Livros de correspondência entre escritores revelam nostalgia por cartas


Saramago, Jorge Amado, Drummond, Pedro Nava e Artaud estão entre os autores cujas cartas estão sendo publicadas

Por André Cáceres
Estátua de Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro Foto: Fábio Motta/Estadão

Como conseguimos viver tanto tempo sem fax?”, perguntou Jorge Amado a José Saramago em 1994, após seu aparelho ter ardido em chamas, cortando o canal de comunicação entre eles. O episódio está no recém-lançado Com o Mar por Meio – Uma Amizade em Cartas, que reúne a correspondência entre os autores, com organização de Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel. 

Se, em tempos de WhatsApp, o óbito do fax está decretado, as cartas parecem ter ganhado vida nova nos diversos livros de correspondências de escritores que estão chegando às livrarias: A Perda de Si reúne cartas de Antonin Artaud (leia resenha nesta página); A Aventura do Estilo tem conversas de Robert Louis Stevenson e Henry James (ambos pela coleção Marginália, da editora Rocco, com curadoria de Miguel Conde, que ainda deve publicar cartas de Franz Kafka, Gertrude Stein e outros); Descendo a Rua da Bahia compila o colóquio de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, pela editora Bazar do Tempo.

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“Essas cartas remontam ao primeiro encontro dos dois, em fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, no momento em que se realizava a Semana de Arte Moderna em São Paulo”, comenta Angelo Oswaldo de Araújo Santos, secretário de cultura do Estado de Minas Gerais, que ajudou a viabilizar o projeto do livro de missivas entre Drummond e Nava. “Eles sempre se corresponderam, até os anos 1930, quando ambos se fixaram no Rio de Janeiro, o Nava morando na Glória, e o Drummond em Copacabana.”

A importância dessas publicações reside em dois níveis, o do leitor e o do estudioso, na opinião de Pedro Vasquez, editor responsável pela publicação da obra de Clarice Lispector, que atualmente trabalha na organização de cartas da autora para um livro a ser publicado pela Rocco em 2020. “Para o leitor comum, é como ter contato pessoal, passar uma tarde com a Clarice, um fim de semana em Campos do Jordão com ela abrindo o coração”, acredita ele. “Ela sempre comentava o que estava escrevendo, as inquietações. Então, para o estudioso, cada vez que surge um documento dessa natureza, isso dá uma outra dimensão para a análise da obra”, acrescenta.

Com o ocaso da carta, o gênero epistolar também parece fadado ao fim no futuro. “A carta acabava conduzindo os interlocutores a ter uma comunicação mais refletida, organizada. O que a gente faz nos meios eletrônicos é o inverso disso”, acredita Daniel Galera, escritor paulistano radicado em Porto Alegre. “Como não tem custo, é instantâneo, tem uma quantidade enorme de ruído. Isso desqualifica a comunicação cotidiana para ser algo que valha a pena editar. Uma coisa é selecionar cartas enviadas, outra é ter acesso à conta de e-mail de um autor e tentar achar ali no meio o que é um debate relevante sobre a literatura ou a biografia dele.” 

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Raphael Montes, que em seu livro mais recente, Jantar Secreto, narra trechos inteiros com a linguagem de WhatsApp, é mais otimista quanto à possibilidade de edição desse material. “Agora parece uma coisa surreal a ideia de haver um livro que reúna e-mails entre escritores, mas confesso que não acho estranho que isso vá existir”, afirma Montes. “Conheço pessoas que escrevem e-mails longos, demorados, que demandam o cuidado e atenção que uma carta demandava.”

Os dados dos Correios, porém, desmentem a tese da morte das missivas: 123 milhões de cartas não comerciais foram postadas em 2016; a média anual desde 2012 se mantém em 132 milhões. Além disso, mais de mil telegramas online são enviados diariamente. Outro exemplo de que a literatura epistolar ainda respira é o escritor sueco Fredrik Ekelund, que veio ao Brasil em 2014, durante a Copa do Mundo, e se correspondeu por cartas com o autor norueguês Karl Ove Knausgard, originando o livro Hjemme/Borte, publicado na Noruega no mesmo ano, mas ainda sem tradução por aqui.

