Livro póstumo de Wilson Bueno descreve ilhas fantásticas ficcionais


Em 'Ilhas', não são apenas os homens que se deslocam para o mágico, mas também os arquipélagos

Por Sérgio Medeiros

Ilhas fantásticas são um tema literário clássico. Homero e Shakespeare, para citar apenas dois exemplos ilustres, falaram delas. O escritor brasileiro Wilson Bueno (1949-2010), no seu livro póstumo Ilhas, recém-publicado, oferece ao leitor o relato de viagens a três arquipélagos imaginários, inserindo-se nessa longa tradição literária. Ele pretendia publicar o livro em 2010, ano em que foi assassinado em Curitiba, onde residia. Depois disso, o original ficou guardado e apenas agora é publicado no Brasil, quando a poeta canadense Érin Moure anuncia, segundo o jornal Cândido, a eminente publicação nos EUA de uma tradução, assinada por ela, da novela mais famosa do escritor, Mar Paraguayo, originalmente lançada em 1992.

Ilha embrulhada pelos artistas Christo eJeanne-Claude na Florida entre1980-83 

Bebendo nas três línguas faladas na fronteira do Brasil com o Paraguai (o espanhol, o guarani e o português), o intrigante Mar Paraguayo é uma proposta ousada de escrita híbrida latino-americana, a qual, posteriormente, foi retomada e expandida por outros escritores, que continuam escrevendo nessa língua inclassificável e sempre mutável, que não é mais apenas literária, já que tem sido usada também para transmitir qualquer tipo de mensagem, como nova língua de comunicação oral e escrita de autores contemporâneos.

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O poeta Douglas Diegues, que faz conferências e escreve artigos em portunhol “selvagem”, é um dos habitantes atuais da “ilha linguística” da qual Wilson Bueno foi o primeiro explorador e à qual deu importante contribuição, limitada, todavia, à prosa, até onde se sabe. Ele deixou alguns textos em portunhol literário que ainda não foram publicados, embora a revista Canguru, editada em Curitiba, tenha incluído, no seu último número (outubro/novembro/dezembro de 2017), um fragmento do livro inédito Novelas Marafas, escrito na mesma língua de Mar Paraguayo.

No livro Ilhas, o leitor não se deparará, contudo, com o lado mais experimental do autor paranaense, que recorreu apenas ao português para registrar o testemunho dos navegadores de Hérida, os quais vão passando de um arquipélago a outro e visitando suas ilhas fabulosas. A delicadeza da escrita e a imaginação exuberante do autor sustentam o projeto literário de povoar a literatura brasileira de ilhas nunca antes visitadas.

Nesse sentido, é um dos livros mais saborosos e inventivos de Wilson Bueno, um autor de muitos recursos estilísticos que às vezes flerta conscientemente com o kitsch (“esse rumor de estrelas a desenhar constelações”) ou faz uso de um fraseio maneirista, o que acaba conferindo uma graça inesperada ao seu texto falsamente anacrônico (“as faces que a mó dos anos puiu e gastou”). Também merecem ser destacados os momentos francamente surrealistas, quando o delírio é a dádiva dos navegadores no final da jornada: “Lá, no ancoradouro da ilha, em seu porto onde rinocerontes dançam cantigas de boas-vindas e colibris voejam ao redor dos desembarcados feito um enxame fosforescente, só te pedirão uma senha”. 

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Nesse livro surpreendente, não são apenas os navegadores que se deslocam continuamente pelos mares: as próprias ilhas também o fazem. Às vezes são ilhas explicitamente oníricas, as quais, portanto, só existem à noite: “E foi então que testemunhamos: Tessussála passou rente à flotilha, navegando o mar com a suavidade de um iceberg. A diferença, aliás fundamental, era de que tudo nela se mostrava escuro e breu, e singravam seus campos de flores na obscuridade leitosa da lua cheia, morcegos, corujas, inquietos bichos noturnos.” Remota no espaço e no tempo, como as outras ilhas do livro, Tessussála se afasta para sempre como um borrão. 

