Livro aproxima Machado de Assis e Shakespeare


Autor brasileiro referencia bardo inglês em 273 ocasiões em seus contos, romances e textos

Por Gilberto Amendola
Retrato de William Shakespeare pintado em 1610 Foto: Folger Library/The New York Times

O primeiro contato de Machado de Assis com a obra de William Shakespeare é difícil de precisar. Pode ter sido durante suas visitas ao acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro; ou, quem sabe, assistindo a uma das peças encenadas pelo lendário ator João Caetano; ou ainda, lendo uma versão francesa pouco fiel aos escritos do bardo inglês. O fato é que, aos 20 anos, em 1859, Machado de Assis já se ocupava do trabalho shakespeariano em críticas teatrais publicadas no periódico O Espelho. “Não se comenta Shakespeare, admira-se”, vaticinou o escritor em um dos seus primeiros artigos.

A aproximação de Machado com a obra de Shakespeare inicia-se durante seu trabalho de crítico teatral e se esparrama por toda a sua produção – até o seu último livro, Memorial de Aires. Shakespeare é mencionado por Machado em cerca de 50 contos, 10 poemas, 3 peças de teatro e 100 textos (incluindo crônicas, críticas literárias e escritos diversos). No livro Machado & Shakespeare: Intertextualidades (Ed. Perspectiva), a doutora em Teoria da Literatura Adriana da Costa Teles lista 273 referências ao dramaturgo na obra machadiana, em que é possível destacar três clássicos: Otelo (nos romances), Hamlet (em textos críticos e jornalísticos) e Romeu e Julieta (nos contos).

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Curioso observar que o diálogo de Machado com a obra de Shakespeare nem sempre se dá de forma direta ou reverencial. Machado se utiliza dos estereótipos shakespearianos para construir e delimitar o caráter dos próprios personagens, traçando-os com ironia, humor e até mesmo como se fossem um espelho invertido das criações do inglês. Um bom exemplo dessa relação pode ser apreciada, segundo o trabalho de Adriana, se olharmos para as conexões entre Bentinho (Dom Casmurro) e Otelo – conexões essas que vão além do sentimento de ciúme que move os dois personagens. “Bentinho e Otelo se aproximam enquanto sujeitos que se desconhecem e que possuem uma autoimagem construída por situações e pessoas externas a eles”, escreve a autora.

O ator Philip Seymour Hoffman, morto em 2014, interpretou Iago na montagem de 'Otelo' de 2009 Foto: Sara Krulwich/The New York Times

Otelo fala de si como se falasse de um herói, se vê de longe. Sua fraqueza é, justamente, essa falsa imagem ou ainda como explicitou o critico literário Harold Bloom: “A tragédia de Otelo é precisamente o fato de Iago conhecê-lo melhor do que ele próprio se conhece”. Embora não compartilhe de nenhuma dimensão heroica, Bentinho também não conhece a si próprio – e também tem o seu destino traçado a partir do que os outros dizem ou pensam dele.

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Outro ponto de convergência/divergência entre Bentinho e Otelo, levantado pelo livro, envolve Capitu e Desdêmona. A personagem shakespeariana apaixona-se por Otelo devido às histórias que ele contava. O pastiche da mesma técnica de conquista aparece na relação de Bentinho com Capitu. Mas, diferente de Otelo, Bentinho não tem atos heroicos para narrar e contenta-se em discorrer sobre astronomia. Ao contrário de Desdêmona, Capitu sente-se apenas entediada com as “lições” de Bentinho.

Como observa Adriana em seu estudo, “o aproveitamento que Machado faz de Otelo assim como de toda sua carga trágica em Dom Casmurro é marcadamente irônico e a intertextualidade se afirma pela negação, pela subversão do trágico”. Romeu e Julieta, por exemplo, também é uma obra subvertida por Machado. Em vários contos em que Machado dialoga com Romeu e Julieta é clara a tentativa de usar o drama do jovem casal para desconstruir a ideia de um amor romântico, puro e transcendental.

No conto Francisca (1867), Machado faz referências diretas ao texto shakespeariano. Logo de início, o personagem Daniel despede-se da amada para aventurar-se em busca de fortuna. “Daniel despediu-se de Francisca e da musa. Houve, para ambas as entrevistas de despedida, a escada de seda e a calhandra de Romeu. A ambas deu ao moço lágrimas de verdadeira dor”.