O escritor Felipe Munhoz, autor de Mentiras, encontrou um meio-termo para escapar à efemeridade da comunicação eletrônica: escreve as cartas à mão, fotografa e envia por e-mail. “Eu estava cansado dessa correspondência imediata de WhatsApp, pouco elaborada, rasa, sem entrar em detalhes ou criar vínculos”, conta Munhoz. “O e-mail como suporte influencia o conteúdo. Eu sinto que, quando escrevo à mão, é muito diferente de quando escrevo no computador.”

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Para Luiz Brás, autor de Anacrônicos, com o declínio da carta, “os leitores perdem a oportunidade de receber esses deliciosos diálogos compilados em livro. Os autores perdem um gênero dissertativo dos mais saborosos.” Ele arrisca ampliar o debate: “É mais uma tradição da sociedade agrária que desaparece na sociedade eletrônica. Talvez esse seja o destino do livro, em 500 anos, e da própria literatura, daqui a 5.000.”

Já Daniel Galera crê que a atuação performática nas redes sociais pode substituir a literatura epistolar no futuro: “Henry James nos deixa suas cartas, mas ele não estava lá dia e noite atuando no Facebook. Hoje, acompanhamos essa dimensão mais íntima, biográfica, dos autores em tempo real. Temos contato com uma versão filtrada por performance da vida dos autores, mas não deixa de ser uma espécie de contato interessante.”

Raphael Montes troca ideias por escrito com outros autores, como Luisa Geisler, Santiago Nazarian e Fabiane Guimarães. “A gente discute a voz do narrador, o estilo, a linguagem, os diálogos. A questão é que isso às vezes vem por e-mail, às vezes por Facebook ou por áudios do WhatsApp, então a troca de informações está mais dividida entre as várias mídias.”

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Se os leitores do futuro podem não ter acesso a essa faceta epistolar dos autores atuais, os escritores estão cada vez mais sujeitos à lógica perversa da superexposição nas redes. Essa nova forma de expressão tem, sim, suas desvantagens, mas pelo menos acaba por tirar os escritores do pedestal em que sempre estiveram. Galera afirma que “a cultura contemporânea banaliza a figura do autor. Essa idealização que a gente imprime às figuras literárias do passado não é necessariamente boa.” A questão é como a literatura reagirá e quais são as ideias que os autores trarão para o debate a partir desse paradigma digital. 

Capa do livro 'Com o Mar por Meio', que traz cartas de José Saramago e Jorge Amado 

Com o Mar por Meio - Uma Amizade em Cartas Autores: Jorge Amado e José SaramagoOrganização: Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo VielEditora: Companhia das Letras 120 páginas R$ 59

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Capa do livro 'Descendo a Rua da Bahia', com cartas de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava 

Descendo a Rua da Bahia Autores: Carlos Drummond de Andrade e Pedro NavaOrganização: Eliane Vasconcellos e Matildes Demetrio dos SantosEditora: Bazar do Tempo 240 páginas R$ 52 

Capa do livro 'A Perda de Si', com cartas de Antonin Artaud 
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A Perda de Si (Coleção Marginália)Autor: Antonin ArtaudOrganização: Ana KifferEditora: Rocco 176 páginas R$ 34,50

Estátua de Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro Foto: Fábio Motta/Estadão

Como conseguimos viver tanto tempo sem fax?”, perguntou Jorge Amado a José Saramago em 1994, após seu aparelho ter ardido em chamas, cortando o canal de comunicação entre eles. O episódio está no recém-lançado Com o Mar por Meio – Uma Amizade em Cartas, que reúne a correspondência entre os autores, com organização de Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel. 

Se, em tempos de WhatsApp, o óbito do fax está decretado, as cartas parecem ter ganhado vida nova nos diversos livros de correspondências de escritores que estão chegando às livrarias: A Perda de Si reúne cartas de Antonin Artaud (leia resenha nesta página); A Aventura do Estilo tem conversas de Robert Louis Stevenson e Henry James (ambos pela coleção Marginália, da editora Rocco, com curadoria de Miguel Conde, que ainda deve publicar cartas de Franz Kafka, Gertrude Stein e outros); Descendo a Rua da Bahia compila o colóquio de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, pela editora Bazar do Tempo.

“Essas cartas remontam ao primeiro encontro dos dois, em fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, no momento em que se realizava a Semana de Arte Moderna em São Paulo”, comenta Angelo Oswaldo de Araújo Santos, secretário de cultura do Estado de Minas Gerais, que ajudou a viabilizar o projeto do livro de missivas entre Drummond e Nava. “Eles sempre se corresponderam, até os anos 1930, quando ambos se fixaram no Rio de Janeiro, o Nava morando na Glória, e o Drummond em Copacabana.”