Os arquipélagos possuem ilhas sinistras e tenebrosas, e não apenas paradisíacas. Os navegadores de Hérida, que parecem singrar apenas sonhos e pesadelos, lembram talvez o protagonista de A Busca Onírica por Kadath, uma novela poética de H.P. Lovecraft que relata uma viagem infindável ao âmago da noite cósmica, onde jaz uma maravilhosa cidade ao pôr do sol. Cada marinheiro de Wilson Bueno, como Randolph Carter, o herói de Lovecraft, é um sonhador experiente que almeja ir até o fim da jornada para poder usufruir “o esplendor do sinistro”, como observa Bueno em Ilhas. A diferença entre os dois escritores é que o americano fala dos vastos espaços obscuros e o brasileiro, mais lírico e sucinto, de um ponto mínimo perdido no oceano, às vezes escuro, às vezes luminoso. Aliás, a água ao redor da terra nem sempre é necessária: a ilha de Saavedra, por exemplo, não tinha mar, era uma ilha ao sol, “circundada de mar e praias infindas”. 

De todos os habitantes dos arquipélagos, o mais fascinante é o pirata da ilhota de Py, que “permanece desde a criação das ilhas, dos oceanos e dos piratas, perfeitamente em pé”, qual um totem imemorial ou uma sentinela que nunca abandonou o posto; no fundo, porém, apenas espera que alguém venha resgatá-lo, ou possa salvá-lo “de si mesmo”.  *É poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC 

Ilhas fantásticas são um tema literário clássico. Homero e Shakespeare, para citar apenas dois exemplos ilustres, falaram delas. O escritor brasileiro Wilson Bueno (1949-2010), no seu livro póstumo Ilhas, recém-publicado, oferece ao leitor o relato de viagens a três arquipélagos imaginários, inserindo-se nessa longa tradição literária. Ele pretendia publicar o livro em 2010, ano em que foi assassinado em Curitiba, onde residia. Depois disso, o original ficou guardado e apenas agora é publicado no Brasil, quando a poeta canadense Érin Moure anuncia, segundo o jornal Cândido, a eminente publicação nos EUA de uma tradução, assinada por ela, da novela mais famosa do escritor, Mar Paraguayo, originalmente lançada em 1992.

Ilha embrulhada pelos artistas Christo eJeanne-Claude na Florida entre1980-83 

Bebendo nas três línguas faladas na fronteira do Brasil com o Paraguai (o espanhol, o guarani e o português), o intrigante Mar Paraguayo é uma proposta ousada de escrita híbrida latino-americana, a qual, posteriormente, foi retomada e expandida por outros escritores, que continuam escrevendo nessa língua inclassificável e sempre mutável, que não é mais apenas literária, já que tem sido usada também para transmitir qualquer tipo de mensagem, como nova língua de comunicação oral e escrita de autores contemporâneos.

O poeta Douglas Diegues, que faz conferências e escreve artigos em portunhol “selvagem”, é um dos habitantes atuais da “ilha linguística” da qual Wilson Bueno foi o primeiro explorador e à qual deu importante contribuição, limitada, todavia, à prosa, até onde se sabe. Ele deixou alguns textos em portunhol literário que ainda não foram publicados, embora a revista Canguru, editada em Curitiba, tenha incluído, no seu último número (outubro/novembro/dezembro de 2017), um fragmento do livro inédito Novelas Marafas, escrito na mesma língua de Mar Paraguayo.

No livro Ilhas, o leitor não se deparará, contudo, com o lado mais experimental do autor paranaense, que recorreu apenas ao português para registrar o testemunho dos navegadores de Hérida, os quais vão passando de um arquipélago a outro e visitando suas ilhas fabulosas. A delicadeza da escrita e a imaginação exuberante do autor sustentam o projeto literário de povoar a literatura brasileira de ilhas nunca antes visitadas.

