Livro reúne ensaios e textos autoficcionais de Natalia Ginzburg


Em 'As Pequenas Virtudes', escritora italiana fornece ao leitor régua e compasso éticos para a vida toda

Por Ronaldo Bressane

Aviso aos navegantes: aqui vai um comentário parcial, posto que este livro vive na mesa de cabeceira há um par de décadas. Na tristeza e na alegria, na euforia e no caos, As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg (Companhia das Letras), lá está, dando o norte, e também chacoalhões indispensáveis, feito um livro de auto-ajuda às avessas. O livrinho foi-me apresentado por ginzburgianos como Vilma Arêas e Cadão Volpato, que também proseiam nessa indefinível mistura de lirismo e rigor, humor e contenção – numa segura ética mediterrânea de quem se pressente à beira de um vulcão em chamas.

A escritora italiana Natalia Ginzburg Foto: Leonardo Cendamo/Companhia das Letras

Porque, prestes a presenciar uma erupção, você ganha a perfeita noção das coisas que importam, e para que a pressa? Este é um livro sobre a ética das coisas que importam, para além de moral, ideologia ou religião. Filha de uma dona-de-casa católica com um biólogo judeu, a siciliana Natalia Levi foi criada ateia; seu marido, Leone Ginzburg, de quem assumiu o sobrenome, era um tradutor e militante antifascista que foi barbaramente assassinado na prisão. O primeiro texto deste livro, Inverno em Abruzzo, trata justo do exílio a que os Ginzburg foram submetidos. Não quero roubar ao leitor o impacto emocional do último parágrafo, mas pode-se dizer que a crônica é também um ensaio sobre como podemos ser tão ingenuamente felizes durante uma época turbulenta – sem saber que o pior viria depois.

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Falo em ensaio pois tais textos habitam a zona inclassificável entre a prosa de não-ficção e a autoficção mais intimista. Em As Relações Humanas, Ginzburg usa um expediente sagaz para produzir tal mistura: ao contar infância e juventude usando o pronome “nós”, nos inclui em sua história ao mesmo tempo em que tece sutis considerações sobre a complexidade dos sentimentos. Tema em que é craque, leia-se romances como Léxico Familiar – aliás, a matriz de onde saiu tudo o que Elena Ferrante escreveu. A “Febre Ferrante” acabou por resgatar os livros de Ginzburg. Contudo, enquanto ler Ferrante dá a sensação de encontrar uma amiga, ler Ginzburg é como encontrar uma mentora. Assim, Ginzburg divide sua infância como se fosse a nossa: o primeiro amigo rico na escola, o primeiro amigo pobre, a descoberta que as outras famílias também são infelizes, o desdém pela violência dos adultos, a perda da delicadeza da infância, a compreensão da inexistência de Deus, e por fim o encontro com o amor e o mergulho total no Outro, o nascimento dos filhos (entre eles, o hoje historiador Carlo Ginzburg), e a solidão em se compreender um adulto, tão desprezível como aqueles sombrios adultos que víamos na infância.

Há também perfis. O lindíssimo Retrato de um Amigo entrelaça a vida curta de Cesare Pavese, que se suicidou em 1950, à natureza de Turim, “de natureza essencialmente melancólica” – na Turim do pós-guerra, além de Pavese, Ginzburg entraria no Partido Comunista e travaria amizade com Italo Calvino, Primo Levi e Carlo Levi, consolidando a carreira literária e trabalhando na prestigiosa editora Einaudi. E o engraçado Ele e Eu, em que enumera, de modo romântico e mordaz, as diferenças abissais entre ela e o segundo marido, o crítico e tradutor Gabriele Baldini. Há também dois divertidos ensaios lamentando sua experiência em Londres, em que Ginzburg se compraz em destruir a culinária inglesa (se é que isso existe).

