Longo poema 'Sobre Isto', de Vladimir Maiakovski, ganha tradução


Inédito em português, texto reflete período de reclusão do poeta russo

Por Flávio Ricardo Vassoler

Eis o que nos diz a tradutora Letícia Mei a respeito da gênese do poema lírico Sobre Isto (Editora 34), do poeta russo Vladimir Maiakovski (1893-1930): “O longo poema lírico foi composto entre dezembro de 1922 e fevereiro de 1923, período no qual Maiakovski se isolou em seu apartamento na passagem Lubianski, em Moscou. A reclusão decorreu de uma grave discussão que tivera com Lília Brik (1891-1978), sua musa e grande amor”. 

Rara foto colorizada de VladimirMaiakovski Foto: Alexander Rodschenko

Ainda segundo Letícia Mei, o pathos da crise amorosa levara Maiakovski, poeta vinculado à revolução da sociedade e de cada um dos escaninhos da vida, a fazer as seguintes indagações: “Como reelaborar o tema do amor, como construir as novas relações sociais promovidas pela revolução [referência à Revolução Russa de 1917]? Como não aniquilar o amor com o cotidiano banal e comezinho que impele ao individualismo burguês? Em Sobre Isto, o poeta expõe toda a dor do dilema interior que seu gênio foi capaz de transpor da vida pessoal para a esfera universal.”

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Transtornado pela dor, o eu lírico de Maiakovski logo nos revela, em uma fusão inconsútil entre vida e versos, que o amor o coage à escrita: “Este tema chegou colérico,/ Ordenou:/ – Dá-me/ a rédea dos dias!” 

Como a inspiração se vê insuflada pelo amor em crise, o lirismo de Maiakovski (con)funde metalinguagem e saudade (forma e conteúdo), como que a nos revelar a gênese do sentimento/sentido poético: “Há um dia/ vi minha sombra na ponte./ Mas o ruído de sua voz está no meu encalço.” 

Ainda que afetado pelo amor – ou, por outra, sobretudo por estar afetado pelo amor –, Vladimir Maiakovski continua a dar vazão, em Sobre Isto, às experimentações imagéticas que o colocam entre os grandes desbravadores das vanguardas artísticas russas. É assim que o olhar prestidigitador do poeta espana “o pó secular se acumulou nos objetos” para sentenciar, junto ao parapeito ébrio (e suicida) de sua janela, que “as torres do Kremlin são como espadas”. 

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Ora, quem mais além do poeta atormentado pelo ciúme e pelo amor-próprio ferido conseguiria se identificar com a alteridade inóspita da calçada – “os garis varrem/ o corpo/ da calçada fria” – a ponto de já não se reconhecer em meio à densa floresta negra que imiscui afago e ruptura, lembranças e desprezo? “De pé contra a parede./ Eu não sou eu”.

Com o lusco-fusco dos “dias sorriem do cais neste momento” – teria o poeta se lembrado do narizinho enregelado de Lília Brik que ele insistia em beijar e acalentar no ápice do inverno? –, o olhar de Maiakovski caça as borboletas do imaginário e consegue discernir que, “entre as nuvens, amadureceu o melão lunar,/ obscurecendo a parede lentamente”. 

Ora, quem mais além do poeta fragilizado pela carência da saudade conseguiria se identificar com a tênue geometria das teias de aranha para, entre um trago e outro de vodca e em meio à névoa cambaleante do cigarro, chegar à conclusão empiricamente dúbia e poeticamente certeira de que as “teias de aranha não se penteiam com uma estaca”? 

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É quando “os álamos”, em sua altivez – dignidade que parece inalcançável para o poeta trôpego que deita sobre os ladrilhos gélidos e indiferentes da cozinha –, “os álamos tornam-se a medida do silêncio sepulcral,/ guardas noturnos,/ floresta policial”. 

