Livros do escritor indígena Ailton Krenak fazem alerta ambiental


Ganhador do prêmio Juca Pato de intelectual do ano em 2020, autor publica obras em que dá seu ponto de vista sobre a pandemia e o mundo contemporâneo

Por Aurora Bernardini
Atualização:

O escritor Ailton Krenak, líder indígena ambientalista dos mais destacados, detentor do prêmio Juca Pato de intelectual do ano (2020) e finalista do Jabuti com seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, tem agora publicados A Vida Não é Útil e O Amanhã Não Está à Venda.

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e ambientalista Ailton Krenak Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Os escritos de Krenak, desde

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O Eterno Retorno do Encontro

(1999) e sua excelente apresentação na

Coleção Encontros

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que reúne suas entrevistas de 1984 a 2013, têm o mérito de introduzir o leitor a uma série de questões – verdadeiras teses – fundamentais para a vida na Terra, que vêm sendo sucessivamente ampliadas e atualizadas.

Sabe-se que a aldeia dos Krenak, onde morava Ailton, situada entre Minas Gerais e Espírito Santo, foi uma das vítimas, em 2015, do rompimento criminoso da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale do Rio Doce e BHP Billiton. O rompimento lançou ao meio ambiente 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro, desencadeando efeitos a longo prazo na vida de milhares de pessoas e deixando o rio Doce, “em coma”, diz Ailton que, desde 1980, tem se dedicado à luta pelo reconhecimento dos direitos dos índios brasileiros constantemente violados (que contam hoje com aproximadamente 250 etnias, 900 mil pessoas e 150 línguas), e tem discutido questões quanto à sobrevivência, não apenas dos indígenas, mas da humanidade em geral.

Vamos sintetizar algumas dessas questões, esboçadas em seu livro finalista do prêmio Jabuti e amarradas nos livros de 2020.

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A ideia de que há uma humanidade esclarecida que deve ir ao encontro de outra, obscurecida (70% dos seres humanos, entre os quais os índios estão incluídos), em nome de uma concepção de verdade que separa Humanidade e Natureza e que guiou as escolhas feitas nos diferentes períodos da História, chegou a seu ponto crítico no século 21, em particular agora, diante da pandemia que nos assola.

O fato de essa humanidade se descolar da Terra e viver numa “abstração civilizatória” implica suprimir a diversidade, propor uma homogeneização em que o consumo tomou o lugar da cidadania, negar a pluralidade de formas de vida, suprimir as línguas naturais, preservando apenas as que interessam às corporações.

No Brasil, a máquina estatal desfaz as formas de organização das sociedades indígenas e o fato de contar para quem não sabe o que acontece com essas comunidades serve de inspiração para o alarme a ser dado ao mundo inteiro: estamos vivendo o Antropoceno, período da História da Terra em que o impacto com o clima e com os ecossistemas vai excluindo as fontes da vida. Qual é o mundo a ser deixado para a gerações futuras?

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Criamos uma abstração de unidade, o homem como medida de todas as coisas, e saímos atropelando tudo. Destruir florestas, rios, paisagens, assim como ignorar a morte de tantos seres mostra que não há nenhum parâmetro de qualidade na humanidade: isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade; pelo contrário, há prova de desqualificação dessa humanidade: todas as guerras até hoje mostram que a humanidade se comportou de modo a se tornar capaz de destruir o planeta várias vezes. 

Por suas lendas e tradições, os índios sabem que os seres humanos podem dar errado, por isso se filiam a todos os fenômenos da natureza e desenvolvem uma perspectiva coletiva, que – reitera Ailton em

A Vida Não é Útil

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– “é uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. Estamos andando aqui na Terra, mas andamos por outros lugares, também. A maioria dos parentes indígenas faz isso. É só você olhar a produção dos mais jovens que estão interagindo no campo da arte e da cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa perspectiva coletiva”. 

