Livros mostram como o Vale do Silício ameaça a privacidade


Obras abordam riscos que a vigilância online oferece e as possíveis saídas para a atual situação

Por André Cáceres
Atualização:

Quando a ex-funcionária Frances Haugen vazou documentos sigilosos do Facebook para a imprensa depôs, em 5 de outubro, ao Senado dos Estados Unidos sobre como a rede social priorizava uma lógica perversa de crescimento a todo custo em detrimento da segurança, privacidade e saúde mental de seus usuários, ela lançou a empresa em uma das mais profundas crises dos seus 17 anos de história. 

Protesto compara Mark Zuckerberg ao 'viking' que participou da invasãoao Capitólio Foto: Jonathan Ernst/Reuters

Criado em 2004 como um mero site de entretenimento, fofoca e paquera para universitários, o Facebook cresceu ao ponto de se tornar não apenas um gigante no Vale do Silício, mas um agente relevante na arena política global. Em meio ao desgaste recente, a empresa cogita até mesmo mudar de nome, como informado pelo site The Verge nesta terça-feira, 19. Na esteira das acusações, seu CEO e criador Mark Zuckerberg foi incluído, nesta quarta-feira, 20, pelo procurador-geral do Distrito de Columbia, Karl Racine, no processo sobre o escândalo da empresa britânica de marketing político Cambridge Analytica, que usou o Facebook para coletar dados de 87 milhões de pessoas, interferindo decisivamente em resultados de eleições pelo mundo, incluindo o referendo do Brexit e a corrida presidencial que levou Donald Trump à Casa Branca, ambos em 2016.  À luz desses escândalos recentes, diversos livros publicados recentemente no Brasil mostram não apenas como as redes sociais impactam politicamente o mundo, mas também como oferecem ameaças à privacidade, à liberdade individual e à própria integridade física e mental de seus usuários.  Em Uma Verdade Incômoda (Companhia das Letras), as jornalistas Sheera Frenkel e Cecilia Kang narram toda a trajetória do Facebook, dos campus ao Capitólio. Elas mostram como a empresa lidou com a questão da liberdade de expressão e como sempre esteve despreparada para lidar com as repercussões do próprio modelo de negócios. Em 2006, quando sua equipe não passava de uma centena de pessoas, o Facebook teve de decidir se veicularia ou não anúncios pagos por autoridades do Oriente Médio sobre a questão palestina. Os desdobramentos políticos das decisões tomadas pela rede social são narrados no livro até o banimento de Trump após a invasão do Capitólio, em janeiro deste ano.  O tentacular poder acumulado por plataformas como o Facebook não impacta apenas figuras de renome. O relato de Frenkel e Kang dá conta, por exemplo, de como 52 funcionários, entre janeiro de 2014 e agosto de 2015, foram demitidos por abusar do acesso a informações de usuários. Um caso emblemático foi o de um engenheiro que usou seu cargo para bisbilhotar a localização e as mensagens de uma mulher com quem havia saído. Em Algoritmos da Opressão (Rua do Sabão), a professora da Universidade da Califórnia Safiya Noble mostra como não apenas as redes sociais, mas todos os algoritmos que regem o comportamento online podem ser vulneráveis aos preconceitos inerentes às pessoas que os programam. “Parte do desafio de compreender a opressão algorítmica é perceber que as formulações matemáticas que guiam as decisões automatizadas são feitas por seres humanos”, escreve ela.  “Embora frequentemente pensemos em termos como ‘big data’ e ‘algoritmos’ como sendo benignos, neutros ou objetivos, eles são tudo menos isso. As pessoas que definem essas decisões detêm todos os tipos de valores, muitos dos quais promovendo abertamente racismo, sexismo e noções falsas de meritocracia, o que está bem documentado em estudos sobre o Vale do Silício e outros corredores de tecnologia.” O livro de Safiya parte do enviesamento da ferramenta que autocompleta as buscas do Google para mostrar como estereótipos, boatos, preconceitos e noções equivocadas podem ser entranhadas nos mecanismos eletrônicos e produzir efeitos desastrosos.  Softwares de reconhecimento facial que identificam afrodescendentes como macacos, a busca por “nigger house” (expressão extremamente pejorativa em inglês, frequentemente traduzida por “casa crioula” em português) no Google Maps que levava à Casa Branca durante a presidência de Barack Obama e inteligências artificiais que reproduzem discurso de ódio são apenas alguns dos temas tratados pela autora. Ela mostra que por trás de cada erro cometido por máquinas ou algoritmos havia uma intenção maliciosa de algum programador humano, ainda que empresas como Google e Facebook defendam publicamente valores progressistas. Safiya mostra como os algoritmos em motores de busca vêm reproduzindo e perpetuando estereótipos e preconceitos já entranhados em quem os projetou, prejudicando comunidades inteiras.  Para além dessas questões, algo que diz respeito a todas as pessoas, inclusive aquelas que nem mesmo utilizam a internet ou acessam as plataformas das chamadas “big techs”, é o alardeado fim da privacidade. Dois livros recentemente publicados no Brasil atacam diretamente essa questão: Privacidade é Poder (Contracorrente), da filósofa e professora da Universidade de Oxford Carissa Véliz; e A Era do Capitalismo de Vigilância (Intrínseca), da psicóloga social e professora de Harvard Shoshana Zuboff.  Em seu livro, Véliz contra-argumenta uma falácia reproduzida por muitos usuários da internet: a de que não há necessidade de ter receio quanto às próprias informações pessoais por serem cidadãos comuns e não celebridades ou agentes políticos. “Você pode pensar que sua privacidade está segura porque você não é ninguém — nada de especial, interessante ou importante para se ver aqui. Não se subestime. Se você não fosse tão importante assim, empresas e governos não se dariam tanto trabalho para espioná-lo”, escreve a filósofa.  Véliz e Zuboff mostram como, apesar dos gigantescos lucros provenientes das operações das big techs, o principal ativo de empresas como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft não são produtos, marcas, expertise ou recursos humanos: são os dados coletados gratuitamente de seus usuários. Durante a Guerra Fria, raciocina Véliz, a Stasi tinha dados de menos de um terço das pessoas da Alemanha Oriental, enquanto atualmente governos e agências de inteligência têm acesso a informações muito mais detalhadas e sobre uma parcela muito maior da população, que as cede voluntariamente de maneira cotidiana.  Zuboff mostra como havia, no início do século 21, iniciativas que visavam proporcionar um ambiente tecnológico que priorizasse o bem-estar e a comodidade dos usuários, sem vigilância, como o projeto Aware Home, desenvolvido em 2000 pelo Instituto de Tecnologia da Geórgia, semelhante às casas conectadas contemporâneas. No entanto, a onda de vigilância provocada pelos atentados às Torres Gêmeas acabaram dando carta branca a governos e empresas para desenvolver o ecossistema da internet em um formato que valoriza muito menos a privacidade do usuário.  Se a tecnologia se desenvolveu por esses caminhos de modo proposital, sugere a pensadora, pode haver também um esforço no sentido contrário, por uma internet mais livre, inclusiva e segura.