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Como se percebe, Machado pinta Daniel e sobre Francisca com as tintas da tragédia que se abateu Romeu e Julieta. Estão presentes na narrativa de Machado todos os elementos que fizeram dos amantes de Verona aquilo que eles são. Encontramos no inicio do conto “a forte paixão”, “as circunstâncias que inviabilizam o amor” e a “separação inevitável”. Mas no espelho invertido de Machado, o casal formado por Daniel e Francisca arruma um jeito de acomodar a situação. Eis o trecho em que a imaturidade do casal shakespeariano é suplantada pela maturidade ou pelo cinismo machadiano: “Ambos compreendiam que, por mais dolorosa que lhes parecesse a situação em que os colocara o cálculo e o erro, era-lhes dever de honra curvar a cabeça e procurar na resignação passiva a consolação da mágoa e do martírio”.

Hamlet é outro que recebe uma abordagem irônica. Em um dos contos mais conhecidos de Machado, A Cartomante (1884), uma referência àquela que deve ser a citação mais conhecida do dramaturgo surge logo de saída: “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.” De novo, Machado cita Shakespeare para criar, no leitor, uma falsa expectativa, uma ansiedade pelo trágico ou pelo mistério que transcende o céu e a terra. Audacioso, Machado faz uso de Hamlet para afirmar o oposto. Na história de Rita e Camilo, o que se lê é um aviso de que entre o céu e a terra existem os fatos, que estão aí para serem lidos e interpretados. Nada mais machadiano do que isso.

Com o trabalho de Adriana da Costa Teles, os leitores de Machado de Assis são guiados para o mais incrível e eficiente método de apropriação/negação de uma obra. O exercício dialético do bruxo do Cosme Velho em relação aos escritos do bardo inglês oferecem um novo arco de possibilidades e de deleite estético. Como seria se Machado de Assis não tivesse se aprofundado na obra de Shakespeare? Que autor ele seria? Como seriam os seus personagens? Eis a questão que, felizmente, ninguém precisa se ocupar em responder.

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Capa do livro 'Shakespeare &Machado de Assis: Intertextualidades', de Adriana da Costa Teles Foto: Editora Perspectiva/Divulgação

Machado de Assis & Shakespeare: Intertextualidades Autora: Adriana da Costa TelesEditora: Perspectiva 296 páginas R$ 58

Retrato de William Shakespeare pintado em 1610 Foto: Folger Library/The New York Times

O primeiro contato de Machado de Assis com a obra de William Shakespeare é difícil de precisar. Pode ter sido durante suas visitas ao acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro; ou, quem sabe, assistindo a uma das peças encenadas pelo lendário ator João Caetano; ou ainda, lendo uma versão francesa pouco fiel aos escritos do bardo inglês. O fato é que, aos 20 anos, em 1859, Machado de Assis já se ocupava do trabalho shakespeariano em críticas teatrais publicadas no periódico O Espelho. “Não se comenta Shakespeare, admira-se”, vaticinou o escritor em um dos seus primeiros artigos.

A aproximação de Machado com a obra de Shakespeare inicia-se durante seu trabalho de crítico teatral e se esparrama por toda a sua produção – até o seu último livro, Memorial de Aires. Shakespeare é mencionado por Machado em cerca de 50 contos, 10 poemas, 3 peças de teatro e 100 textos (incluindo crônicas, críticas literárias e escritos diversos). No livro Machado & Shakespeare: Intertextualidades (Ed. Perspectiva), a doutora em Teoria da Literatura Adriana da Costa Teles lista 273 referências ao dramaturgo na obra machadiana, em que é possível destacar três clássicos: Otelo (nos romances), Hamlet (em textos críticos e jornalísticos) e Romeu e Julieta (nos contos).

Curioso observar que o diálogo de Machado com a obra de Shakespeare nem sempre se dá de forma direta ou reverencial. Machado se utiliza dos estereótipos shakespearianos para construir e delimitar o caráter dos próprios personagens, traçando-os com ironia, humor e até mesmo como se fossem um espelho invertido das criações do inglês. Um bom exemplo dessa relação pode ser apreciada, segundo o trabalho de Adriana, se olharmos para as conexões entre Bentinho (Dom Casmurro) e Otelo – conexões essas que vão além do sentimento de ciúme que move os dois personagens. “Bentinho e Otelo se aproximam enquanto sujeitos que se desconhecem e que possuem uma autoimagem construída por situações e pessoas externas a eles”, escreve a autora.