A importância dessas publicações reside em dois níveis, o do leitor e o do estudioso, na opinião de Pedro Vasquez, editor responsável pela publicação da obra de Clarice Lispector, que atualmente trabalha na organização de cartas da autora para um livro a ser publicado pela Rocco em 2020. “Para o leitor comum, é como ter contato pessoal, passar uma tarde com a Clarice, um fim de semana em Campos do Jordão com ela abrindo o coração”, acredita ele. “Ela sempre comentava o que estava escrevendo, as inquietações. Então, para o estudioso, cada vez que surge um documento dessa natureza, isso dá uma outra dimensão para a análise da obra”, acrescenta.

Com o ocaso da carta, o gênero epistolar também parece fadado ao fim no futuro. “A carta acabava conduzindo os interlocutores a ter uma comunicação mais refletida, organizada. O que a gente faz nos meios eletrônicos é o inverso disso”, acredita Daniel Galera, escritor paulistano radicado em Porto Alegre. “Como não tem custo, é instantâneo, tem uma quantidade enorme de ruído. Isso desqualifica a comunicação cotidiana para ser algo que valha a pena editar. Uma coisa é selecionar cartas enviadas, outra é ter acesso à conta de e-mail de um autor e tentar achar ali no meio o que é um debate relevante sobre a literatura ou a biografia dele.” 

Raphael Montes, que em seu livro mais recente, Jantar Secreto, narra trechos inteiros com a linguagem de WhatsApp, é mais otimista quanto à possibilidade de edição desse material. “Agora parece uma coisa surreal a ideia de haver um livro que reúna e-mails entre escritores, mas confesso que não acho estranho que isso vá existir”, afirma Montes. “Conheço pessoas que escrevem e-mails longos, demorados, que demandam o cuidado e atenção que uma carta demandava.”

Os dados dos Correios, porém, desmentem a tese da morte das missivas: 123 milhões de cartas não comerciais foram postadas em 2016; a média anual desde 2012 se mantém em 132 milhões. Além disso, mais de mil telegramas online são enviados diariamente. Outro exemplo de que a literatura epistolar ainda respira é o escritor sueco Fredrik Ekelund, que veio ao Brasil em 2014, durante a Copa do Mundo, e se correspondeu por cartas com o autor norueguês Karl Ove Knausgard, originando o livro Hjemme/Borte, publicado na Noruega no mesmo ano, mas ainda sem tradução por aqui.

O escritor Felipe Munhoz, autor de Mentiras, encontrou um meio-termo para escapar à efemeridade da comunicação eletrônica: escreve as cartas à mão, fotografa e envia por e-mail. “Eu estava cansado dessa correspondência imediata de WhatsApp, pouco elaborada, rasa, sem entrar em detalhes ou criar vínculos”, conta Munhoz. “O e-mail como suporte influencia o conteúdo. Eu sinto que, quando escrevo à mão, é muito diferente de quando escrevo no computador.”

Para Luiz Brás, autor de Anacrônicos, com o declínio da carta, “os leitores perdem a oportunidade de receber esses deliciosos diálogos compilados em livro. Os autores perdem um gênero dissertativo dos mais saborosos.” Ele arrisca ampliar o debate: “É mais uma tradição da sociedade agrária que desaparece na sociedade eletrônica. Talvez esse seja o destino do livro, em 500 anos, e da própria literatura, daqui a 5.000.”

Já Daniel Galera crê que a atuação performática nas redes sociais pode substituir a literatura epistolar no futuro: “Henry James nos deixa suas cartas, mas ele não estava lá dia e noite atuando no Facebook. Hoje, acompanhamos essa dimensão mais íntima, biográfica, dos autores em tempo real. Temos contato com uma versão filtrada por performance da vida dos autores, mas não deixa de ser uma espécie de contato interessante.”

Raphael Montes troca ideias por escrito com outros autores, como Luisa Geisler, Santiago Nazarian e Fabiane Guimarães. “A gente discute a voz do narrador, o estilo, a linguagem, os diálogos. A questão é que isso às vezes vem por e-mail, às vezes por Facebook ou por áudios do WhatsApp, então a troca de informações está mais dividida entre as várias mídias.”