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'Sou otimista', diz Carissa Véliz

Ao Estadão, Véliz explica algumas formas que pessoas comuns têm de lutar pela sua privacidade: 

“Comece protegendo a privacidade alheia criando uma cultura: não compartilhe mensagens que violam a privacidade de alguém, não fotografe sem consentimento, etc. Tenha horários e locais privados: com sua família, coloque o celular em outro cômodo. Para ter uma discussão franca ou uma festa divertida, peça que nada seja postado. Em vez do Google, use a busca do DuckDuckGo; ProtonMail, em vez do Gmail; Signal, em vez do WhatsApp. Não compre aparelhos de empresas que exploram seus dados, pois sempre haverá conflito de interesse. Não dê seu nome real ou e-mail a empresas que não precisem deles. Peça às empresas que apaguem seus dados. Mesmo que não acatem, isso cria um precedente para legisladores. Pressione os políticosa proteger sua privacidade”.

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Apesar das dificuldades implícitas nessa luta, a filósofa se diz esperançosa:

"No longo prazo, sou otimista. Acho que o panorama da privacidade é tão preocupante que é insustentável. É uma ameaça à igualdade, democracia e segurança nacional. Nenhum modelo de negócios compensa isso. Não permitimos que as pessoas cometam assalto à mão armada, mesmo sendo uma empreitada lucrativa. Há alguns modelos de negócios são são simplesmente tóxicos demais para a sociedade aguentar por muito tempo. A questão é: vamos acabar com o negócio dos dados a tempo, antes que algo terrível aconteça, ou vamos esperar uma catástrofe para agirmos juntos?"