Após a pandemia deveremos convir que estamos vivendo uma transformação, ou seja, que a inserção da humanidade na biosfera terá que se dar de outra maneira. “Podemos habitar esse planeta, mas deverá ser de outro jeito”. É preciso evocar alguma visão para sair desse pântano – explica Ailton – e , para tanto, ele insiste, “o equipamento de que precisamos para estar na biosfera é o nosso corpo: ele tem os mesmos ciclos da Terra e nós não estamos dissociados dos outros seres: a comunhão com a Terra e com os ritmos da natureza nos darão potência... Essa sociedade de consumo em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo, mas nós não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã”

O autor acredita que a humanidade deve se educar “para desacelerar nosso uso de recursos naturais, diminuir o gasto excessivo de tudo”, mas que “não é inventando o mito da sustentabilidade que vamos avançar”. Ele acrescenta: “Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões (...). O capitalismo sofreu uma transformação tão grande que virou necrocapitalismo – diz Suely Rolnik em Esferas da Insurreição; que esse capitalismo nem precisa mais da materialidade das coisas, pode transformar tudo numa fantasia financeira e fazer de conta que o mundo está operante, ativo, mesmo quando tudo estiver entrando pelo cano( ...) é uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente os consome”.

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A conclusão a que Krenak chega é a seguinte: “A nossa mãe, a Terra nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brisas se mover, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? O que estamos vivendo pode ser obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca ao menos por um instante não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa (...) Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”

É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA DA USP

O escritor Ailton Krenak, líder indígena ambientalista dos mais destacados, detentor do prêmio Juca Pato de intelectual do ano (2020) e finalista do Jabuti com seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, tem agora publicados A Vida Não é Útil e O Amanhã Não Está à Venda.

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e ambientalista Ailton Krenak Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Os escritos de Krenak, desde

O Eterno Retorno do Encontro

(1999) e sua excelente apresentação na

Coleção Encontros

que reúne suas entrevistas de 1984 a 2013, têm o mérito de introduzir o leitor a uma série de questões – verdadeiras teses – fundamentais para a vida na Terra, que vêm sendo sucessivamente ampliadas e atualizadas.

Sabe-se que a aldeia dos Krenak, onde morava Ailton, situada entre Minas Gerais e Espírito Santo, foi uma das vítimas, em 2015, do rompimento criminoso da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale do Rio Doce e BHP Billiton. O rompimento lançou ao meio ambiente 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro, desencadeando efeitos a longo prazo na vida de milhares de pessoas e deixando o rio Doce, “em coma”, diz Ailton que, desde 1980, tem se dedicado à luta pelo reconhecimento dos direitos dos índios brasileiros constantemente violados (que contam hoje com aproximadamente 250 etnias, 900 mil pessoas e 150 línguas), e tem discutido questões quanto à sobrevivência, não apenas dos indígenas, mas da humanidade em geral.

Vamos sintetizar algumas dessas questões, esboçadas em seu livro finalista do prêmio Jabuti e amarradas nos livros de 2020.

A ideia de que há uma humanidade esclarecida que deve ir ao encontro de outra, obscurecida (70% dos seres humanos, entre os quais os índios estão incluídos), em nome de uma concepção de verdade que separa Humanidade e Natureza e que guiou as escolhas feitas nos diferentes períodos da História, chegou a seu ponto crítico no século 21, em particular agora, diante da pandemia que nos assola.

O fato de essa humanidade se descolar da Terra e viver numa “abstração civilizatória” implica suprimir a diversidade, propor uma homogeneização em que o consumo tomou o lugar da cidadania, negar a pluralidade de formas de vida, suprimir as línguas naturais, preservando apenas as que interessam às corporações.

No Brasil, a máquina estatal desfaz as formas de organização das sociedades indígenas e o fato de contar para quem não sabe o que acontece com essas comunidades serve de inspiração para o alarme a ser dado ao mundo inteiro: estamos vivendo o Antropoceno, período da História da Terra em que o impacto com o clima e com os ecossistemas vai excluindo as fontes da vida. Qual é o mundo a ser deixado para a gerações futuras?

Criamos uma abstração de unidade, o homem como medida de todas as coisas, e saímos atropelando tudo. Destruir florestas, rios, paisagens, assim como ignorar a morte de tantos seres mostra que não há nenhum parâmetro de qualidade na humanidade: isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade; pelo contrário, há prova de desqualificação dessa humanidade: todas as guerras até hoje mostram que a humanidade se comportou de modo a se tornar capaz de destruir o planeta várias vezes. 

