Musil ainda perdurará quando Thomas Mann nos provocar bocejos. Acho que não existe ninguém a quem eu ame tanto quanto Stendhal. Se eu fosse Freud, sairia correndo de mim mesmo. Três autores, três diferentes juízos do escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994), Nobel de literatura de 1981, de quem a editora José Olympio lança uma nova edição de Sobre os Escritores, livro que traz uma seleção de discursos, aforismos e anotações do autor de Auto-de-Fé. Por coincidência, chega às livrarias uma obra que não trata de escritores, mas de leitores. Trata-se de O Leitor como Metáfora, do erudito argentino Alberto Manguel, diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Ambos, Canetti e Manguel, construíram bibliotecas que cresceram tanto a ponto de expulsá-los de casa.
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A dupla seria do tipo que Manguel define em seu livro como “traça”, leitor voraz que devora páginas sem descanso, uma criatura satirizada tanto nas caricaturas de Grandville, o cartunista francês do século 19, como nos romances de Flaubert. Mas, atenção: Manguel e Canetti estão longe do estereótipo consagrado por Grandville. Manguel, para se livrar da classificação, até menciona em seu ensaio o “louco dos livros”, leitor onívoro que identifica o acúmulo deles com a aquisição de conhecimento, exatamente como a dupla criada por Flaubert em seu derradeiro e inacabado livro, Bouvard e Pécuchet. Nele, dois livrescos querem decifrar o mundo em que vivem consultando dicionários e fazendo exercícios de livre associação.
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Canetti também tem o “louco dos livros” em sua obra. É um sinólogo e filólogo paranoico chamado Peter Kien, protagonista de Auto-de-Fé. Culto e dono da maior biblioteca de sua cidade, Kien vive para seus livros, mantendo-se distante do mundo real. É traído por sua governanta e o zelador, que o exploram, vai à bancarrota e, expulso de casa, se vê obrigado a interagir com o mundo exterior que até então negara. Kien morre em meio a seus livros, num ritual de autodestruição.
Ao lado do leitor “traça”, Manguel se vale de mais duas metáforas para definir outros tipos de leitores: o viajante, que faz dos livros uma jornada de descoberta do mundo, e o que se retira desse mundo para melhor entender seu papel, como São Jerônimo, que renunciou à sua biblioteca (não totalmente) e aos prazeres mundanos para construir seu andaime celeste. Jerônimo seria o leitor “torre’ – e Manguel cita grandes escritores, poetas e filósofos que se isolaram em busca do conhecimento, como Hölderlin em Tübingen, Leopardi em Recanati e Montaigne em Bordeaux.
O terceiro tipo a que Manguel alude tem mais o perfil de Dante e do contemporâneo holandês Claes Noteboom, que, para ele, “é um bom exemplo do leitor-viajante do século 21”, embora reconheça que a imagem desse não tem a ressonância que teve no passado. Para ele, a jornada espiritual de Dante não é um ato de viagem material, um “deslocamento no espaço, mas também no tempo”. Sua Divina Comédia foi escrita tomando como base a própria experiência existencial e sua leitura de uns poucos livros que carregava consigo (ou emprestados por seus anfitriões no exílio).
Elias Canetti, filho dos deslocamentos em massa que marcaram a Europa durante a última guerra mundial, conheceu igualmente o drama de remontar sua biblioteca fora da terra natal. O antissemitismo crescente após Hitler ocupar a Áustria obrigou Canetti a morar no subúrbio de Hampstead, perto de Londres, afastado de seus pares intelectuais. Não tinha boas recordações dos ingleses, apesar de ter recebido a cidadania britânica (passou os últimos 20 anos em Zurique, na Suíça). “Da população da Inglaterra que acossa a minha memória, William Blake é o único que me restou”. Canetti fala de um autor que viveu entre 1753 e 1827, porque Blake, para ele, encarna a velha Albion com seus cemitérios ao redor das velhas igrejas. Os outros, diz, passam. Blake continua ali “e de toda parte olha para mim”. Como leitor, Canetti o idolatra. Como escritor, o inveja. Diz que trocaria todo o “chiste do mundo e metade do espírito por uma linha daquele que via os anjos”.