Há ainda O Filho do Homem, em que, ao mesmo tempo que narra a cruel experiência da Segunda Guerra, Ginzburg acena para o cristianismo que abraçará nos anos seguintes; O Silêncio, uma defesa apaixonada pela comunhão dos diálogos, técnica em que é maestrina; e Os Sapatos Rotos, em que sugere como a pobreza e a escassez são essenciais na formação do caráter. Pairam sobretudo dois textos fundamentais. “O meu ofício”, em que, enquanto biografia sua vocação na escrita desde a infância, demonstra as dificuldades em uma mulher afirmar-se escritora e enfileira uma série de preceitos éticos caros a todo escriba que se preze: 

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“Não se pode cair na ilusão de embalar-se e confortar-se com o próprio ofício (...) Este ofício nunca é um consolo ou uma distração. Não é uma companhia. Este ofício é um senhor capaz de chicotear-nos até sangrar (...) Não é uma brincadeira (...) Há o perigo de começarmos a seduzir e a cantar de repente (...) Há o perigo de ludibriar com palavras que de fato não existem em nós (...) Há o perigo de bancar o esperto e de enganar (...) É um ofício que também se nutre de coisas horríveis, devora o melhor e o pior de nossas vidas”. 

O outro ensaio essencial intitula o livro, e sua abertura resume Ginzburg: “Deve-se ensinar aos filhos não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber”. Tamanho também é documento: em pouco mais de cem páginas, Natalia Ginzburg ensina que a brevidade é o caminho para a perfeição.

AS PEQUENAS VIRTUDES AUTORA: NATALIA GINZBURG TRADUÇÃO: MAURICIO SANTANA DIAS EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 128 PÁGS., R$ 44,90

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*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance Escalpo (Reformatório), entre outros livros

Aviso aos navegantes: aqui vai um comentário parcial, posto que este livro vive na mesa de cabeceira há um par de décadas. Na tristeza e na alegria, na euforia e no caos, As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg (Companhia das Letras), lá está, dando o norte, e também chacoalhões indispensáveis, feito um livro de auto-ajuda às avessas. O livrinho foi-me apresentado por ginzburgianos como Vilma Arêas e Cadão Volpato, que também proseiam nessa indefinível mistura de lirismo e rigor, humor e contenção – numa segura ética mediterrânea de quem se pressente à beira de um vulcão em chamas.

A escritora italiana Natalia Ginzburg Foto: Leonardo Cendamo/Companhia das Letras

Porque, prestes a presenciar uma erupção, você ganha a perfeita noção das coisas que importam, e para que a pressa? Este é um livro sobre a ética das coisas que importam, para além de moral, ideologia ou religião. Filha de uma dona-de-casa católica com um biólogo judeu, a siciliana Natalia Levi foi criada ateia; seu marido, Leone Ginzburg, de quem assumiu o sobrenome, era um tradutor e militante antifascista que foi barbaramente assassinado na prisão. O primeiro texto deste livro, Inverno em Abruzzo, trata justo do exílio a que os Ginzburg foram submetidos. Não quero roubar ao leitor o impacto emocional do último parágrafo, mas pode-se dizer que a crônica é também um ensaio sobre como podemos ser tão ingenuamente felizes durante uma época turbulenta – sem saber que o pior viria depois.

Falo em ensaio pois tais textos habitam a zona inclassificável entre a prosa de não-ficção e a autoficção mais intimista. Em As Relações Humanas, Ginzburg usa um expediente sagaz para produzir tal mistura: ao contar infância e juventude usando o pronome “nós”, nos inclui em sua história ao mesmo tempo em que tece sutis considerações sobre a complexidade dos sentimentos. Tema em que é craque, leia-se romances como Léxico Familiar – aliás, a matriz de onde saiu tudo o que Elena Ferrante escreveu. A “Febre Ferrante” acabou por resgatar os livros de Ginzburg. Contudo, enquanto ler Ferrante dá a sensação de encontrar uma amiga, ler Ginzburg é como encontrar uma mentora. Assim, Ginzburg divide sua infância como se fosse a nossa: o primeiro amigo rico na escola, o primeiro amigo pobre, a descoberta que as outras famílias também são infelizes, o desdém pela violência dos adultos, a perda da delicadeza da infância, a compreensão da inexistência de Deus, e por fim o encontro com o amor e o mergulho total no Outro, o nascimento dos filhos (entre eles, o hoje historiador Carlo Ginzburg), e a solidão em se compreender um adulto, tão desprezível como aqueles sombrios adultos que víamos na infância.