Se os leitores do futuro podem não ter acesso a essa faceta epistolar dos autores atuais, os escritores estão cada vez mais sujeitos à lógica perversa da superexposição nas redes. Essa nova forma de expressão tem, sim, suas desvantagens, mas pelo menos acaba por tirar os escritores do pedestal em que sempre estiveram. Galera afirma que “a cultura contemporânea banaliza a figura do autor. Essa idealização que a gente imprime às figuras literárias do passado não é necessariamente boa.” A questão é como a literatura reagirá e quais são as ideias que os autores trarão para o debate a partir desse paradigma digital. 

Capa do livro 'Com o Mar por Meio', que traz cartas de José Saramago e Jorge Amado 

Com o Mar por Meio - Uma Amizade em Cartas Autores: Jorge Amado e José SaramagoOrganização: Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo VielEditora: Companhia das Letras 120 páginas R$ 59

Capa do livro 'Descendo a Rua da Bahia', com cartas de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava 

Descendo a Rua da Bahia Autores: Carlos Drummond de Andrade e Pedro NavaOrganização: Eliane Vasconcellos e Matildes Demetrio dos SantosEditora: Bazar do Tempo 240 páginas R$ 52 

Capa do livro 'A Perda de Si', com cartas de Antonin Artaud 

A Perda de Si (Coleção Marginália)Autor: Antonin ArtaudOrganização: Ana KifferEditora: Rocco 176 páginas R$ 34,50

Estátua de Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro Foto: Fábio Motta/Estadão

Como conseguimos viver tanto tempo sem fax?”, perguntou Jorge Amado a José Saramago em 1994, após seu aparelho ter ardido em chamas, cortando o canal de comunicação entre eles. O episódio está no recém-lançado Com o Mar por Meio – Uma Amizade em Cartas, que reúne a correspondência entre os autores, com organização de Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel. 

Se, em tempos de WhatsApp, o óbito do fax está decretado, as cartas parecem ter ganhado vida nova nos diversos livros de correspondências de escritores que estão chegando às livrarias: A Perda de Si reúne cartas de Antonin Artaud (leia resenha nesta página); A Aventura do Estilo tem conversas de Robert Louis Stevenson e Henry James (ambos pela coleção Marginália, da editora Rocco, com curadoria de Miguel Conde, que ainda deve publicar cartas de Franz Kafka, Gertrude Stein e outros); Descendo a Rua da Bahia compila o colóquio de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, pela editora Bazar do Tempo.

“Essas cartas remontam ao primeiro encontro dos dois, em fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, no momento em que se realizava a Semana de Arte Moderna em São Paulo”, comenta Angelo Oswaldo de Araújo Santos, secretário de cultura do Estado de Minas Gerais, que ajudou a viabilizar o projeto do livro de missivas entre Drummond e Nava. “Eles sempre se corresponderam, até os anos 1930, quando ambos se fixaram no Rio de Janeiro, o Nava morando na Glória, e o Drummond em Copacabana.”

A importância dessas publicações reside em dois níveis, o do leitor e o do estudioso, na opinião de Pedro Vasquez, editor responsável pela publicação da obra de Clarice Lispector, que atualmente trabalha na organização de cartas da autora para um livro a ser publicado pela Rocco em 2020. “Para o leitor comum, é como ter contato pessoal, passar uma tarde com a Clarice, um fim de semana em Campos do Jordão com ela abrindo o coração”, acredita ele. “Ela sempre comentava o que estava escrevendo, as inquietações. Então, para o estudioso, cada vez que surge um documento dessa natureza, isso dá uma outra dimensão para a análise da obra”, acrescenta.

Com o ocaso da carta, o gênero epistolar também parece fadado ao fim no futuro. “A carta acabava conduzindo os interlocutores a ter uma comunicação mais refletida, organizada. O que a gente faz nos meios eletrônicos é o inverso disso”, acredita Daniel Galera, escritor paulistano radicado em Porto Alegre. “Como não tem custo, é instantâneo, tem uma quantidade enorme de ruído. Isso desqualifica a comunicação cotidiana para ser algo que valha a pena editar. Uma coisa é selecionar cartas enviadas, outra é ter acesso à conta de e-mail de um autor e tentar achar ali no meio o que é um debate relevante sobre a literatura ou a biografia dele.” 

