Livro de Walter Benjamin compila cartas de Goethe, Nietzsche, Kant e outros


Obra organizada pelo filósofo e que agora chega ao Brasil buscava combater a ascensão do nazismo por meio de escritos de uma era humanista da Alemanha

Por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves

“Os últimos de uma época que tão logo não retornará”. A carta de Goethe a Karl Zelter ainda ressoa nos dias atuais. O desenvolvimento tecnológico e industrial do fim do século 18 parece não animá-lo. Para o autor de Fausto, era o tempo dos mais habilidosos, dos que se veem como superiores à massa, dos que desejam nada além do que riqueza e rapidez. Afora o desencanto evidente no trecho que destaquei, há também uma consciência do que une as pessoas, apesar de tudo. Uma consciência do que é vivo, mas não como substantivo, e sim como verbo. Contudo, a esse presente em que a vida (re)existe, o passado se lança para resgatar valores cada vez mais distorcidos e arruinados por uma época de trevas e de negação do que nos faz, verdadeiramente, humanos.

A ópera 'Benjamin, la Derniére Nuit', com libreto de Régis Debray, música de Michel Tabachnik e direção de Vincent Massup, deu vida a Walter Benjamin Foto: Ópera de Lyon

A frase de Goethe é citada no prefácio de Gente Alemã (Deutsche Menschen), coletânea de cartas escritas entre 1783 e 1883. Entre os missivistas, há grandes nomes, como o próprio Goethe, Kant, os Irmãos Grimm, Hölderlin e Nietzsche, e outros menos célebres, de religiosos a livreiros. Embora não sejam todos da mesma nacionalidade, compartilham a mesma língua. As cartas foram publicadas, inicialmente, no jornal Frankfurter Zeitung, entre abril de 1931 e maio de 1932. Em 1936, a reunião desses documentos foi lançada pela editora suíça Vita Nova, com organização, prefácio e comentários de um certo Detlef Holz, pseudônimo de Walter Benjamin, um dos filósofos mais importantes da modernidade. Este era seu livro secreto.  Finalmente chega ao Brasil sua primeira tradução em língua portuguesa, pela Editora Nave, numa primorosa edição bilíngue. Daniel Martineschen, professor adjunto de alemão da UFSC, é o tradutor do livro, que conta ainda com prefácio de Susana Scramim, professora titular de Teoria Literária da UFSC, e orelha de Márcio Seligmann-Silva, professor titular de Teoria Literária da Unicamp. Com projeto gráfico de Tina Merz, o volume integra a Coleção Translação, coordenada pelo editor Dennis Radünz. A tradução do título para Gente Alemã, ao mesmo tempo, soluciona aspectos linguísticos e preserva a estratégia estético-política de Benjamin em seu esforço de oposição ao conceito de “povo” (Volk), tomado pela propaganda nazista em seu empenho de manipulação psicológica das massas. Mas o que levou Walter Benjamin a organizar uma edição de cartas, escondendo seu nome, em plena consolidação do nazifascismo? No início do século 20, os epistolários eram comuns na Alemanha, dos quais Benjamin foi grande leitor. Contudo, eram invariavelmente carregados de ufanismo e de exaltação à germanidade, o que o filósofo buscava combater por meio da organização dos textos de Gente Alemã, escritos quando a cultura, o humanismo e a razão norteavam