Nesse sentido, é um dos livros mais saborosos e inventivos de Wilson Bueno, um autor de muitos recursos estilísticos que às vezes flerta conscientemente com o kitsch (“esse rumor de estrelas a desenhar constelações”) ou faz uso de um fraseio maneirista, o que acaba conferindo uma graça inesperada ao seu texto falsamente anacrônico (“as faces que a mó dos anos puiu e gastou”). Também merecem ser destacados os momentos francamente surrealistas, quando o delírio é a dádiva dos navegadores no final da jornada: “Lá, no ancoradouro da ilha, em seu porto onde rinocerontes dançam cantigas de boas-vindas e colibris voejam ao redor dos desembarcados feito um enxame fosforescente, só te pedirão uma senha”. 

Nesse livro surpreendente, não são apenas os navegadores que se deslocam continuamente pelos mares: as próprias ilhas também o fazem. Às vezes são ilhas explicitamente oníricas, as quais, portanto, só existem à noite: “E foi então que testemunhamos: Tessussála passou rente à flotilha, navegando o mar com a suavidade de um iceberg. A diferença, aliás fundamental, era de que tudo nela se mostrava escuro e breu, e singravam seus campos de flores na obscuridade leitosa da lua cheia, morcegos, corujas, inquietos bichos noturnos.” Remota no espaço e no tempo, como as outras ilhas do livro, Tessussála se afasta para sempre como um borrão. 

Os arquipélagos possuem ilhas sinistras e tenebrosas, e não apenas paradisíacas. Os navegadores de Hérida, que parecem singrar apenas sonhos e pesadelos, lembram talvez o protagonista de A Busca Onírica por Kadath, uma novela poética de H.P. Lovecraft que relata uma viagem infindável ao âmago da noite cósmica, onde jaz uma maravilhosa cidade ao pôr do sol. Cada marinheiro de Wilson Bueno, como Randolph Carter, o herói de Lovecraft, é um sonhador experiente que almeja ir até o fim da jornada para poder usufruir “o esplendor do sinistro”, como observa Bueno em Ilhas. A diferença entre os dois escritores é que o americano fala dos vastos espaços obscuros e o brasileiro, mais lírico e sucinto, de um ponto mínimo perdido no oceano, às vezes escuro, às vezes luminoso. Aliás, a água ao redor da terra nem sempre é necessária: a ilha de Saavedra, por exemplo, não tinha mar, era uma ilha ao sol, “circundada de mar e praias infindas”. 

De todos os habitantes dos arquipélagos, o mais fascinante é o pirata da ilhota de Py, que “permanece desde a criação das ilhas, dos oceanos e dos piratas, perfeitamente em pé”, qual um totem imemorial ou uma sentinela que nunca abandonou o posto; no fundo, porém, apenas espera que alguém venha resgatá-lo, ou possa salvá-lo “de si mesmo”.  *É poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC 

Ilhas fantásticas são um tema literário clássico. Homero e Shakespeare, para citar apenas dois exemplos ilustres, falaram delas. O escritor brasileiro Wilson Bueno (1949-2010), no seu livro póstumo Ilhas, recém-publicado, oferece ao leitor o relato de viagens a três arquipélagos imaginários, inserindo-se nessa longa tradição literária. Ele pretendia publicar o livro em 2010, ano em que foi assassinado em Curitiba, onde residia. Depois disso, o original ficou guardado e apenas agora é publicado no Brasil, quando a poeta canadense Érin Moure anuncia, segundo o jornal Cândido, a eminente publicação nos EUA de uma tradução, assinada por ela, da novela mais famosa do escritor, Mar Paraguayo, originalmente lançada em 1992.

Ilha embrulhada pelos artistas Christo eJeanne-Claude na Florida entre1980-83 

Bebendo nas três línguas faladas na fronteira do Brasil com o Paraguai (o espanhol, o guarani e o português), o intrigante Mar Paraguayo é uma proposta ousada de escrita híbrida latino-americana, a qual, posteriormente, foi retomada e expandida por outros escritores, que continuam escrevendo nessa língua inclassificável e sempre mutável, que não é mais apenas literária, já que tem sido usada também para transmitir qualquer tipo de mensagem, como nova língua de comunicação oral e escrita de autores contemporâneos.

