir alguém é destruir a si mesmo, já que não há eu sem o outro.
Aqui, Lacan comparece novamente ao apontar para o fato de que ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário”. O ódio, assim como a ignorância, é dirigido como a atingir destinatários específicos; mas cabe ressalvar que as consequências se pulverizam em um mundo compartilhado e encontram dor e perda, inclusive para os remetentes.
Amanda Mont’Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela PUC-SP