as pessoas e a relação entre elas, não a ideologia supremacista de um regime em ascensão, eivado de obscurantismo e de desejo de eliminação do outro. Através da fina membrana do ovo da serpente, como dito no filme de Ingmar Bergman, já era possível ver o réptil em formação. Em 1932, diante de uma Alemanha mergulhada em profunda crise política e econômica, o Partido Nazista obtém ampla maioria no Parlamento e um outrora inexpressivo Adolf Hitler angaria cada vez mais apoio e poder, tornando-se chanceler em 1933, ano em que a perseguição aos judeus e outras minorias se intensifica. Era o início do Terceiro Reich. Benjamin, então, parte para o exílio, de 1933 a 1936, passando por Itália, Dinamarca, Espanha e França. A fim de fugir da censura, Benjamin lança mão de recursos editoriais na capa, subvertendo seus pressupostos e levando, assim, o leitor a confrontar o vivido que pulsa nas cartas e a vivência do presente em que elas são transmitidas. O pseudônimo alemão, a tipografia gótica do título e a epígrafe que o sucede (“De honra sem fama/ De grandeza sem brilho/ De dignidade sem recompensa”) são elementos que não apenas servem como subterfúgio para escapar aos olhos do censor, mas contribuem para tornar a atualidade das cartas “ofuscantemente plausível”, tal como o filósofo se refere ao resgate da obra de Georg Büchner “às vésperas da Grande Guerra”. O livro não circulou por muito tempo. Em 1938, foi incluído no índex nazista. A atenção dada por Walter Benjamin ao gênero epistolar, portanto, vai além do mero interesse anedótico. Uma carta é capaz de expor os andaimes da criação, do pensamento e dos afetos dos missivistas. Por isso, como ressalta Susana Scramim, Benjamin “incorporava as cartas na prática de sua escrita e na mais imediata temporalidade da experiência cotidiana”, no momento em que a vida acontece. Gente Alemã se tornou, assim, uma das obras mais relevantes de sua trajetória intelectual, ao lado do livro Passagens, das teses Sobre o Conceito de História e das recordações de sua infância berlinense. A carta de Johann Wilhelm Ritter a Franz von Baader é exemplar nesse sentido, pois o remetente confessa que “procurava em todas as coisas apenas aquilo que fica, sem o que nenhum homem honrado pode viver”, considerando “uma grande recompensa ter ‘vivido’ e não meramente ter sabido”. Ou a de Annette von Droste-Hülshoff a Anton Matthias Sprickmann, para quem uma conversa ou leitura sobre lugares, pessoas e obras de arte distantes, nela, “beiram a realidade”.  Em tempos de distanciamento, não como a necessária proteção de si e do outro, mas como indiferença à dor alheia, as cartas em Gente Alemã surgem como clarão a nos fazer vislumbrar, ainda que por um instante, os contornos de humanidade submersa na escuridão, como expressa a missiva de Georg Forster à sua esposa, Therese Huber: “Certamente não creio que os inimigos venham a ter sucesso; mas no final a nação também se cansará de sempre se reerguer. Depende, portanto, de quem aguenta mais tempo. Já vejo com prazer o primeiro verde das árvores; isso me toca muito mais do que o branco das flores”. *É CRÍTICO LITERÁRIO E DOUTOR EM ESTUDOS DE LITERATURA PELA UFF.