Com seu lirismo transbordante, Vladimir Maiakovski só podia se sentir um completo inadaptado em meio ao cotidiano comezinho e filisteu que mesmo a Revolução Russa, na qual o poeta apostara todas as fichas de seus versos, não lograra subverter de pronto. É o que nos revela o linguista e teórico da literatura Roman Jakobson (1896-1982), citado por Letícia Mei no posfácio que a tradutora escreveu para Sobre Isto: “Jakobson identifica a essência da obra de Maiakovski na luta contra a vida cotidiana e o pensamento pequeno-burguês. O arqui-inimigo do poeta sempre foi o filisteísmo. Os maiores temores de Maiakovski eram a imutabilidade e a inércia da vida: ‘o fantasma de uma ordem mundial imutável – da vida cotidiana universal acomodada em apartamentos – sufoca o poeta’”. 

É assim que, ao clamar pelo amor nos versos finais de Sobre Isto, Maiakovski funde subjetividade e história (paixão e revolução) como que a arrolhar o pergaminho do futuro em uma garrafa que o poeta arremessa rumo ao mar revolto da vida: “Ressuscite-me –/ quero viver a vida até o final!/ Para que o amor não seja escravo/ de casamento,/ luxúria,/ pão,/ Maldizendo as camas,/ erguendo-se do estrado,/ para que o amor preencha a imensidão./ Para que no dia,/ em que envelhecer de dor,/ não suplique como mendigo./ Para que/ ao primeiro grito:/ – Camarada! –/ a terra atenda num giro./ Para não/ viver pelos buracos da morada./ Para que/ a família/ seja,/ após essa era que se encerra,/ o pai,/ no mínimo o mundo,/ a mãe – no mínimo a terra.”  *Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University

Eis o que nos diz a tradutora Letícia Mei a respeito da gênese do poema lírico Sobre Isto (Editora 34), do poeta russo Vladimir Maiakovski (1893-1930): “O longo poema lírico foi composto entre dezembro de 1922 e fevereiro de 1923, período no qual Maiakovski se isolou em seu apartamento na passagem Lubianski, em Moscou. A reclusão decorreu de uma grave discussão que tivera com Lília Brik (1891-1978), sua musa e grande amor”. 

Rara foto colorizada de VladimirMaiakovski Foto: Alexander Rodschenko

Ainda segundo Letícia Mei, o pathos da crise amorosa levara Maiakovski, poeta vinculado à revolução da sociedade e de cada um dos escaninhos da vida, a fazer as seguintes indagações: “Como reelaborar o tema do amor, como construir as novas relações sociais promovidas pela revolução [referência à Revolução Russa de 1917]? Como não aniquilar o amor com o cotidiano banal e comezinho que impele ao individualismo burguês? Em Sobre Isto, o poeta expõe toda a dor do dilema interior que seu gênio foi capaz de transpor da vida pessoal para a esfera universal.”

Transtornado pela dor, o eu lírico de Maiakovski logo nos revela, em uma fusão inconsútil entre vida e versos, que o amor o coage à escrita: “Este tema chegou colérico,/ Ordenou:/ – Dá-me/ a rédea dos dias!” 

Como a inspiração se vê insuflada pelo amor em crise, o lirismo de Maiakovski (con)funde metalinguagem e saudade (forma e conteúdo), como que a nos revelar a gênese do sentimento/sentido poético: “Há um dia/ vi minha sombra na ponte./ Mas o ruído de sua voz está no meu encalço.” 

Ainda que afetado pelo amor – ou, por outra, sobretudo por estar afetado pelo amor –, Vladimir Maiakovski continua a dar vazão, em Sobre Isto, às experimentações imagéticas que o colocam entre os grandes desbravadores das vanguardas artísticas russas. É assim que o olhar prestidigitador do poeta espana “o pó secular se acumulou nos objetos” para sentenciar, junto ao parapeito ébrio (e suicida) de sua janela, que “as torres do Kremlin são como espadas”. 

Ora, quem mais além do poeta atormentado pelo ciúme e pelo amor-próprio ferido conseguiria se identificar com a alteridade inóspita da calçada – “os garis varrem/ o corpo/ da calçada fria” – a ponto de já não se reconhecer em meio à densa floresta negra que imiscui afago e ruptura, lembranças e desprezo? “De pé contra a parede./ Eu não sou eu”.