Por suas lendas e tradições, os índios sabem que os seres humanos podem dar errado, por isso se filiam a todos os fenômenos da natureza e desenvolvem uma perspectiva coletiva, que – reitera Ailton em

A Vida Não é Útil

– “é uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. Estamos andando aqui na Terra, mas andamos por outros lugares, também. A maioria dos parentes indígenas faz isso. É só você olhar a produção dos mais jovens que estão interagindo no campo da arte e da cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa perspectiva coletiva”. 

Após a pandemia deveremos convir que estamos vivendo uma transformação, ou seja, que a inserção da humanidade na biosfera terá que se dar de outra maneira. “Podemos habitar esse planeta, mas deverá ser de outro jeito”. É preciso evocar alguma visão para sair desse pântano – explica Ailton – e , para tanto, ele insiste, “o equipamento de que precisamos para estar na biosfera é o nosso corpo: ele tem os mesmos ciclos da Terra e nós não estamos dissociados dos outros seres: a comunhão com a Terra e com os ritmos da natureza nos darão potência... Essa sociedade de consumo em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo, mas nós não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã”

O autor acredita que a humanidade deve se educar “para desacelerar nosso uso de recursos naturais, diminuir o gasto excessivo de tudo”, mas que “não é inventando o mito da sustentabilidade que vamos avançar”. Ele acrescenta: “Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões (...). O capitalismo sofreu uma transformação tão grande que virou necrocapitalismo – diz Suely Rolnik em Esferas da Insurreição; que esse capitalismo nem precisa mais da materialidade das coisas, pode transformar tudo numa fantasia financeira e fazer de conta que o mundo está operante, ativo, mesmo quando tudo estiver entrando pelo cano( ...) é uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente os consome”.

A conclusão a que Krenak chega é a seguinte: “A nossa mãe, a Terra nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brisas se mover, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? O que estamos vivendo pode ser obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca ao menos por um instante não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa (...) Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”

É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA DA USP

O escritor Ailton Krenak, líder indígena ambientalista dos mais destacados, detentor do prêmio Juca Pato de intelectual do ano (2020) e finalista do Jabuti com seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, tem agora publicados A Vida Não é Útil e O Amanhã Não Está à Venda.

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e ambientalista Ailton Krenak Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Os escritos de Krenak, desde

O Eterno Retorno do Encontro

(1999) e sua excelente apresentação na

Coleção Encontros

que reúne suas entrevistas de 1984 a 2013, têm o mérito de introduzir o leitor a uma série de questões – verdadeiras teses – fundamentais para a vida na Terra, que vêm sendo sucessivamente ampliadas e atualizadas.

Sabe-se que a aldeia dos Krenak, onde morava Ailton, situada entre Minas Gerais e Espírito Santo, foi uma das vítimas, em 2015, do rompimento criminoso da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale do Rio Doce e BHP Billiton. O rompimento lançou ao meio ambiente 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro, desencadeando efeitos a longo prazo na vida de milhares de pessoas e deixando o rio Doce, “em coma”, diz Ailton que, desde 1980, tem se dedicado à luta pelo reconhecimento dos direitos dos índios brasileiros constantemente violados (que contam hoje com aproximadamente 250 etnias, 900 mil pessoas e 150 línguas), e tem discutido questões quanto à sobrevivência, não apenas dos indígenas, mas da humanidade em geral.

Vamos sintetizar algumas dessas questões, esboçadas em seu livro finalista do prêmio Jabuti e amarradas nos livros de 2020.

A ideia de que há uma humanidade esclarecida que deve ir ao encontro de outra, obscurecida (70% dos seres humanos, entre os quais os índios estão incluídos), em nome de uma concepção de verdade que separa Humanidade e Natureza e que guiou as escolhas feitas nos diferentes períodos da História, chegou a seu ponto crítico no século 21, em particular agora, diante da pandemia que nos assola.

O fato de essa humanidade se descolar da Terra e viver numa “abstração civilizatória” implica suprimir a diversidade, propor uma homogeneização em que o consumo tomou o lugar da cidadania, negar a pluralidade de formas de vida, suprimir as línguas naturais, preservando apenas as que interessam às corporações.