O ator Philip Seymour Hoffman, morto em 2014, interpretou Iago na montagem de 'Otelo' de 2009 Foto: Sara Krulwich/The New York Times

Otelo fala de si como se falasse de um herói, se vê de longe. Sua fraqueza é, justamente, essa falsa imagem ou ainda como explicitou o critico literário Harold Bloom: “A tragédia de Otelo é precisamente o fato de Iago conhecê-lo melhor do que ele próprio se conhece”. Embora não compartilhe de nenhuma dimensão heroica, Bentinho também não conhece a si próprio – e também tem o seu destino traçado a partir do que os outros dizem ou pensam dele.

Outro ponto de convergência/divergência entre Bentinho e Otelo, levantado pelo livro, envolve Capitu e Desdêmona. A personagem shakespeariana apaixona-se por Otelo devido às histórias que ele contava. O pastiche da mesma técnica de conquista aparece na relação de Bentinho com Capitu. Mas, diferente de Otelo, Bentinho não tem atos heroicos para narrar e contenta-se em discorrer sobre astronomia. Ao contrário de Desdêmona, Capitu sente-se apenas entediada com as “lições” de Bentinho.

Como observa Adriana em seu estudo, “o aproveitamento que Machado faz de Otelo assim como de toda sua carga trágica em Dom Casmurro é marcadamente irônico e a intertextualidade se afirma pela negação, pela subversão do trágico”. Romeu e Julieta, por exemplo, também é uma obra subvertida por Machado. Em vários contos em que Machado dialoga com Romeu e Julieta é clara a tentativa de usar o drama do jovem casal para desconstruir a ideia de um amor romântico, puro e transcendental.

No conto Francisca (1867), Machado faz referências diretas ao texto shakespeariano. Logo de início, o personagem Daniel despede-se da amada para aventurar-se em busca de fortuna. “Daniel despediu-se de Francisca e da musa. Houve, para ambas as entrevistas de despedida, a escada de seda e a calhandra de Romeu. A ambas deu ao moço lágrimas de verdadeira dor”.

Como se percebe, Machado pinta Daniel e sobre Francisca com as tintas da tragédia que se abateu Romeu e Julieta. Estão presentes na narrativa de Machado todos os elementos que fizeram dos amantes de Verona aquilo que eles são. Encontramos no inicio do conto “a forte paixão”, “as circunstâncias que inviabilizam o amor” e a “separação inevitável”. Mas no espelho invertido de Machado, o casal formado por Daniel e Francisca arruma um jeito de acomodar a situação. Eis o trecho em que a imaturidade do casal shakespeariano é suplantada pela maturidade ou pelo cinismo machadiano: “Ambos compreendiam que, por mais dolorosa que lhes parecesse a situação em que os colocara o cálculo e o erro, era-lhes dever de honra curvar a cabeça e procurar na resignação passiva a consolação da mágoa e do martírio”.

Hamlet é outro que recebe uma abordagem irônica. Em um dos contos mais conhecidos de Machado, A Cartomante (1884), uma referência àquela que deve ser a citação mais conhecida do dramaturgo surge logo de saída: “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.” De novo, Machado cita Shakespeare para criar, no leitor, uma falsa expectativa, uma ansiedade pelo trágico ou pelo mistério que transcende o céu e a terra. Audacioso, Machado faz uso de Hamlet para afirmar o oposto. Na história de Rita e Camilo, o que se lê é um aviso de que entre o céu e a terra existem os fatos, que estão aí para serem lidos e interpretados. Nada mais machadiano do que isso.

Com o trabalho de Adriana da Costa Teles, os leitores de Machado de Assis são guiados para o mais incrível e eficiente método de apropriação/negação de uma obra. O exercício dialético do bruxo do Cosme Velho em relação aos escritos do bardo inglês oferecem um novo arco de possibilidades e de deleite estético. Como seria se Machado de Assis não tivesse se aprofundado na obra de Shakespeare? Que autor ele seria? Como seriam os seus personagens? Eis a questão que, felizmente, ninguém precisa se ocupar em responder.