O poeta Douglas Diegues, que faz conferências e escreve artigos em portunhol “selvagem”, é um dos habitantes atuais da “ilha linguística” da qual Wilson Bueno foi o primeiro explorador e à qual deu importante contribuição, limitada, todavia, à prosa, até onde se sabe. Ele deixou alguns textos em portunhol literário que ainda não foram publicados, embora a revista Canguru, editada em Curitiba, tenha incluído, no seu último número (outubro/novembro/dezembro de 2017), um fragmento do livro inédito Novelas Marafas, escrito na mesma língua de Mar Paraguayo.

No livro Ilhas, o leitor não se deparará, contudo, com o lado mais experimental do autor paranaense, que recorreu apenas ao português para registrar o testemunho dos navegadores de Hérida, os quais vão passando de um arquipélago a outro e visitando suas ilhas fabulosas. A delicadeza da escrita e a imaginação exuberante do autor sustentam o projeto literário de povoar a literatura brasileira de ilhas nunca antes visitadas.

Nesse sentido, é um dos livros mais saborosos e inventivos de Wilson Bueno, um autor de muitos recursos estilísticos que às vezes flerta conscientemente com o kitsch (“esse rumor de estrelas a desenhar constelações”) ou faz uso de um fraseio maneirista, o que acaba conferindo uma graça inesperada ao seu texto falsamente anacrônico (“as faces que a mó dos anos puiu e gastou”). Também merecem ser destacados os momentos francamente surrealistas, quando o delírio é a dádiva dos navegadores no final da jornada: “Lá, no ancoradouro da ilha, em seu porto onde rinocerontes dançam cantigas de boas-vindas e colibris voejam ao redor dos desembarcados feito um enxame fosforescente, só te pedirão uma senha”. 

Nesse livro surpreendente, não são apenas os navegadores que se deslocam continuamente pelos mares: as próprias ilhas também o fazem. Às vezes são ilhas explicitamente oníricas, as quais, portanto, só existem à noite: “E foi então que testemunhamos: Tessussála passou rente à flotilha, navegando o mar com a suavidade de um iceberg. A diferença, aliás fundamental, era de que tudo nela se mostrava escuro e breu, e singravam seus campos de flores na obscuridade leitosa da lua cheia, morcegos, corujas, inquietos bichos noturnos.” Remota no espaço e no tempo, como as outras ilhas do livro, Tessussála se afasta para sempre como um borrão. 

Os arquipélagos possuem ilhas sinistras e tenebrosas, e não apenas paradisíacas. Os navegadores de Hérida, que parecem singrar apenas sonhos e pesadelos, lembram talvez o protagonista de A Busca Onírica por Kadath, uma novela poética de H.P. Lovecraft que relata uma viagem infindável ao âmago da noite cósmica, onde jaz uma maravilhosa cidade ao pôr do sol. Cada marinheiro de Wilson Bueno, como Randolph Carter, o herói de Lovecraft, é um sonhador experiente que almeja ir até o fim da jornada para poder usufruir “o esplendor do sinistro”, como observa Bueno em Ilhas. A diferença entre os dois escritores é que o americano fala dos vastos espaços obscuros e o brasileiro, mais lírico e sucinto, de um ponto mínimo perdido no oceano, às vezes escuro, às vezes luminoso. Aliás, a água ao redor da terra nem sempre é necessária: a ilha de Saavedra, por exemplo, não tinha mar, era uma ilha ao sol, “circundada de mar e praias infindas”. 

De todos os habitantes dos arquipélagos, o mais fascinante é o pirata da ilhota de Py, que “permanece desde a criação das ilhas, dos oceanos e dos piratas, perfeitamente em pé”, qual um totem imemorial ou uma sentinela que nunca abandonou o posto; no fundo, porém, apenas espera que alguém venha resgatá-lo, ou possa salvá-lo “de si mesmo”.  *É poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC 

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