“Os últimos de uma época que tão logo não retornará”. A carta de Goethe a Karl Zelter ainda ressoa nos dias atuais. O desenvolvimento tecnológico e industrial do fim do século 18 parece não animá-lo. Para o autor de Fausto, era o tempo dos mais habilidosos, dos que se veem como superiores à massa, dos que desejam nada além do que riqueza e rapidez. Afora o desencanto evidente no trecho que destaquei, há também uma consciência do que une as pessoas, apesar de tudo. Uma consciência do que é vivo, mas não como substantivo, e sim como verbo. Contudo, a esse presente em que a vida (re)existe, o passado se lança para resgatar valores cada vez mais distorcidos e arruinados por uma época de trevas e de negação do que nos faz, verdadeiramente, humanos.

A ópera 'Benjamin, la Derniére Nuit', com libreto de Régis Debray, música de Michel Tabachnik e direção de Vincent Massup, deu vida a Walter Benjamin Foto: Ópera de Lyon

A frase de Goethe é citada no prefácio de Gente Alemã (Deutsche Menschen), coletânea de cartas escritas entre 1783 e 1883. Entre os missivistas, há grandes nomes, como o próprio Goethe, Kant, os Irmãos Grimm, Hölderlin e Nietzsche, e outros menos célebres, de religiosos a livreiros. Embora não sejam todos da mesma nacionalidade, compartilham a mesma língua. As cartas foram publicadas, inicialmente, no jornal Frankfurter Zeitung, entre abril de 1931 e maio de 1932. Em 1936, a reunião desses documentos foi lançada pela editora suíça Vita Nova, com organização, prefácio e comentários de um certo Detlef Holz, pseudônimo de Walter Benjamin, um dos filósofos mais importantes da modernidade. Este era seu livro secreto.  Finalmente chega ao Brasil sua primeira tradução em língua portuguesa, pela Editora Nave, numa primorosa edição bilíngue. Daniel Martineschen, professor adjunto de alemão da UFSC, é o tradutor do livro, que conta ainda com prefácio de Susana Scramim, professora titular de Teoria Literária da UFSC, e orelha de Márcio Seligmann-Silva, professor titular de Teoria Literária da Unicamp. Com projeto gráfico de Tina Merz, o volume integra a Coleção Translação, coordenada pelo editor Dennis Radünz. A tradução do título para Gente Alemã, ao mesmo tempo, soluciona aspectos linguísticos e preserva a estratégia estético-política de Benjamin em seu esforço de oposição ao conceito de “povo” (Volk), tomado pela propaganda nazista em seu empenho de manipulação psicológica das massas. Mas o que levou Walter Benjamin a organizar uma edição de cartas, escondendo seu nome, em plena consolidação do nazifascismo? No início do século 20, os epistolários eram comuns na Alemanha, dos quais Benjamin foi grande leitor. Contudo, eram invariavelmente carregados de ufanismo e de exaltação à germanidade, o que o filósofo buscava combater por meio da organização dos textos de Gente Alemã, escritos quando a cultura, o humanismo e a razão norteavam as pessoas e a relação entre elas, não a ideologia supremacista de um regime em ascensão, eivado de obscurantismo e de desejo de eliminação do outro. Através da fina membrana do ovo da serpente, como dito no filme de Ingmar Bergman, já era possível ver o réptil em formação. Em 1932, diante de uma Alemanha mergulhada em profunda crise política e econômica, o Partido Nazista obtém ampla maioria no Parlamento e um outrora inexpressivo Adolf Hitler angaria cada vez mais apoio e poder, tornando-se chanceler em 1933, ano em que a perseguição aos judeus e outras minorias se intensifica. Era o início do Terceiro Reich. Benjamin, então, parte para o exílio, de 1933 a 1936, passando por Itália, Dinamarca, Espanha e França. A fim de fugir da censura, Benjamin lança mão de recursos editoriais na capa, subvertendo seus pressupostos e levando, assim, o leitor a confrontar o vivido que pulsa nas cartas e a vivência do presente em que elas são transmitidas. O pseudônimo alemão, a tipografia gótica do título e a epígrafe que o sucede (“De honra sem fama/ De grandeza sem brilho/ De dignidade sem recompensa”) são elementos que não apenas servem como subterfúgio para escapar aos olhos do censor, mas contribuem para tornar a atualidade das cartas “ofuscantemente plausível”, tal como o filósofo se refere ao resgate da obra de Georg Büchner “às vésperas da Grande Guerra”. O livro não circulou por muito tempo. Em 1938, foi incluído no índex nazista. A atenção dada por Walter Benjamin ao gênero epistolar, portanto, vai além do mero interesse anedótico. Uma carta é capaz de expor os andaimes da criação, do pensamento e dos afetos dos missivistas. Por isso, como ressalta Susana Scramim, Benjamin “incorporava as cartas na prática de sua escrita e na mais imediata temporalidade da experiência cotidiana”, no momento em que a vida acontece. Gente Alemã se tornou, assim, uma das obras mais relevantes de sua trajetória intelectual, ao lado do livro Passagens, das teses Sobre o Conceito de História e das recordações de sua infância berlinense. A carta de Johann Wilhelm Ritter a Franz von Baader é exemplar nesse sentido, pois o remetente confessa que “procurava em todas as coisas apenas aquilo que fica, sem o que nenhum homem honrado pode viver”, considerando “uma grande recompensa ter ‘vivido’ e não meramente ter sabido”. Ou a de Annette von Droste-Hülshoff a Anton Matthias Sprickmann, para quem uma conversa ou leitura sobre lugares, pessoas e obras de arte distantes, nela, “beiram a realidade”.  Em tempos de distanciamento, não como a necessária proteção de si e do outro, mas como indiferença à dor alheia, as cartas em Gente Alemã surgem como clarão a nos fazer vislumbrar, ainda que por um instante, os contornos de humanidade submersa na escuridão, como expressa a missiva de Georg Forster à sua esposa, Therese Huber: “Certamente não creio que os inimigos venham a ter sucesso; mas no final a nação também se cansará de sempre se reerguer. Depende, portanto, de quem aguenta mais tempo. Já vejo com prazer o primeiro verde das árvores; isso me toca muito mais do que o branco das flores”. *É CRÍTICO LITERÁRIO E DOUTOR EM ESTUDOS DE LITERATURA PELA UFF.

