Uma das expressões mais pluralistas da existência humana talvez seja o sofrimento. Sofre-se pela morte de alguém, por um amor que foi embora, pela perda de um sonho, por medo da solidão, por tédio, por um projeto malsucedido. Motivações possivelmente infinitas, mas que, sob a regência da era dos diagnósticos, são resumidas a "sou bipolar", "sou hiperativo" ou "sou ansiosa" - somos aquilo de que sofremos, parece ser a mensagem. Lugares no mundo definidos a partir de um conjunto de sintomas, com pouca ou nenhuma indagação sobre a relação deste sofrer com os modos de vida do sujeito.
É em meio a um contexto de epidemias de suicídio, depressão, ansiedade e anorexia que chega a crítica contida no livro Patologias do Social: Arqueologias do Sofrimento Psíquico, organizado pelos acadêmicos Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior e Christian Dunker e lançado pela Editora Autêntica.
Dividida em nove artigos assinados por mais de 50 autores, a publicação é fruto de dez anos de reflexões feitas no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo. A investigação histórica, filosófica e clínica norteia os questionamentos e ponderações acerca da forma como tratamos nosso sofrimento e o do outro e de como o DSM-5, a mais recente edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana, encapsula uma abordagem restritiva ao definir as patologias a partir dos resultados obtidos pela ação dos remédios. Seriam as epidemias citadas acima mero resultado de déficits individuais e distúrbios neuroquímicos? Ou elas estariam dando pistas de nossas formas de viver e de nos relacionar? Esta última tem sido o argumento de pensadores como o sociólogo francês Alain Ehrenberg. Os adoecimentos psíquicos estariam denunciando impasses e descontentamentos dos sujeitos com o mundo contemporâneo.
Falar em patologias do social não refere a uma sociedade adoecida ou que deixou de ser saudável. São patologias de cada sujeito, que têm em comum serem forjadas a partir dos complexos entrelaçamentos com a sociedade. Em 1930, em O Mal-estar na Civilização, Freud demonstrou os conflitos inevitáveis da vida em civilização e as pressões trazidas pela cultura frente aos desejos humanos. Pode não parecer, mas as patologias têm papel fundamental na socialização. Vladimir Safatle pontua: "Socializamos sujeitos, entre outras coisas, ao fazer com que eles internalizem modos de inscrever seus sofrimentos, seus 'desvios' e descontentamentos em quadros clínicos socialmente reconhecidos."
Com a formatação do sofrimento a partir dos sintomas descritos no DSM-5, algumas patologias já não são mais validadas. As histéricas e os paranóicos de outrora não entram no discurso, enquanto percebemos a atualidade dos bipolares, dos deprimidos, dos hiperativos e das pessoas com pânico. Ao invalidar certas formas de sofrer, aqueles cujas manifestações não se encaixam em sintomas não têm seu sofrimento reconhecido, argumenta o livro. Uma consequência prática é ficarem sem tratamento na saúde pública, uma vez que seguros de saúde, institutos de pesquisa e organizações acadêmico-empresariais usam o DSM-5 como norte para suas ações e tratamentos.
A depressão, diagnosticada banalmente no discurso popular e também por profissionais sem formação psicopatológica específica, como ginecologistas, tem sido usada para nomear as mais diferentes formas de mal-estar no mundo atual - daí seu caráter assustadoramente epidêmico. O sofrimento por um luto que se estende tem chances de ser renomeado depressão. Uma expressão de dificuldade natural é ajustada a um sintoma e, assim, obtém reconhecimento social. Modificações corporais como as cirurgias de mudança de sexo ou a amputação de membros saudáveis, examinadas com profundidade no livro, são sancionadas conforme uma leitura patológica.
Há, porém, algumas expressões de sofrimento que permanecem à margem da caracterização como sintoma. Difícil não pensarmos na série Black Mirror, que trouxe leituras variadas do mal-estar em sua antologia ficcional. Cada episódio trazia a identificação mediante um futuro que assombrava por sua presentificação e demonstrava os descompassos com uma sociedade na qual o pertencimento é, paradoxalmente, exclusão.
Ainda sobre identificações, o tema ganha uma extensa apuração a partir de suas implicações com o narcisismo e com a construção de fenômenos sociais de violenta intolerância às diferenças, como o nazismo e outros regimes totalitários.
Diante de situações como os crescentes tiroteios em escolas americanas, o afastamento de trabalhadores por depressão ou ansiedade na realidade brasileira ou a adesão de jovens ao Estado Islâmico, cabe a urgente interrogação sobre os vínculos estabelecidos pelos sujeitos em suas vidas e seus contextos sociais ao pensarmos a psicopatologia. O livro faz uma crítica consistente e aponta para a construção de novas práticas já em nossa época, propondo um sistema de valores baseado na subjetividade. Em uma era de respostas prontas servidas a perguntas silenciadas, já que um conjunto de sintomas suprime a indagação particular sobre cada um deles, o estranhamento frente à generalização é um ato de inclusão. Uma vez não inseridos nos diagnósticos existentes, pode-se realmente dizer que não estamos sofrendo?
*Amanda Mont’Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e possui especialização em semiótica psicanalítica pela PUC-SP