Há também perfis. O lindíssimo Retrato de um Amigo entrelaça a vida curta de Cesare Pavese, que se suicidou em 1950, à natureza de Turim, “de natureza essencialmente melancólica” – na Turim do pós-guerra, além de Pavese, Ginzburg entraria no Partido Comunista e travaria amizade com Italo Calvino, Primo Levi e Carlo Levi, consolidando a carreira literária e trabalhando na prestigiosa editora Einaudi. E o engraçado Ele e Eu, em que enumera, de modo romântico e mordaz, as diferenças abissais entre ela e o segundo marido, o crítico e tradutor Gabriele Baldini. Há também dois divertidos ensaios lamentando sua experiência em Londres, em que Ginzburg se compraz em destruir a culinária inglesa (se é que isso existe).

Há ainda O Filho do Homem, em que, ao mesmo tempo que narra a cruel experiência da Segunda Guerra, Ginzburg acena para o cristianismo que abraçará nos anos seguintes; O Silêncio, uma defesa apaixonada pela comunhão dos diálogos, técnica em que é maestrina; e Os Sapatos Rotos, em que sugere como a pobreza e a escassez são essenciais na formação do caráter. Pairam sobretudo dois textos fundamentais. “O meu ofício”, em que, enquanto biografia sua vocação na escrita desde a infância, demonstra as dificuldades em uma mulher afirmar-se escritora e enfileira uma série de preceitos éticos caros a todo escriba que se preze: 

“Não se pode cair na ilusão de embalar-se e confortar-se com o próprio ofício (...) Este ofício nunca é um consolo ou uma distração. Não é uma companhia. Este ofício é um senhor capaz de chicotear-nos até sangrar (...) Não é uma brincadeira (...) Há o perigo de começarmos a seduzir e a cantar de repente (...) Há o perigo de ludibriar com palavras que de fato não existem em nós (...) Há o perigo de bancar o esperto e de enganar (...) É um ofício que também se nutre de coisas horríveis, devora o melhor e o pior de nossas vidas”. 

O outro ensaio essencial intitula o livro, e sua abertura resume Ginzburg: “Deve-se ensinar aos filhos não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber”. Tamanho também é documento: em pouco mais de cem páginas, Natalia Ginzburg ensina que a brevidade é o caminho para a perfeição.

AS PEQUENAS VIRTUDES AUTORA: NATALIA GINZBURG TRADUÇÃO: MAURICIO SANTANA DIAS EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 128 PÁGS., R$ 44,90

*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance Escalpo (Reformatório), entre outros livros

Aviso aos navegantes: aqui vai um comentário parcial, posto que este livro vive na mesa de cabeceira há um par de décadas. Na tristeza e na alegria, na euforia e no caos, As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg (Companhia das Letras), lá está, dando o norte, e também chacoalhões indispensáveis, feito um livro de auto-ajuda às avessas. O livrinho foi-me apresentado por ginzburgianos como Vilma Arêas e Cadão Volpato, que também proseiam nessa indefinível mistura de lirismo e rigor, humor e contenção – numa segura ética mediterrânea de quem se pressente à beira de um vulcão em chamas.

A escritora italiana Natalia Ginzburg Foto: Leonardo Cendamo/Companhia das Letras

Porque, prestes a presenciar uma erupção, você ganha a perfeita noção das coisas que importam, e para que a pressa? Este é um livro sobre a ética das coisas que importam, para além de moral, ideologia ou religião. Filha de uma dona-de-casa católica com um biólogo judeu, a siciliana Natalia Levi foi criada ateia; seu marido, Leone Ginzburg, de quem assumiu o sobrenome, era um tradutor e militante antifascista que foi barbaramente assassinado na prisão. O primeiro texto deste livro, Inverno em Abruzzo, trata justo do exílio a que os Ginzburg foram submetidos. Não quero roubar ao leitor o impacto emocional do último parágrafo, mas pode-se dizer que a crônica é também um ensaio sobre como podemos ser tão ingenuamente felizes durante uma época turbulenta – sem saber que o pior viria depois.