Canetti também é impiedoso. Especialmente com o irlandês James Joyce (1882-1941). Não fosse pela cegueira, “haveria pouco para respeitá-lo”. Reclama que seu ídolo, o romancista austríaco Robert Musil (1880-1942), cujos livros foram banidos pelos nazistas, não teve a mesma projeção de Joyce, sendo foi injustamente esquecido após sua morte. “Os mitos representam mais para mim do que as palavras, e é o que me diferencia de Joyce”. Reconhece, entretanto, o seu esforço para o reconhecimento tardio do italiano Italo Svevo (1861-1928) – Joyce o conheceu em Trieste, em 1907.
A lista dos desafetos de Canetti é curiosa. O dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) seria um ardiloso seguidor de Hegel que se apropriou dos versos bíblicos em seu teatro didático. Basta consultar a Bíblia e comparar seus ditos com os tais versos para descobrir sua “fragilidade e pobreza”, segundo Canetti.
De Sartre ele não tem melhor opinião. Um ensaio de Octavio Paz sobre o filósofo francês diz exatamente o que Canetti pensa a seu respeito: “Jamais o considerei um poeta, e sim um analista panfletário”. O engajamento de Sartre o repugnava de tal modo que Canetti não admite mesmo sua contribuição para o pensamento filosófico do século 20. Voltaire, escreve ele, talvez dure mais por causa de sua rigidez – “mas talvez não muito”, acrescenta.
Um escritor com o qual se identificava parcialmente, por ter um diário que era irmão gêmeo do seu, foi o italiano Cesare Pavese (1908-1950), poeta antifascista. Canetti não conhecia muito da literatura de Pavese além do seu diário, mas sentia-se próximo do poeta que, apesar de defender a causa socialista, era como seus personagens – alheio ao mundano, recluso, um solitário. Pavese, que cometeu suicídio, adorava os contemporâneos americanos, como Hemingway, igualmente suicida, que Canetti detestava. Ficou indignado quando, em 1947, três anos antes de se matar, Pavese escreveu que Hemingway era o Stendhal do nosso tempo.
Stendhal também é citado no livro de Manguel sobre os leitores e suas metáforas, numa passagem de O Vermelho e o Negro em que o pai de Julian, ao ver o filho com um livro nas mãos em vez de cuidar da serraria, arranca o volume e o atira no rio. Ela ilustra sua suspeita de que, desde os tempos dos escribas mesopotâmicos, “o ofício do leitor foi suspeito de ser magicamente perigoso”. Talvez Canetti identificasse na citação de Pavese a Hemingway certa capitulação ao espírito literário norte-americano, admitindo mesmo que não era um escritor moderno. Talvez fosse um dos personagens que criou e ao qual se apegou de forma coerente para defender sua origem europeia. Ou criar heterônimos para se dividir como Fernando Pessoa, uma descoberta que o deixou pensando como conseguiu ser contemporâneo do poeta português durante 30 anos sem o conhecer.
A admiração vem logo seguida da demolição em Canetti. Um dos melhores textos de seu livro diz respeito ao poeta e dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837), a quem atribuiu a “mais completa reviravolta na literatura: a descoberta do diminuto, do mínimo”. E cita seu melhor exemplo: Woyzeck, sua última peça, que inspirou a ópera homônima de Alban Berg. Nada se compara nos dias de hoje à descrição da vida minúscula de um soldado acossado por vozes e massacrado pelos outros como Woyzeck, segundo Canetti.
Manguel diria que a escrita refinada de Büchner se dirige ao leitor viajante, aquele capaz de experimentar mentalmente os sofrimentos de Woyzeck e reconhecer de imediato a geografia do seu purgatório. Não lemos, devoramos Büchner, assim como devoramos Elias Canetti, o que não chega a ser exatamente um problema. “Ser uma traça de livros não precisa comportar sempre uma conotação negativa”, observa Manguel. “Ingerimos palavras, somos feitos de palavras, sabemos que palavras são nosso meio de estar no mundo, e é através das palavras que identificamos nossa realidade e por meio de palavras somos, nós mesmos, identificados”, conclui o escritor.