Quando a ex-funcionária Frances Haugen vazou documentos sigilosos do Facebook para a imprensa depôs, em 5 de outubro, ao Senado dos Estados Unidos sobre como a rede social priorizava uma lógica perversa de crescimento a todo custo em detrimento da segurança, privacidade e saúde mental de seus usuários, ela lançou a empresa em uma das mais profundas crises dos seus 17 anos de história. 

Protesto compara Mark Zuckerberg ao 'viking' que participou da invasãoao Capitólio Foto: Jonathan Ernst/Reuters

Criado em 2004 como um mero site de entretenimento, fofoca e paquera para universitários, o Facebook cresceu ao ponto de se tornar não apenas um gigante no Vale do Silício, mas um agente relevante na arena política global. Em meio ao desgaste recente, a empresa cogita até mesmo mudar de nome, como informado pelo site The Verge nesta terça-feira, 19. Na esteira das acusações, seu CEO e criador Mark Zuckerberg foi incluído, nesta quarta-feira, 20, pelo procurador-geral do Distrito de Columbia, Karl Racine, no processo sobre o escândalo da empresa britânica de marketing político Cambridge Analytica, que usou o Facebook para coletar dados de 87 milhões de pessoas, interferindo decisivamente em resultados de eleições pelo mundo, incluindo o referendo do Brexit e a corrida presidencial que levou Donald Trump à Casa Branca, ambos em 2016.  À luz desses escândalos recentes, diversos livros publicados recentemente no Brasil mostram não apenas como as redes sociais impactam politicamente o mundo, mas também como oferecem ameaças à privacidade, à liberdade individual e à própria integridade física e mental de seus usuários.  Em Uma Verdade Incômoda (Companhia das Letras), as jornalistas Sheera Frenkel e Cecilia Kang narram toda a trajetória do Facebook, dos campus ao Capitólio. Elas mostram como a empresa lidou com a questão da liberdade de expressão e como sempre esteve despreparada para lidar com as repercussões do próprio modelo de negócios. Em 2006, quando sua equipe não passava de uma centena de pessoas, o Facebook teve de decidir se veicularia ou não anúncios pagos por autoridades do Oriente Médio sobre a questão palestina. Os desdobramentos políticos das decisões tomadas pela rede social são narrados no livro até o banimento de Trump após a invasão do Capitólio, em janeiro deste ano.  O tentacular poder acumulado por plataformas como o Facebook não impacta apenas figuras de renome. O relato de Frenkel e Kang dá conta, por exemplo, de como 52 funcionários, entre janeiro de 2014 e agosto de 2015, foram demitidos por abusar do acesso a informações de usuários. Um caso emblemático foi o de um engenheiro que usou seu cargo para bisbilhotar a localização e as mensagens de uma mulher com quem havia saído. Em Algoritmos da Opressão (Rua do Sabão), a professora da Universidade da Califórnia Safiya Noble mostra como não apenas as redes sociais, mas todos os algoritmos que regem o comportamento online podem ser vulneráveis aos preconceitos inerentes às pessoas que os programam. “Parte do desafio de compreender a opressão algorítmica é perceber que as formulações matemáticas que guiam as decisões automatizadas são feitas por seres humanos”, escreve ela.  “Embora frequentemente pensemos em termos como ‘big data’ e ‘algoritmos’ como sendo benignos, neutros ou objetivos, eles são tudo menos isso. As pessoas que definem essas decisões detêm todos os tipos de valores, muitos dos quais promovendo abertamente racismo, sexismo e noções falsas de meritocracia, o que está bem documentado em estudos sobre o Vale do Silício e outros corredores de tecnologia.” O livro de Safiya parte do enviesamento da ferramenta que autocompleta as buscas do Google para mostrar como estereótipos, boatos, preconceitos e noções equivocadas podem ser entranhadas nos mecanismos eletrônicos e produzir efeitos desastrosos.  Softwares de reconhecimento facial que identificam afrodescendentes como macacos, a busca por “nigger house” (expressão extremamente pejorativa em inglês, frequentemente traduzida por “casa crioula” em português) no Google Maps que levava à Casa Branca durante a presidência de Barack Obama e inteligências artificiais que reproduzem discurso de ódio são apenas alguns dos temas tratados pela autora. Ela mostra que por trás de cada erro cometido por máquinas ou algoritmos havia uma intenção maliciosa de algum programador humano, ainda que empresas como Google e Facebook defendam publicamente valores progressistas. Safiya mostra como os algoritmos em motores de busca vêm reproduzindo e perpetuando estereótipos e preconceitos já entranhados em quem os projetou, prejudicando comunidades inteiras.  Para além dessas questões, algo que diz respeito a todas as pessoas, inclusive aquelas que nem mesmo utilizam a internet ou acessam as plataformas das chamadas “big techs”, é o alardeado fim da privacidade. Dois livros recentemente publicados no Brasil atacam diretamente essa questão: Privacidade é Poder (Contracorrente), da filósofa e professora da Universidade de Oxford Carissa Véliz; e A Era do Capitalismo de Vigilância (Intrínseca), da psicóloga social e professora de Harvard Shoshana Zuboff.  Em seu livro, Véliz contra-argumenta uma falácia reproduzida por muitos usuários da internet: a de que não há necessidade de ter receio quanto às próprias informações pessoais por serem cidadãos comuns e não celebridades ou agentes políticos. “Você pode pensar que sua privacidade está segura porque você não é ninguém — nada de especial, interessante ou importante para se ver aqui. Não se subestime. Se você não fosse tão importante assim, empresas e governos não se dariam tanto trabalho para espioná-lo”, escreve a filósofa.  Véliz e Zuboff mostram como, apesar dos gigantescos lucros provenientes das operações das big techs, o principal ativo de empresas como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft não são produtos, marcas, expertise ou recursos humanos: são os dados coletados gratuitamente de seus usuários. Durante a Guerra Fria, raciocina Véliz, a Stasi tinha dados de menos de um terço das pessoas da Alemanha Oriental, enquanto atualmente governos e agências de inteligência têm acesso a informações muito mais detalhadas e sobre uma parcela muito maior da população, que as cede voluntariamente de maneira cotidiana.  Zuboff mostra como havia, no início do século 21, iniciativas que visavam proporcionar um ambiente tecnológico que priorizasse o bem-estar e a comodidade dos usuários, sem vigilância, como o projeto Aware Home, desenvolvido em 2000 pelo Instituto de Tecnologia da Geórgia, semelhante às casas conectadas contemporâneas. No entanto, a onda de vigilância provocada pelos atentados às Torres Gêmeas acabaram dando carta branca a governos e empresas para desenvolver o ecossistema da internet em um formato que valoriza muito menos a privacidade do usuário.  Se a tecnologia se desenvolveu por esses caminhos de modo proposital, sugere a pensadora, pode haver também um esforço no sentido contrário, por uma internet mais livre, inclusiva e segura.