“Os últimos de uma época que tão logo não retornará”. A carta de Goethe a Karl Zelter ainda ressoa nos dias atuais. O desenvolvimento tecnológico e industrial do fim do século 18 parece não animá-lo. Para o autor de Fausto, era o tempo dos mais habilidosos, dos que se veem como superiores à massa, dos que desejam nada além do que riqueza e rapidez. Afora o desencanto evidente no trecho que destaquei, há também uma consciência do que une as pessoas, apesar de tudo. Uma consciência do que é vivo, mas não como substantivo, e sim como verbo. Contudo, a esse presente em que a vida (re)existe, o passado se lança para resgatar valores cada vez mais distorcidos e arruinados por uma época de trevas e de negação do que nos faz, verdadeiramente, humanos.

A ópera 'Benjamin, la Derniére Nuit', com libreto de Régis Debray, música de Michel Tabachnik e direção de Vincent Massup, deu vida a Walter Benjamin Foto: Ópera de Lyon

A frase de Goethe é citada no prefácio de Gente Alemã (Deutsche Menschen), coletânea de cartas escritas entre 1783 e 1883. Entre os missivistas, há grandes nomes, como o próprio Goethe, Kant, os Irmãos Grimm, Hölderlin e Nietzsche, e outros menos célebres, de religiosos a livreiros. Embora não sejam todos da mesma nacionalidade, compartilham a mesma língua. As cartas foram publicadas, inicialmente, no jornal Frankfurter Zeitung, entre abril de 1931 e maio de 1932. Em 1936, a reunião desses documentos foi lançada pela editora suíça Vita Nova, com organização, prefácio e comentários de um certo Detlef Holz, pseudônimo de Walter Benjamin, um dos filósofos mais importantes da modernidade. Este era seu livro secreto.  Finalmente chega ao Brasil sua primeira tradução em língua portuguesa, pela Editora Nave, numa primorosa edição bilíngue. Daniel Martineschen, professor adjunto de alemão da UFSC, é o tradutor do livro, que conta ainda com prefácio de Susana Scramim, professora titular de Teoria Literária da UFSC, e orelha de Márcio Seligmann-Silva, professor titular de Teoria Literária da Unicamp. Com projeto gráfico de Tina Merz, o volume integra a Coleção Translação, coordenada pelo editor Dennis Radünz. A tradução do título para Gente Alemã, ao mesmo tempo, soluciona aspectos linguísticos e preserva a estratégia estético-política de Benjamin em seu esforço de oposição ao conceito de “povo” (Volk), tomado pela propaganda nazista em seu empenho de manipulação psicológica das massas. Mas o que levou Walter Benjamin a organizar uma edição de cartas, escondendo seu nome, em plena consolidação do nazifascismo? No início do século 20, os epistolários eram comuns na Alemanha, dos quais Benjamin foi grande leitor. Contudo, eram invariavelmente carregados de ufanismo e de exaltação à germanidade, o que o filósofo buscava combater por meio da organização dos textos de Gente Alemã, escritos quando a cultura, o humanismo e a razão norteavam as pessoas e a relação entre elas, não a ideologia supremacista de um regime em ascensão, eivado de obscurantismo e de desejo de eliminação do outro. Através da fina membrana do ovo da serpente, como dito no filme de Ingmar Bergman, já era possível ver o réptil em formação. Em 1932, diante de uma Alemanha mergulhada em profunda crise política e econômica, o Partido Nazista obtém ampla maioria no Parlamento e um outrora inexpressivo Adolf Hitler angaria cada vez mais apoio e poder, tornando-se chanceler em 1933, ano em que a perseguição aos judeus e outras minorias se intensifica. Era o início do Terceiro Reich. Benjamin, então, parte para o exílio, de 1933 a 1936, passando por Itália, Dinamarca, Espanha e França. A fim de fugir da censura, Benjamin lança mão de recursos editoriais na capa, subvertendo seus pressupostos e levando, assim, o leitor a confrontar o vivido que pulsa nas cartas e a vivência do presente em que elas são transmitidas. O pseudônimo alemão, a tipografia gótica do título e a epígrafe que o sucede (“De honra sem fama/ De grandeza sem brilho/ De dignidade sem recompensa”) são elementos que não apenas servem como subterfúgio para escapar aos olhos do censor, mas contribuem para tornar a atualidade das cartas “ofuscantemente plausível”, tal como o filósofo se refere ao resgate da obra de Georg Büchner “às vésperas da Grande Guerra”. O livro não circulou por muito tempo. Em 1938, foi incluído no índex nazista. A atenção dada por Walter Benjamin ao gênero epistolar, portanto, vai além do mero interesse anedótico. Uma carta é capaz de expor os andaimes da criação, do pensamento e dos afetos dos missivistas. Por isso, como ressalta Susana Scramim, Benjamin “incorporava as cartas na prática de sua escrita e na mais imediata temporalidade da experiência cotidiana”, no momento em que a vida acontece. Gente Alemã se tornou, assim, uma das obras mais relevantes de sua trajetória intelectual, ao lado do livro Passagens, das teses Sobre o Conceito de História e das recordações de sua infância berlinense. A carta de Johann Wilhelm Ritter a Franz von Baader é exemplar nesse sentido, pois o remetente confessa que “procurava em todas as coisas apenas aquilo que fica, sem o que nenhum homem honrado pode viver”, considerando “uma grande recompensa ter ‘vivido’ e não meramente ter sabido”. Ou a de Annette von Droste-Hülshoff a Anton Matthias Sprickmann, para quem uma conversa ou leitura sobre lugares, pessoas e obras de arte distantes, nela, “beiram a realidade”.  Em tempos de distanciamento, não como a necessária proteção de si e do outro, mas como indiferença à dor alheia, as cartas em Gente Alemã surgem como clarão a nos fazer vislumbrar, ainda que por um instante, os contornos de humanidade submersa na escuridão, como expressa a missiva de Georg Forster à sua esposa, Therese Huber: “Certamente não creio que os inimigos venham a ter sucesso; mas no final a nação também se cansará de sempre se reerguer. Depende, portanto, de quem aguenta mais tempo. Já vejo com prazer o primeiro verde das árvores; isso me toca muito mais do que o branco das flores”. *É CRÍTICO LITERÁRIO E DOUTOR EM ESTUDOS DE LITERATURA PELA UFF.