Raphael Montes, que em seu livro mais recente, Jantar Secreto, narra trechos inteiros com a linguagem de WhatsApp, é mais otimista quanto à possibilidade de edição desse material. “Agora parece uma coisa surreal a ideia de haver um livro que reúna e-mails entre escritores, mas confesso que não acho estranho que isso vá existir”, afirma Montes. “Conheço pessoas que escrevem e-mails longos, demorados, que demandam o cuidado e atenção que uma carta demandava.”

Os dados dos Correios, porém, desmentem a tese da morte das missivas: 123 milhões de cartas não comerciais foram postadas em 2016; a média anual desde 2012 se mantém em 132 milhões. Além disso, mais de mil telegramas online são enviados diariamente. Outro exemplo de que a literatura epistolar ainda respira é o escritor sueco Fredrik Ekelund, que veio ao Brasil em 2014, durante a Copa do Mundo, e se correspondeu por cartas com o autor norueguês Karl Ove Knausgard, originando o livro Hjemme/Borte, publicado na Noruega no mesmo ano, mas ainda sem tradução por aqui.

O escritor Felipe Munhoz, autor de Mentiras, encontrou um meio-termo para escapar à efemeridade da comunicação eletrônica: escreve as cartas à mão, fotografa e envia por e-mail. “Eu estava cansado dessa correspondência imediata de WhatsApp, pouco elaborada, rasa, sem entrar em detalhes ou criar vínculos”, conta Munhoz. “O e-mail como suporte influencia o conteúdo. Eu sinto que, quando escrevo à mão, é muito diferente de quando escrevo no computador.”

Para Luiz Brás, autor de Anacrônicos, com o declínio da carta, “os leitores perdem a oportunidade de receber esses deliciosos diálogos compilados em livro. Os autores perdem um gênero dissertativo dos mais saborosos.” Ele arrisca ampliar o debate: “É mais uma tradição da sociedade agrária que desaparece na sociedade eletrônica. Talvez esse seja o destino do livro, em 500 anos, e da própria literatura, daqui a 5.000.”

Já Daniel Galera crê que a atuação performática nas redes sociais pode substituir a literatura epistolar no futuro: “Henry James nos deixa suas cartas, mas ele não estava lá dia e noite atuando no Facebook. Hoje, acompanhamos essa dimensão mais íntima, biográfica, dos autores em tempo real. Temos contato com uma versão filtrada por performance da vida dos autores, mas não deixa de ser uma espécie de contato interessante.”

Raphael Montes troca ideias por escrito com outros autores, como Luisa Geisler, Santiago Nazarian e Fabiane Guimarães. “A gente discute a voz do narrador, o estilo, a linguagem, os diálogos. A questão é que isso às vezes vem por e-mail, às vezes por Facebook ou por áudios do WhatsApp, então a troca de informações está mais dividida entre as várias mídias.”

Se os leitores do futuro podem não ter acesso a essa faceta epistolar dos autores atuais, os escritores estão cada vez mais sujeitos à lógica perversa da superexposição nas redes. Essa nova forma de expressão tem, sim, suas desvantagens, mas pelo menos acaba por tirar os escritores do pedestal em que sempre estiveram. Galera afirma que “a cultura contemporânea banaliza a figura do autor. Essa idealização que a gente imprime às figuras literárias do passado não é necessariamente boa.” A questão é como a literatura reagirá e quais são as ideias que os autores trarão para o debate a partir desse paradigma digital. 

Capa do livro 'Com o Mar por Meio', que traz cartas de José Saramago e Jorge Amado 

Com o Mar por Meio - Uma Amizade em Cartas Autores: Jorge Amado e José SaramagoOrganização: Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo VielEditora: Companhia das Letras 120 páginas R$ 59

Capa do livro 'Descendo a Rua da Bahia', com cartas de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava 

Descendo a Rua da Bahia Autores: Carlos Drummond de Andrade e Pedro NavaOrganização: Eliane Vasconcellos e Matildes Demetrio dos SantosEditora: Bazar do Tempo 240 páginas R$ 52 

Capa do livro 'A Perda de Si', com cartas de Antonin Artaud 

A Perda de Si (Coleção Marginália)Autor: Antonin ArtaudOrganização: Ana KifferEditora: Rocco 176 páginas R$ 34,50

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