Capa do livro 'Shakespeare &Machado de Assis: Intertextualidades', de Adriana da Costa Teles Foto: Editora Perspectiva/Divulgação

Machado de Assis & Shakespeare: Intertextualidades Autora: Adriana da Costa TelesEditora: Perspectiva 296 páginas R$ 58

Retrato de William Shakespeare pintado em 1610 Foto: Folger Library/The New York Times

O primeiro contato de Machado de Assis com a obra de William Shakespeare é difícil de precisar. Pode ter sido durante suas visitas ao acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro; ou, quem sabe, assistindo a uma das peças encenadas pelo lendário ator João Caetano; ou ainda, lendo uma versão francesa pouco fiel aos escritos do bardo inglês. O fato é que, aos 20 anos, em 1859, Machado de Assis já se ocupava do trabalho shakespeariano em críticas teatrais publicadas no periódico O Espelho. “Não se comenta Shakespeare, admira-se”, vaticinou o escritor em um dos seus primeiros artigos.

A aproximação de Machado com a obra de Shakespeare inicia-se durante seu trabalho de crítico teatral e se esparrama por toda a sua produção – até o seu último livro, Memorial de Aires. Shakespeare é mencionado por Machado em cerca de 50 contos, 10 poemas, 3 peças de teatro e 100 textos (incluindo crônicas, críticas literárias e escritos diversos). No livro Machado & Shakespeare: Intertextualidades (Ed. Perspectiva), a doutora em Teoria da Literatura Adriana da Costa Teles lista 273 referências ao dramaturgo na obra machadiana, em que é possível destacar três clássicos: Otelo (nos romances), Hamlet (em textos críticos e jornalísticos) e Romeu e Julieta (nos contos).

Curioso observar que o diálogo de Machado com a obra de Shakespeare nem sempre se dá de forma direta ou reverencial. Machado se utiliza dos estereótipos shakespearianos para construir e delimitar o caráter dos próprios personagens, traçando-os com ironia, humor e até mesmo como se fossem um espelho invertido das criações do inglês. Um bom exemplo dessa relação pode ser apreciada, segundo o trabalho de Adriana, se olharmos para as conexões entre Bentinho (Dom Casmurro) e Otelo – conexões essas que vão além do sentimento de ciúme que move os dois personagens. “Bentinho e Otelo se aproximam enquanto sujeitos que se desconhecem e que possuem uma autoimagem construída por situações e pessoas externas a eles”, escreve a autora.

O ator Philip Seymour Hoffman, morto em 2014, interpretou Iago na montagem de 'Otelo' de 2009 Foto: Sara Krulwich/The New York Times

Otelo fala de si como se falasse de um herói, se vê de longe. Sua fraqueza é, justamente, essa falsa imagem ou ainda como explicitou o critico literário Harold Bloom: “A tragédia de Otelo é precisamente o fato de Iago conhecê-lo melhor do que ele próprio se conhece”. Embora não compartilhe de nenhuma dimensão heroica, Bentinho também não conhece a si próprio – e também tem o seu destino traçado a partir do que os outros dizem ou pensam dele.

Outro ponto de convergência/divergência entre Bentinho e Otelo, levantado pelo livro, envolve Capitu e Desdêmona. A personagem shakespeariana apaixona-se por Otelo devido às histórias que ele contava. O pastiche da mesma técnica de conquista aparece na relação de Bentinho com Capitu. Mas, diferente de Otelo, Bentinho não tem atos heroicos para narrar e contenta-se em discorrer sobre astronomia. Ao contrário de Desdêmona, Capitu sente-se apenas entediada com as “lições” de Bentinho.

Como observa Adriana em seu estudo, “o aproveitamento que Machado faz de Otelo assim como de toda sua carga trágica em Dom Casmurro é marcadamente irônico e a intertextualidade se afirma pela negação, pela subversão do trágico”. Romeu e Julieta, por exemplo, também é uma obra subvertida por Machado. Em vários contos em que Machado dialoga com Romeu e Julieta é clara a tentativa de usar o drama do jovem casal para desconstruir a ideia de um amor romântico, puro e transcendental.

No conto Francisca (1867), Machado faz referências diretas ao texto shakespeariano. Logo de início, o personagem Daniel despede-se da amada para aventurar-se em busca de fortuna. “Daniel despediu-se de Francisca e da musa. Houve, para ambas as entrevistas de despedida, a escada de seda e a calhandra de Romeu. A ambas deu ao moço lágrimas de verdadeira dor”.