“Os últimos de uma época que tão logo não retornará”. A carta de Goethe a Karl Zelter ainda ressoa nos dias atuais. O desenvolvimento tecnológico e industrial do fim do século 18 parece não animá-lo. Para o autor de Fausto, era o tempo dos mais habilidosos, dos que se veem como superiores à massa, dos que desejam nada além do que riqueza e rapidez. Afora o desencanto evidente no trecho que destaquei, há também uma consciência do que une as pessoas, apesar de tudo. Uma consciência do que é vivo, mas não como substantivo, e sim como verbo. Contudo, a esse presente em que a vida (re)existe, o passado se lança para resgatar valores cada vez mais distorcidos e arruinados por uma época de trevas e de negação do que nos faz, verdadeiramente, humanos.

A ópera 'Benjamin, la Derniére Nuit', com libreto de Régis Debray, música de Michel Tabachnik e direção de Vincent Massup, deu vida a Walter Benjamin Foto: Ópera de Lyon

A frase de Goethe é citada no prefácio de Gente Alemã (Deutsche Menschen), coletânea de cartas escritas entre 1783 e 1883. Entre os missivistas, há grandes nomes, como o próprio Goethe, Kant, os Irmãos Grimm, Hölderlin e Nietzsche, e outros menos célebres, de religiosos a livreiros. Embora não sejam todos da mesma nacionalidade, compartilham a mesma língua. As cartas foram publicadas, inicialmente, no jornal Frankfurter Zeitung, entre abril de 1931 e maio de 1932. Em 1936, a reunião desses documentos foi lançada pela editora suíça Vita Nova, com organização, prefácio e comentários de um certo Detlef Holz, pseudônimo de Walter Benjamin, um dos filósofos mais importantes da modernidade. Este era seu livro secreto.  Finalmente chega ao Brasil sua primeira tradução em língua portuguesa, pela Editora Nave, numa primorosa edição bilíngue. Daniel Martineschen, professor adjunto de alemão da UFSC, é o tradutor do livro, que conta ainda com prefácio de Susana Scramim, professora titular de Teoria Literária da UFSC, e orelha de Márcio Seligmann-Silva, professor titular de Teoria Literária da Unicamp. Com projeto gráfico de Tina Merz, o volume integra a Coleção Translação, coordenada pelo editor Dennis Radünz. A tradução do título para Gente Alemã, ao mesmo tempo, soluciona aspectos linguísticos e preserva a estratégia estético-política de Benjamin em seu esforço de oposição ao conceito de “povo” (Volk), tomado pela propaganda nazista em seu empenho de manipulação psicológica das massas. Mas o que levou Walter Benjamin a organizar uma edição de cartas, escondendo seu nome, em plena consolidação do nazifascismo? No início do século 20, os epistolários eram comuns na Alemanha, dos quais Benjamin foi grande leitor. Contudo, eram invariavelmente carregados de ufanismo e de exaltação à germanidade, o que o filósofo buscava combater por meio da organização dos textos de Gente Alemã, escritos quando a cultura, o humanismo e a razão norteavam as pessoas e a relação entre elas, não a ideologia supremacista de um regime em ascensão, eivado de obscurantismo e de desejo de eliminação do outro. Através da fina membrana