No Brasil, a máquina estatal desfaz as formas de organização das sociedades indígenas e o fato de contar para quem não sabe o que acontece com essas comunidades serve de inspiração para o alarme a ser dado ao mundo inteiro: estamos vivendo o Antropoceno, período da História da Terra em que o impacto com o clima e com os ecossistemas vai excluindo as fontes da vida. Qual é o mundo a ser deixado para a gerações futuras?

Criamos uma abstração de unidade, o homem como medida de todas as coisas, e saímos atropelando tudo. Destruir florestas, rios, paisagens, assim como ignorar a morte de tantos seres mostra que não há nenhum parâmetro de qualidade na humanidade: isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade; pelo contrário, há prova de desqualificação dessa humanidade: todas as guerras até hoje mostram que a humanidade se comportou de modo a se tornar capaz de destruir o planeta várias vezes. 

Por suas lendas e tradições, os índios sabem que os seres humanos podem dar errado, por isso se filiam a todos os fenômenos da natureza e desenvolvem uma perspectiva coletiva, que – reitera Ailton em

A Vida Não é Útil

– “é uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. Estamos andando aqui na Terra, mas andamos por outros lugares, também. A maioria dos parentes indígenas faz isso. É só você olhar a produção dos mais jovens que estão interagindo no campo da arte e da cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa perspectiva coletiva”. 

Após a pandemia deveremos convir que estamos vivendo uma transformação, ou seja, que a inserção da humanidade na biosfera terá que se dar de outra maneira. “Podemos habitar esse planeta, mas deverá ser de outro jeito”. É preciso evocar alguma visão para sair desse pântano – explica Ailton – e , para tanto, ele insiste, “o equipamento de que precisamos para estar na biosfera é o nosso corpo: ele tem os mesmos ciclos da Terra e nós não estamos dissociados dos outros seres: a comunhão com a Terra e com os ritmos da natureza nos darão potência... Essa sociedade de consumo em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo, mas nós não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã”

O autor acredita que a humanidade deve se educar “para desacelerar nosso uso de recursos naturais, diminuir o gasto excessivo de tudo”, mas que “não é inventando o mito da sustentabilidade que vamos avançar”. Ele acrescenta: “Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões (...). O capitalismo sofreu uma transformação tão grande que virou necrocapitalismo – diz Suely Rolnik em Esferas da Insurreição; que esse capitalismo nem precisa mais da materialidade das coisas, pode transformar tudo numa fantasia financeira e fazer de conta que o mundo está operante, ativo, mesmo quando tudo estiver entrando pelo cano( ...) é uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente os consome”.

A conclusão a que Krenak chega é a seguinte: “A nossa mãe, a Terra nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brisas se mover, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? O que estamos vivendo pode ser obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca ao menos por um instante não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa (...) Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”

É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA DA USP

O escritor Ailton Krenak, líder indígena ambientalista dos mais destacados, detentor do prêmio Juca Pato de intelectual do ano (2020) e finalista do Jabuti com seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, tem agora publicados A Vida Não é Útil e O Amanhã Não Está à Venda.

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e ambientalista Ailton Krenak Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Os escritos de Krenak, desde

O Eterno Retorno do Encontro

(1999) e sua excelente apresentação na

Coleção Encontros

que reúne suas entrevistas de 1984 a 2013, têm o mérito de introduzir o leitor a uma série de questões – verdadeiras teses – fundamentais para a vida na Terra, que vêm sendo sucessivamente ampliadas e atualizadas.

Sabe-se que a aldeia dos Krenak, onde morava Ailton, situada entre Minas Gerais e Espírito Santo, foi uma das vítimas, em 2015, do rompimento criminoso da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale do Rio Doce e BHP Billiton. O rompimento lançou ao meio ambiente 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro, desencadeando efeitos a longo prazo na vida de milhares de pessoas e deixando o rio Doce, “em coma”, diz Ailton que, desde 1980, tem se dedicado à luta pelo reconhecimento dos direitos dos índios brasileiros constantemente violados (que contam hoje com aproximadamente 250 etnias, 900 mil pessoas e 150 línguas), e tem discutido questões quanto à sobrevivência, não apenas dos indígenas, mas da humanidade em geral.

Vamos sintetizar algumas dessas questões, esboçadas em seu livro finalista do prêmio Jabuti e amarradas nos livros de 2020.