Como se percebe, Machado pinta Daniel e sobre Francisca com as tintas da tragédia que se abateu Romeu e Julieta. Estão presentes na narrativa de Machado todos os elementos que fizeram dos amantes de Verona aquilo que eles são. Encontramos no inicio do conto “a forte paixão”, “as circunstâncias que inviabilizam o amor” e a “separação inevitável”. Mas no espelho invertido de Machado, o casal formado por Daniel e Francisca arruma um jeito de acomodar a situação. Eis o trecho em que a imaturidade do casal shakespeariano é suplantada pela maturidade ou pelo cinismo machadiano: “Ambos compreendiam que, por mais dolorosa que lhes parecesse a situação em que os colocara o cálculo e o erro, era-lhes dever de honra curvar a cabeça e procurar na resignação passiva a consolação da mágoa e do martírio”.

Hamlet é outro que recebe uma abordagem irônica. Em um dos contos mais conhecidos de Machado, A Cartomante (1884), uma referência àquela que deve ser a citação mais conhecida do dramaturgo surge logo de saída: “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.” De novo, Machado cita Shakespeare para criar, no leitor, uma falsa expectativa, uma ansiedade pelo trágico ou pelo mistério que transcende o céu e a terra. Audacioso, Machado faz uso de Hamlet para afirmar o oposto. Na história de Rita e Camilo, o que se lê é um aviso de que entre o céu e a terra existem os fatos, que estão aí para serem lidos e interpretados. Nada mais machadiano do que isso.

Com o trabalho de Adriana da Costa Teles, os leitores de Machado de Assis são guiados para o mais incrível e eficiente método de apropriação/negação de uma obra. O exercício dialético do bruxo do Cosme Velho em relação aos escritos do bardo inglês oferecem um novo arco de possibilidades e de deleite estético. Como seria se Machado de Assis não tivesse se aprofundado na obra de Shakespeare? Que autor ele seria? Como seriam os seus personagens? Eis a questão que, felizmente, ninguém precisa se ocupar em responder.

Capa do livro 'Shakespeare &Machado de Assis: Intertextualidades', de Adriana da Costa Teles Foto: Editora Perspectiva/Divulgação

Machado de Assis & Shakespeare: Intertextualidades Autora: Adriana da Costa TelesEditora: Perspectiva 296 páginas R$ 58

Retrato de William Shakespeare pintado em 1610 Foto: Folger Library/The New York Times

O primeiro contato de Machado de Assis com a obra de William Shakespeare é difícil de precisar. Pode ter sido durante suas visitas ao acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro; ou, quem sabe, assistindo a uma das peças encenadas pelo lendário ator João Caetano; ou ainda, lendo uma versão francesa pouco fiel aos escritos do bardo inglês. O fato é que, aos 20 anos, em 1859, Machado de Assis já se ocupava do trabalho shakespeariano em críticas teatrais publicadas no periódico O Espelho. “Não se comenta Shakespeare, admira-se”, vaticinou o escritor em um dos seus primeiros artigos.

A aproximação de Machado com a obra de Shakespeare inicia-se durante seu trabalho de crítico teatral e se esparrama por toda a sua produção – até o seu último livro, Memorial de Aires. Shakespeare é mencionado por Machado em cerca de 50 contos, 10 poemas, 3 peças de teatro e 100 textos (incluindo crônicas, críticas literárias e escritos diversos). No livro Machado & Shakespeare: Intertextualidades (Ed. Perspectiva), a doutora em Teoria da Literatura Adriana da Costa Teles lista 273 referências ao dramaturgo na obra machadiana, em que é possível destacar três clássicos: Otelo (nos romances), Hamlet (em textos críticos e jornalísticos) e Romeu e Julieta (nos contos).

Curioso observar que o diálogo de Machado com a obra de Shakespeare nem sempre se dá de forma direta ou reverencial. Machado se utiliza dos estereótipos shakespearianos para construir e delimitar o caráter dos próprios personagens, traçando-os com ironia, humor e até mesmo como se fossem um espelho invertido das criações do inglês. Um bom exemplo dessa relação pode ser apreciada, segundo o trabalho de Adriana, se olharmos para as conexões entre Bentinho (Dom Casmurro) e Otelo – conexões essas que vão além do sentimento de ciúme que move os dois personagens. “Bentinho e Otelo se aproximam enquanto sujeitos que se desconhecem e que possuem uma autoimagem construída por situações e pessoas externas a eles”, escreve a autora.