Falo em ensaio pois tais textos habitam a zona inclassificável entre a prosa de não-ficção e a autoficção mais intimista. Em As Relações Humanas, Ginzburg usa um expediente sagaz para produzir tal mistura: ao contar infância e juventude usando o pronome “nós”, nos inclui em sua história ao mesmo tempo em que tece sutis considerações sobre a complexidade dos sentimentos. Tema em que é craque, leia-se romances como Léxico Familiar – aliás, a matriz de onde saiu tudo o que Elena Ferrante escreveu. A “Febre Ferrante” acabou por resgatar os livros de Ginzburg. Contudo, enquanto ler Ferrante dá a sensação de encontrar uma amiga, ler Ginzburg é como encontrar uma mentora. Assim, Ginzburg divide sua infância como se fosse a nossa: o primeiro amigo rico na escola, o primeiro amigo pobre, a descoberta que as outras famílias também são infelizes, o desdém pela violência dos adultos, a perda da delicadeza da infância, a compreensão da inexistência de Deus, e por fim o encontro com o amor e o mergulho total no Outro, o nascimento dos filhos (entre eles, o hoje historiador Carlo Ginzburg), e a solidão em se compreender um adulto, tão desprezível como aqueles sombrios adultos que víamos na infância.

Há também perfis. O lindíssimo Retrato de um Amigo entrelaça a vida curta de Cesare Pavese, que se suicidou em 1950, à natureza de Turim, “de natureza essencialmente melancólica” – na Turim do pós-guerra, além de Pavese, Ginzburg entraria no Partido Comunista e travaria amizade com Italo Calvino, Primo Levi e Carlo Levi, consolidando a carreira literária e trabalhando na prestigiosa editora Einaudi. E o engraçado Ele e Eu, em que enumera, de modo romântico e mordaz, as diferenças abissais entre ela e o segundo marido, o crítico e tradutor Gabriele Baldini. Há também dois divertidos ensaios lamentando sua experiência em Londres, em que Ginzburg se compraz em destruir a culinária inglesa (se é que isso existe).

Há ainda O Filho do Homem, em que, ao mesmo tempo que narra a cruel experiência da Segunda Guerra, Ginzburg acena para o cristianismo que abraçará nos anos seguintes; O Silêncio, uma defesa apaixonada pela comunhão dos diálogos, técnica em que é maestrina; e Os Sapatos Rotos, em que sugere como a pobreza e a escassez são essenciais na formação do caráter. Pairam sobretudo dois textos fundamentais. “O meu ofício”, em que, enquanto biografia sua vocação na escrita desde a infância, demonstra as dificuldades em uma mulher afirmar-se escritora e enfileira uma série de preceitos éticos caros a todo escriba que se preze: 

“Não se pode cair na ilusão de embalar-se e confortar-se com o próprio ofício (...) Este ofício nunca é um consolo ou uma distração. Não é uma companhia. Este ofício é um senhor capaz de chicotear-nos até sangrar (...) Não é uma brincadeira (...) Há o perigo de começarmos a seduzir e a cantar de repente (...) Há o perigo de ludibriar com palavras que de fato não existem em nós (...) Há o perigo de bancar o esperto e de enganar (...) É um ofício que também se nutre de coisas horríveis, devora o melhor e o pior de nossas vidas”. 

O outro ensaio essencial intitula o livro, e sua abertura resume Ginzburg: “Deve-se ensinar aos filhos não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber”. Tamanho também é documento: em pouco mais de cem páginas, Natalia Ginzburg ensina que a brevidade é o caminho para a perfeição.

AS PEQUENAS VIRTUDES AUTORA: NATALIA GINZBURG TRADUÇÃO: MAURICIO SANTANA DIAS EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 128 PÁGS., R$ 44,90

*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance Escalpo (Reformatório), entre outros livros

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