'Sou otimista', diz Carissa Véliz

Ao Estadão, Véliz explica algumas formas que pessoas comuns têm de lutar pela sua privacidade: 

“Comece protegendo a privacidade alheia criando uma cultura: não compartilhe mensagens que violam a privacidade de alguém, não fotografe sem consentimento, etc. Tenha horários e locais privados: com sua família, coloque o celular em outro cômodo. Para ter uma discussão franca ou uma festa divertida, peça que nada seja postado. Em vez do Google, use a busca do DuckDuckGo; ProtonMail, em vez do Gmail; Signal, em vez do WhatsApp. Não compre aparelhos de empresas que exploram seus dados, pois sempre haverá conflito de interesse. Não dê seu nome real ou e-mail a empresas que não precisem deles. Peça às empresas que apaguem seus dados. Mesmo que não acatem, isso cria um precedente para legisladores. Pressione os políticosa proteger sua privacidade”.

Apesar das dificuldades implícitas nessa luta, a filósofa se diz esperançosa:

"No longo prazo, sou otimista. Acho que o panorama da privacidade é tão preocupante que é insustentável. É uma ameaça à igualdade, democracia e segurança nacional. Nenhum modelo de negócios compensa isso. Não permitimos que as pessoas cometam assalto à mão armada, mesmo sendo uma empreitada lucrativa. Há alguns modelos de negócios são são simplesmente tóxicos demais para a sociedade aguentar por muito tempo. A questão é: vamos acabar com o negócio dos dados a tempo, antes que algo terrível aconteça, ou vamos esperar uma catástrofe para agirmos juntos?"