O ator Philip Seymour Hoffman, morto em 2014, interpretou Iago na montagem de 'Otelo' de 2009 Foto: Sara Krulwich/The New York Times

Otelo fala de si como se falasse de um herói, se vê de longe. Sua fraqueza é, justamente, essa falsa imagem ou ainda como explicitou o critico literário Harold Bloom: “A tragédia de Otelo é precisamente o fato de Iago conhecê-lo melhor do que ele próprio se conhece”. Embora não compartilhe de nenhuma dimensão heroica, Bentinho também não conhece a si próprio – e também tem o seu destino traçado a partir do que os outros dizem ou pensam dele.

Outro ponto de convergência/divergência entre Bentinho e Otelo, levantado pelo livro, envolve Capitu e Desdêmona. A personagem shakespeariana apaixona-se por Otelo devido às histórias que ele contava. O pastiche da mesma técnica de conquista aparece na relação de Bentinho com Capitu. Mas, diferente de Otelo, Bentinho não tem atos heroicos para narrar e contenta-se em discorrer sobre astronomia. Ao contrário de Desdêmona, Capitu sente-se apenas entediada com as “lições” de Bentinho.

Como observa Adriana em seu estudo, “o aproveitamento que Machado faz de Otelo assim como de toda sua carga trágica em Dom Casmurro é marcadamente irônico e a intertextualidade se afirma pela negação, pela subversão do trágico”. Romeu e Julieta, por exemplo, também é uma obra subvertida por Machado. Em vários contos em que Machado dialoga com Romeu e Julieta é clara a tentativa de usar o drama do jovem casal para desconstruir a ideia de um amor romântico, puro e transcendental.

No conto Francisca (1867), Machado faz referências diretas ao texto shakespeariano. Logo de início, o personagem Daniel despede-se da amada para aventurar-se em busca de fortuna. “Daniel despediu-se de Francisca e da musa. Houve, para ambas as entrevistas de despedida, a escada de seda e a calhandra de Romeu. A ambas deu ao moço lágrimas de verdadeira dor”.

Como se percebe, Machado pinta Daniel e sobre Francisca com as tintas da tragédia que se abateu Romeu e Julieta. Estão presentes na narrativa de Machado todos os elementos que fizeram dos amantes de Verona aquilo que eles são. Encontramos no inicio do conto “a forte paixão”, “as circunstâncias que inviabilizam o amor” e a “separação inevitável”. Mas no espelho invertido de Machado, o casal formado por Daniel e Francisca arruma um jeito de acomodar a situação. Eis o trecho em que a imaturidade do casal shakespeariano é suplantada pela maturidade ou pelo cinismo machadiano: “Ambos compreendiam que, por mais dolorosa que lhes parecesse a situação em que os colocara o cálculo e o erro, era-lhes dever de honra curvar a cabeça e procurar na resignação passiva a consolação da mágoa e do martírio”.

Hamlet é outro que recebe uma abordagem irônica. Em um dos contos mais conhecidos de Machado, A Cartomante (1884), uma referência àquela que deve ser a citação mais conhecida do dramaturgo surge logo de saída: “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.” De novo, Machado cita Shakespeare para criar, no leitor, uma falsa expectativa, uma ansiedade pelo trágico ou pelo mistério que transcende o céu e a terra. Audacioso, Machado faz uso de Hamlet para afirmar o oposto. Na história de Rita e Camilo, o que se lê é um aviso de que entre o céu e a terra existem os fatos, que estão aí para serem lidos e interpretados. Nada mais machadiano do que isso.

Com o trabalho de Adriana da Costa Teles, os leitores de Machado de Assis são guiados para o mais incrível e eficiente método de apropriação/negação de uma obra. O exercício dialético do bruxo do Cosme Velho em relação aos escritos do bardo inglês oferecem um novo arco de possibilidades e de deleite estético. Como seria se Machado de Assis não tivesse se aprofundado na obra de Shakespeare? Que autor ele seria? Como seriam os seus personagens? Eis a questão que, felizmente, ninguém precisa se ocupar em responder.

Capa do livro 'Shakespeare &Machado de Assis: Intertextualidades', de Adriana da Costa Teles Foto: Editora Perspectiva/Divulgação

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