do ovo da serpente, como dito no filme de Ingmar Bergman, já era possível ver o réptil em formação. Em 1932, diante de uma Alemanha mergulhada em profunda crise política e econômica, o Partido Nazista obtém ampla maioria no Parlamento e um outrora inexpressivo Adolf Hitler angaria cada vez mais apoio e poder, tornando-se chanceler em 1933, ano em que a perseguição aos judeus e outras minorias se intensifica. Era o início do Terceiro Reich. Benjamin, então, parte para o exílio, de 1933 a 1936, passando por Itália, Dinamarca, Espanha e França. A fim de fugir da censura, Benjamin lança mão de recursos editoriais na capa, subvertendo seus pressupostos e levando, assim, o leitor a confrontar o vivido que pulsa nas cartas e a vivência do presente em que elas são transmitidas. O pseudônimo alemão, a tipografia gótica do título e a epígrafe que o sucede (“De honra sem fama/ De grandeza sem brilho/ De dignidade sem recompensa”) são elementos que não apenas servem como subterfúgio para escapar aos olhos do censor, mas contribuem para tornar a atualidade das cartas “ofuscantemente plausível”, tal como o filósofo se refere ao resgate da obra de Georg Büchner “às vésperas da Grande Guerra”. O livro não circulou por muito tempo. Em 1938, foi incluído no índex nazista. A atenção dada por Walter Benjamin ao gênero epistolar, portanto, vai além do mero interesse anedótico. Uma carta é capaz de expor os andaimes da criação, do pensamento e dos afetos dos missivistas. Por isso, como ressalta Susana Scramim, Benjamin “incorporava as cartas na prática de sua escrita e na mais imediata temporalidade da experiência cotidiana”, no momento em que a vida acontece. Gente Alemã se tornou, assim, uma das obras mais relevantes de sua trajetória intelectual, ao lado do livro Passagens, das teses Sobre o Conceito de História e das recordações de sua infância berlinense. A carta de Johann Wilhelm Ritter a Franz von Baader é exemplar nesse sentido, pois o remetente confessa que “procurava em todas as coisas apenas aquilo que fica, sem o que nenhum homem honrado pode viver”, considerando “uma grande recompensa ter ‘vivido’ e não meramente ter sabido”. Ou a de Annette von Droste-Hülshoff a Anton Matthias Sprickmann, para quem uma conversa ou leitura sobre lugares, pessoas e obras de arte distantes, nela, “beiram a realidade”.  Em tempos de distanciamento, não como a necessária proteção de si e do outro, mas como indiferença à dor alheia, as cartas em Gente Alemã surgem como clarão a nos fazer vislumbrar, ainda que por um instante, os contornos de humanidade submersa na escuridão, como expressa a missiva de Georg Forster à sua esposa, Therese Huber: “Certamente não creio que os inimigos venham a ter sucesso; mas no final a nação também se cansará de sempre se reerguer. Depende, portanto, de quem aguenta mais tempo. Já vejo com prazer o primeiro verde das árvores; isso me toca muito mais do que o branco das flores”. *É CRÍTICO LITERÁRIO E DOUTOR EM ESTUDOS DE LITERATURA PELA UFF.

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