Quando a ex-funcionária Frances Haugen vazou documentos sigilosos do Facebook para a imprensa depôs, em 5 de outubro, ao Senado dos Estados Unidos sobre como a rede social priorizava uma lógica perversa de crescimento a todo custo em detrimento da segurança, privacidade e saúde mental de seus usuários, ela lançou a empresa em uma das mais profundas crises dos seus 17 anos de história. 

Protesto compara Mark Zuckerberg ao 'viking' que participou da invasãoao Capitólio Foto: Jonathan Ernst/Reuters

Criado em 2004 como um mero site de entretenimento, fofoca e paquera para universitários, o Facebook cresceu ao ponto de se tornar não apenas um gigante no Vale do Silício, mas um agente relevante na arena política global. Em meio ao desgaste recente, a empresa cogita até mesmo mudar de nome, como informado pelo site The Verge nesta terça-feira, 19. Na esteira das acusações, seu CEO e criador Mark Zuckerberg foi incluído, nesta quarta-feira, 20, pelo procurador-geral do Distrito de Columbia, Karl Racine, no processo sobre o escândalo da empresa britânica de marketing político Cambridge Analytica, que usou o Facebook para coletar dados de 87 milhões de pessoas, interferindo decisivamente em resultados de eleições pelo mundo, incluindo o referendo do Brexit e a corrida presidencial que levou Donald Trump à Casa Branca, ambos em 2016.  À luz desses escândalos recentes, diversos livros publicados recentemente no Brasil mostram não apenas como as redes sociais impactam politicamente o mundo, mas também como oferecem ameaças à privacidade, à liberdade individual e à própria integridade física e mental de seus usuários.  Em Uma Verdade Incômoda (Companhia das Letras), as jornalistas Sheera Frenkel e Cecilia Kang narram toda a trajetória do Facebook, dos campus ao Capitólio. Elas mostram como a empresa lidou com a questão da liberdade de expressão e como sempre esteve despreparada para lidar com as repercussões do próprio modelo de negócios. Em 2006, quando sua equipe não passava de uma centena de pessoas, o Facebook teve de decidir se veicularia ou não anúncios pagos por autoridades do Oriente Médio sobre a questão palestina. Os desdobramentos políticos das decisões tomadas pela rede social são narrados no livro até o banimento de Trump após a invasão do Capitólio, em janeiro deste ano.  O tentacular poder acumulado por plataformas como o Facebook não impacta apenas figuras de renome. O relato de Frenkel e Kang dá conta, por exemplo, de como 52 funcionários, entre janeiro de 2014 e agosto de 2015, foram demitidos por abusar do acesso a informações de usuários. Um caso emblemático foi o de um engenheiro que usou seu cargo para bisbilhotar a localização e as mensagens de uma mulher com quem havia saído. Em Algoritmos da Opressão (Rua do Sabão), a professora da Universidade da Califórnia Safiya Noble mostra como não apenas as redes sociais, mas todos os algoritmos que regem o comportamento online podem ser vulneráveis aos preconceitos inerentes às pessoas que os programam. “Parte do desafio de compreender a opressão algorítmica é perceber que as formulações matemáticas que guiam as decisões automatizadas são feitas por seres humanos”, escreve ela.  “Embora frequentemente pensemos em termos como ‘big data’ e ‘algoritmos’ como sendo benignos, neutros ou objetivos, eles são tudo menos isso. As pessoas que definem essas decisões detêm todos os tipos de valores, muitos dos quais promovendo abertamente racismo, sexismo e noções falsas de meritocracia, o que está bem documentado em estudos sobre o Vale do Silício e outros corredores de tecnologia.” O livro de Safiya parte do enviesamento da ferramenta que autocompleta as buscas do Google para mostrar como estereótipos, boatos, preconceitos e noções equivocadas podem ser entranhadas nos mecanismos eletrônicos e produzir efeitos desastrosos.  Softwares de reconhecimento facial que identificam afrodescendentes como macacos, a busca por “nigger house” (expressão extremamente pejorativa em inglês, frequentemente traduzida por “casa crioula” em português) no Google Maps que levava à Casa Branca durante a presidência de Barack Obama e inteligências artificiais que reproduzem discurso de ódio são apenas alguns dos temas tratados pela autora. Ela mostra que por trás de cada erro cometido por máquinas ou algoritmos havia uma intenção maliciosa de algum programador humano, ainda que empresas como Google e Facebook defendam publicamente valores progressistas. Safiya mostra como os algoritmos em motores de busca vêm reproduzindo e perpetuando estereótipos e preconceitos já entranhados em quem os projetou, prejudicando comunidades inteiras.  Para além dessas questões, algo que diz respeito a todas as pessoas, inclusive aquelas que nem mesmo utilizam a internet ou acessam as plataformas das chamadas “big techs”, é o alardeado fim da privacidade. Dois livros recentemente publicados no Brasil atacam diretamente essa questão: Privacidade é Poder (Contracorrente), da filósofa e professora da Universidade de Oxford Carissa Véliz; e A Era do Capitalismo de Vigilância (Intrínseca), da psicóloga social e professora de Harvard Shoshana Zuboff.  Em seu livro, Véliz contra-argumenta uma falácia reproduzida por muitos usuários da internet: a de que não há necessidade de ter receio quanto às próprias informações pessoais por serem cidadãos comuns e não celebridades ou agentes políticos. “Você pode pensar que sua privacidade está segura porque você não é ninguém — nada de especial, interessante ou importante para se ver aqui. Não se subestime. Se você não fosse tão importante assim, empresas e governos não se dariam tanto trabalho para espioná-lo”, escreve a filósofa.  Véliz e Zuboff mostram como, apesar dos gigantescos lucros provenientes das operações das big techs, o principal ativo de empresas como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft não são produtos, marcas, expertise ou recursos humanos: são os dados coletados gratuitamente de seus usuários. Durante a Guerra Fria, raciocina Véliz, a Stasi tinha dados de menos de um terço das pessoas da Alemanha Oriental, enquanto atualmente governos e agências de inteligência têm acesso a informações muito mais detalhadas e sobre uma parcela muito maior da população, que as cede voluntariamente de maneira cotidiana.  Zuboff mostra como havia, no início do século 21, iniciativas que visavam proporcionar um ambiente tecnológico que priorizasse o bem-estar e a comodidade dos usuários, sem vigilância, como o projeto Aware Home, desenvolvido em 2000 pelo Instituto de Tecnologia da Geórgia, semelhante às casas conectadas contemporâneas. No entanto, a onda de vigilância provocada pelos atentados às Torres Gêmeas acabaram dando carta branca a governos e empresas para desenvolver o ecossistema da internet em um formato que valoriza muito menos a privacidade do usuário.  Se a tecnologia se desenvolveu por esses caminhos de modo proposital, sugere a pensadora, pode haver também um esforço no sentido contrário, por uma internet mais livre, inclusiva e segura.