Com o lusco-fusco dos “dias sorriem do cais neste momento” – teria o poeta se lembrado do narizinho enregelado de Lília Brik que ele insistia em beijar e acalentar no ápice do inverno? –, o olhar de Maiakovski caça as borboletas do imaginário e consegue discernir que, “entre as nuvens, amadureceu o melão lunar,/ obscurecendo a parede lentamente”. 

Ora, quem mais além do poeta fragilizado pela carência da saudade conseguiria se identificar com a tênue geometria das teias de aranha para, entre um trago e outro de vodca e em meio à névoa cambaleante do cigarro, chegar à conclusão empiricamente dúbia e poeticamente certeira de que as “teias de aranha não se penteiam com uma estaca”? 

É quando “os álamos”, em sua altivez – dignidade que parece inalcançável para o poeta trôpego que deita sobre os ladrilhos gélidos e indiferentes da cozinha –, “os álamos tornam-se a medida do silêncio sepulcral,/ guardas noturnos,/ floresta policial”. 

Com seu lirismo transbordante, Vladimir Maiakovski só podia se sentir um completo inadaptado em meio ao cotidiano comezinho e filisteu que mesmo a Revolução Russa, na qual o poeta apostara todas as fichas de seus versos, não lograra subverter de pronto. É o que nos revela o linguista e teórico da literatura Roman Jakobson (1896-1982), citado por Letícia Mei no posfácio que a tradutora escreveu para Sobre Isto: “Jakobson identifica a essência da obra de Maiakovski na luta contra a vida cotidiana e o pensamento pequeno-burguês. O arqui-inimigo do poeta sempre foi o filisteísmo. Os maiores temores de Maiakovski eram a imutabilidade e a inércia da vida: ‘o fantasma de uma ordem mundial imutável – da vida cotidiana universal acomodada em apartamentos – sufoca o poeta’”. 

É assim que, ao clamar pelo amor nos versos finais de Sobre Isto, Maiakovski funde subjetividade e história (paixão e revolução) como que a arrolhar o pergaminho do futuro em uma garrafa que o poeta arremessa rumo ao mar revolto da vida: “Ressuscite-me –/ quero viver a vida até o final!/ Para que o amor não seja escravo/ de casamento,/ luxúria,/ pão,/ Maldizendo as camas,/ erguendo-se do estrado,/ para que o amor preencha a imensidão./ Para que no dia,/ em que envelhecer de dor,/ não suplique como mendigo./ Para que/ ao primeiro grito:/ – Camarada! –/ a terra atenda num giro./ Para não/ viver pelos buracos da morada./ Para que/ a família/ seja,/ após essa era que se encerra,/ o pai,/ no mínimo o mundo,/ a mãe – no mínimo a terra.”  *Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University

Eis o que nos diz a tradutora Letícia Mei a respeito da gênese do poema lírico Sobre Isto (Editora 34), do poeta russo Vladimir Maiakovski (1893-1930): “O longo poema lírico foi composto entre dezembro de 1922 e fevereiro de 1923, período no qual Maiakovski se isolou em seu apartamento na passagem Lubianski, em Moscou. A reclusão decorreu de uma grave discussão que tivera com Lília Brik (1891-1978), sua musa e grande amor”. 

Rara foto colorizada de VladimirMaiakovski Foto: Alexander Rodschenko

Ainda segundo Letícia Mei, o pathos da crise amorosa levara Maiakovski, poeta vinculado à revolução da sociedade e de cada um dos escaninhos da vida, a fazer as seguintes indagações: “Como reelaborar o tema do amor, como construir as novas relações sociais promovidas pela revolução [referência à Revolução Russa de 1917]? Como não aniquilar o amor com o cotidiano banal e comezinho que impele ao individualismo burguês? Em Sobre Isto, o poeta expõe toda a dor do dilema interior que seu gênio foi capaz de transpor da vida pessoal para a esfera universal.”

Transtornado pela dor, o eu lírico de Maiakovski logo nos revela, em uma fusão inconsútil entre vida e versos, que o amor o coage à escrita: “Este tema chegou colérico,/ Ordenou:/ – Dá-me/ a rédea dos dias!” 