A ideia de que há uma humanidade esclarecida que deve ir ao encontro de outra, obscurecida (70% dos seres humanos, entre os quais os índios estão incluídos), em nome de uma concepção de verdade que separa Humanidade e Natureza e que guiou as escolhas feitas nos diferentes períodos da História, chegou a seu ponto crítico no século 21, em particular agora, diante da pandemia que nos assola.

O fato de essa humanidade se descolar da Terra e viver numa “abstração civilizatória” implica suprimir a diversidade, propor uma homogeneização em que o consumo tomou o lugar da cidadania, negar a pluralidade de formas de vida, suprimir as línguas naturais, preservando apenas as que interessam às corporações.

No Brasil, a máquina estatal desfaz as formas de organização das sociedades indígenas e o fato de contar para quem não sabe o que acontece com essas comunidades serve de inspiração para o alarme a ser dado ao mundo inteiro: estamos vivendo o Antropoceno, período da História da Terra em que o impacto com o clima e com os ecossistemas vai excluindo as fontes da vida. Qual é o mundo a ser deixado para a gerações futuras?

Criamos uma abstração de unidade, o homem como medida de todas as coisas, e saímos atropelando tudo. Destruir florestas, rios, paisagens, assim como ignorar a morte de tantos seres mostra que não há nenhum parâmetro de qualidade na humanidade: isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade; pelo contrário, há prova de desqualificação dessa humanidade: todas as guerras até hoje mostram que a humanidade se comportou de modo a se tornar capaz de destruir o planeta várias vezes. 

Por suas lendas e tradições, os índios sabem que os seres humanos podem dar errado, por isso se filiam a todos os fenômenos da natureza e desenvolvem uma perspectiva coletiva, que – reitera Ailton em

A Vida Não é Útil

– “é uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. Estamos andando aqui na Terra, mas andamos por outros lugares, também. A maioria dos parentes indígenas faz isso. É só você olhar a produção dos mais jovens que estão interagindo no campo da arte e da cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa perspectiva coletiva”. 

Após a pandemia deveremos convir que estamos vivendo uma transformação, ou seja, que a inserção da humanidade na biosfera terá que se dar de outra maneira. “Podemos habitar esse planeta, mas deverá ser de outro jeito”. É preciso evocar alguma visão para sair desse pântano – explica Ailton – e , para tanto, ele insiste, “o equipamento de que precisamos para estar na biosfera é o nosso corpo: ele tem os mesmos ciclos da Terra e nós não estamos dissociados dos outros seres: a comunhão com a Terra e com os ritmos da natureza nos darão potência... Essa sociedade de consumo em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo, mas nós não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã”

O autor acredita que a humanidade deve se educar “para desacelerar nosso uso de recursos naturais, diminuir o gasto excessivo de tudo”, mas que “não é inventando o mito da sustentabilidade que vamos avançar”. Ele acrescenta: “Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões (...). O capitalismo sofreu uma transformação tão grande que virou necrocapitalismo – diz Suely Rolnik em Esferas da Insurreição; que esse capitalismo nem precisa mais da materialidade das coisas, pode transformar tudo numa fantasia financeira e fazer de conta que o mundo está operante, ativo, mesmo quando tudo estiver entrando pelo cano( ...) é uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente os consome”.

A conclusão a que Krenak chega é a seguinte: “A nossa mãe, a Terra nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brisas se mover, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? O que estamos vivendo pode ser obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca ao menos por um instante não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa (...) Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”

É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA DA USP

O escritor Ailton Krenak, líder indígena ambientalista dos mais destacados, detentor do prêmio Juca Pato de intelectual do ano (2020) e finalista do Jabuti com seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, tem agora publicados A Vida Não é Útil e O Amanhã Não Está à Venda.

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e ambientalista Ailton Krenak Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Os escritos de Krenak, desde

O Eterno Retorno do Encontro

(1999) e sua excelente apresentação na

Coleção Encontros

que reúne suas entrevistas de 1984 a 2013, têm o mérito de introduzir o leitor a uma série de questões – verdadeiras teses – fundamentais para a vida na Terra, que vêm sendo sucessivamente ampliadas e atualizadas.