'Sou otimista', diz Carissa Véliz

Ao Estadão, Véliz explica algumas formas que pessoas comuns têm de lutar pela sua privacidade: 

“Comece protegendo a privacidade alheia criando uma cultura: não compartilhe mensagens que violam a privacidade de alguém, não fotografe sem consentimento, etc. Tenha horários e locais privados: com sua família, coloque o celular em outro cômodo. Para ter uma discussão franca ou uma festa divertida, peça que nada seja postado. Em vez do Google, use a busca do DuckDuckGo; ProtonMail, em vez do Gmail; Signal, em vez do WhatsApp. Não compre aparelhos de empresas que exploram seus dados, pois sempre haverá conflito de interesse. Não dê seu nome real ou e-mail a empresas que não precisem deles. Peça às empresas que apaguem seus dados. Mesmo que não acatem, isso cria um precedente para legisladores. Pressione os políticosa proteger sua privacidade”.

Apesar das dificuldades implícitas nessa luta, a filósofa se diz esperançosa:

"No longo prazo, sou otimista. Acho que o panorama da privacidade é tão preocupante que é insustentável. É uma ameaça à igualdade, democracia e segurança nacional. Nenhum modelo de negócios compensa isso. Não permitimos que as pessoas cometam assalto à mão armada, mesmo sendo uma empreitada lucrativa. Há alguns modelos de negócios são são simplesmente tóxicos demais para a sociedade aguentar por muito tempo. A questão é: vamos acabar com o negócio dos dados a tempo, antes que algo terrível aconteça, ou vamos esperar uma catástrofe para agirmos juntos?"

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