Como a inspiração se vê insuflada pelo amor em crise, o lirismo de Maiakovski (con)funde metalinguagem e saudade (forma e conteúdo), como que a nos revelar a gênese do sentimento/sentido poético: “Há um dia/ vi minha sombra na ponte./ Mas o ruído de sua voz está no meu encalço.” 

Ainda que afetado pelo amor – ou, por outra, sobretudo por estar afetado pelo amor –, Vladimir Maiakovski continua a dar vazão, em Sobre Isto, às experimentações imagéticas que o colocam entre os grandes desbravadores das vanguardas artísticas russas. É assim que o olhar prestidigitador do poeta espana “o pó secular se acumulou nos objetos” para sentenciar, junto ao parapeito ébrio (e suicida) de sua janela, que “as torres do Kremlin são como espadas”. 

Ora, quem mais além do poeta atormentado pelo ciúme e pelo amor-próprio ferido conseguiria se identificar com a alteridade inóspita da calçada – “os garis varrem/ o corpo/ da calçada fria” – a ponto de já não se reconhecer em meio à densa floresta negra que imiscui afago e ruptura, lembranças e desprezo? “De pé contra a parede./ Eu não sou eu”.

Com o lusco-fusco dos “dias sorriem do cais neste momento” – teria o poeta se lembrado do narizinho enregelado de Lília Brik que ele insistia em beijar e acalentar no ápice do inverno? –, o olhar de Maiakovski caça as borboletas do imaginário e consegue discernir que, “entre as nuvens, amadureceu o melão lunar,/ obscurecendo a parede lentamente”. 

Ora, quem mais além do poeta fragilizado pela carência da saudade conseguiria se identificar com a tênue geometria das teias de aranha para, entre um trago e outro de vodca e em meio à névoa cambaleante do cigarro, chegar à conclusão empiricamente dúbia e poeticamente certeira de que as “teias de aranha não se penteiam com uma estaca”? 

É quando “os álamos”, em sua altivez – dignidade que parece inalcançável para o poeta trôpego que deita sobre os ladrilhos gélidos e indiferentes da cozinha –, “os álamos tornam-se a medida do silêncio sepulcral,/ guardas noturnos,/ floresta policial”. 

Com seu lirismo transbordante, Vladimir Maiakovski só podia se sentir um completo inadaptado em meio ao cotidiano comezinho e filisteu que mesmo a Revolução Russa, na qual o poeta apostara todas as fichas de seus versos, não lograra subverter de pronto. É o que nos revela o linguista e teórico da literatura Roman Jakobson (1896-1982), citado por Letícia Mei no posfácio que a tradutora escreveu para Sobre Isto: “Jakobson identifica a essência da obra de Maiakovski na luta contra a vida cotidiana e o pensamento pequeno-burguês. O arqui-inimigo do poeta sempre foi o filisteísmo. Os maiores temores de Maiakovski eram a imutabilidade e a inércia da vida: ‘o fantasma de uma ordem mundial imutável – da vida cotidiana universal acomodada em apartamentos – sufoca o poeta’”. 

É assim que, ao clamar pelo amor nos versos finais de Sobre Isto, Maiakovski funde subjetividade e história (paixão e revolução) como que a arrolhar o pergaminho do futuro em uma garrafa que o poeta arremessa rumo ao mar revolto da vida: “Ressuscite-me –/ quero viver a vida até o final!/ Para que o amor não seja escravo/ de casamento,/ luxúria,/ pão,/ Maldizendo as camas,/ erguendo-se do estrado,/ para que o amor preencha a imensidão./ Para que no dia,/ em que envelhecer de dor,/ não suplique como mendigo./ Para que/ ao primeiro grito:/ – Camarada! –/ a terra atenda num giro./ Para não/ viver pelos buracos da morada./ Para que/ a família/ seja,/ após essa era que se encerra,/ o pai,/ no mínimo o mundo,/ a mãe – no mínimo a terra.”  *Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University

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