Sabe-se que a aldeia dos Krenak, onde morava Ailton, situada entre Minas Gerais e Espírito Santo, foi uma das vítimas, em 2015, do rompimento criminoso da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale do Rio Doce e BHP Billiton. O rompimento lançou ao meio ambiente 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro, desencadeando efeitos a longo prazo na vida de milhares de pessoas e deixando o rio Doce, “em coma”, diz Ailton que, desde 1980, tem se dedicado à luta pelo reconhecimento dos direitos dos índios brasileiros constantemente violados (que contam hoje com aproximadamente 250 etnias, 900 mil pessoas e 150 línguas), e tem discutido questões quanto à sobrevivência, não apenas dos indígenas, mas da humanidade em geral.

Vamos sintetizar algumas dessas questões, esboçadas em seu livro finalista do prêmio Jabuti e amarradas nos livros de 2020.

A ideia de que há uma humanidade esclarecida que deve ir ao encontro de outra, obscurecida (70% dos seres humanos, entre os quais os índios estão incluídos), em nome de uma concepção de verdade que separa Humanidade e Natureza e que guiou as escolhas feitas nos diferentes períodos da História, chegou a seu ponto crítico no século 21, em particular agora, diante da pandemia que nos assola.

O fato de essa humanidade se descolar da Terra e viver numa “abstração civilizatória” implica suprimir a diversidade, propor uma homogeneização em que o consumo tomou o lugar da cidadania, negar a pluralidade de formas de vida, suprimir as línguas naturais, preservando apenas as que interessam às corporações.

No Brasil, a máquina estatal desfaz as formas de organização das sociedades indígenas e o fato de contar para quem não sabe o que acontece com essas comunidades serve de inspiração para o alarme a ser dado ao mundo inteiro: estamos vivendo o Antropoceno, período da História da Terra em que o impacto com o clima e com os ecossistemas vai excluindo as fontes da vida. Qual é o mundo a ser deixado para a gerações futuras?

Criamos uma abstração de unidade, o homem como medida de todas as coisas, e saímos atropelando tudo. Destruir florestas, rios, paisagens, assim como ignorar a morte de tantos seres mostra que não há nenhum parâmetro de qualidade na humanidade: isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade; pelo contrário, há prova de desqualificação dessa humanidade: todas as guerras até hoje mostram que a humanidade se comportou de modo a se tornar capaz de destruir o planeta várias vezes. 

Por suas lendas e tradições, os índios sabem que os seres humanos podem dar errado, por isso se filiam a todos os fenômenos da natureza e desenvolvem uma perspectiva coletiva, que – reitera Ailton em

A Vida Não é Útil

– “é uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. Estamos andando aqui na Terra, mas andamos por outros lugares, também. A maioria dos parentes indígenas faz isso. É só você olhar a produção dos mais jovens que estão interagindo no campo da arte e da cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa perspectiva coletiva”. 

Após a pandemia deveremos convir que estamos vivendo uma transformação, ou seja, que a inserção da humanidade na biosfera terá que se dar de outra maneira. “Podemos habitar esse planeta, mas deverá ser de outro jeito”. É preciso evocar alguma visão para sair desse pântano – explica Ailton – e , para tanto, ele insiste, “o equipamento de que precisamos para estar na biosfera é o nosso corpo: ele tem os mesmos ciclos da Terra e nós não estamos dissociados dos outros seres: a comunhão com a Terra e com os ritmos da natureza nos darão potência... Essa sociedade de consumo em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo, mas nós não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã”

O autor acredita que a humanidade deve se educar “para desacelerar nosso uso de recursos naturais, diminuir o gasto excessivo de tudo”, mas que “não é inventando o mito da sustentabilidade que vamos avançar”. Ele acrescenta: “Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões (...). O capitalismo sofreu uma transformação tão grande que virou necrocapitalismo – diz Suely Rolnik em Esferas da Insurreição; que esse capitalismo nem precisa mais da materialidade das coisas, pode transformar tudo numa fantasia financeira e fazer de conta que o mundo está operante, ativo, mesmo quando tudo estiver entrando pelo cano( ...) é uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente os consome”.

A conclusão a que Krenak chega é a seguinte: “A nossa mãe, a Terra nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brisas se mover, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? O que estamos vivendo pode ser obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca ao menos por um instante não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa (...) Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”

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