Coluna quinzenal da jornalista Luciana Garbin que traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|Brasileira tenta reaver filhas levadas pelo ex sem ela saber ao Líbano, agora em guerra: ‘Desespero’


Há dois anos lutando para reencontrar suas gêmeas, Bianca Carneiro criou perfil Maternidade Roubada no Instagram e diz ter descoberto várias outras mães em situação parecida; pai não foi localizado pelo ‘Estadão’

Por Luciana Garbin

As cenas de bombardeios no Líbano que chamam a atenção do mundo têm para a professora brasileira Bianca Moreira Carneiro um significado bem mais devastador. Há dois anos e meio, suas filhas gêmeas foram levadas sem seu consentimento para o país árabe pelo ex-marido. Elas tinham então acabado de completar 4 anos de idade. Sua vida virou do avesso.

“Era para o genitor passar o fim de semana de Páscoa com as meninas, mas no domingo recebi uma chamada por vídeo do telefone de uma irmã dele que vivia no Líbano e nem sequer falava português. Estranhei. Quando abri a câmera, ele disse que estava lá com as meninas e mostrou a irmã de hijab (vestimenta muçulmana). Achei que ia desmaiar. Eu gritava, chorava, deitei no chão para não cair. E desde então vivo nessa angústia de não ter as minhas filhas.” O Estadão não conseguiu localizar o pai das meninas.

Bianca, com as filhas gêmeas antes de serem levadas para o Líbano Foto: Arquivo Pessoal de Bianca Moreira Carneiro
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Bianca conta que conheceu o ex, um cidadão libanês, numa noite de sexta-feira de 2017. No dia seguinte, ele telefonou dizendo que ela ia se casar com ele. “Ele acabou me ganhando na insistência. No início, me tratava como uma princesinha, mas quando engravidei das meninas as coisas começaram a ficar feias. Durante a gravidez ele já tinha umas explosões. Depois que elas nasceram, foi só piorando. No começo de 2022, avisei que queria o divórcio e aluguei um apartamento para morar com as meninas. Mudei com elas em 5 de fevereiro de 2022 e combinamos que elas ficariam cada dia com um e o ponto de encontro seria sempre na escola. Funcionou assim até abril.”

Seu drama começaria a tomar forma por meio de uma mera assinatura. Em 2021, quando Bianca ainda estava casada, o pai do então marido ficou doente no Líbano e ele queria que a família fosse visitá-lo. Mas, como Bianca tinha de dar aulas, os dois acertaram de fazer uma procuração mútua para que as crianças pudessem tirar documentos e viajar só com um genitor. A ideia era que ele viajaria antes para o Líbano e ela iria depois, com as meninas. A viagem acabou não acontecendo, mas, segundo Bianca, essa procuração foi usada pelo ex depois da separação para incluir no passaporte das meninas - tirado sem seu conhecimento - que elas poderiam viajar desacompanhadas de um dos pais. No sábado de Aleluia antes da Páscoa, 16 de abril de 2022, ele embarcou com as duas sem qualquer restrição.

“Quando eu descobri que ele estava no Líbano, comecei a gritar: ‘Por onde você saiu? Elas não têm passaporte, você saiu sem a minha permissão’. E ele: ‘Não, você deixou’. ‘Como assim eu deixei?’, perguntei. E ele: ‘Você assinou a procuração’. Aí eu quis morrer.”

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Como a procuração valia até 21 de junho de 2022, Bianca a princípio cultivou a esperança de que o ex voltaria em algumas semanas com as meninas. E prometeu até retomar o casamento caso ele trouxesse as crianças de volta. “Ele então me obrigou a voltar a usar aliança e a tirar foto de todos os lugares onde eu ia. Tinha de fotografar até quando ia dormir à noite. Aguentei isso até o dia em que ele disse que ia embarcar de volta para o Brasil, na primeira quinzena de maio. Mas, no dia de voltar, inventou que um documento estava vencido.” Na segunda tentativa, ela conta que o ex prometeu embarcar com as meninas em 4 de junho, mas novamente arrumou outra justificativa e acabou permanecendo no Líbano. “Em 21 de junho, quando vi que ele não voltou, entrei na Justiça com processo de guarda e separação à revelia.”

A advogada de Bianca, Patrícia Bozolan, diz que na Justiça brasileira a professora já conseguiu a busca e apreensão das crianças e a guarda unilateral. Também se divorciou por meio de publicação no Diário de Justiça em fevereiro de 2023.

O acirramento da relação levou à alienação parental. Bianca conta que nos primeiros seis meses o ex ainda permitia que ela fizesse videochamadas diárias para as meninas, mas de repente cortou todo o contato dela com as meninas. “O primeiro Natal foi o mais horrível. Ele não me deixou falar com elas. E, no ano seguinte, consegui falar apenas três vezes com as minhas filhas”, conta. A primeira vez foi em maio, a segunda em setembro e a terceira no Natal. “Quando fiquei esse ano todo praticamente sem falar com elas, só ficava pensando: Será que elas me esqueceram? Será que elas pensam que eu as abandonei? Mas, no dia em que me viram, elas ficaram eufóricas e isso me deu esperança para continuar lutando.”

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Junto à alegria de ver as filhas no Dia das Mães de 2023, veio também a constatação de que elas já não entendiam mais direito o português. “Perguntei: ‘Tá tudo bem?’. E elas respondiam: ‘Sim’. ‘Foram na escola?’ ‘Não?’ ‘Por quê?’ ‘Sim’.” Desde então, Bianca passou a estudar árabe para conseguir se comunicar com as meninas sem a necessidade de tradução do ex. Mesmo assim, todas as conversas da mãe com as meninas são monitoradas.

Bianca diz que já buscou ajuda em todos os lugares que conhecia para reaver as filhas. Tentou vários ministérios, órgãos de defesa das mulheres, pediu ajuda a parlamentares de direitos humanos e até comprou ingresso para a festa de aniversário do PT para tentar, sem sucesso, contar seu drama para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Janja Lula da Silva. Mas nunca conseguiu ser ouvida. “No final, eu sou uma mera professora de gramática do ensino médio de Brasília. O genitor das minhas filhas sempre me diz: ‘Manda a sua polícia me pegar aqui’. Essa certeza da impunidade é revoltante.”

Legalmente falando, um dos grandes problemas é que, diferentemente do Brasil e de outros países, o Líbano não é signatário da Convenção de Haia. Isso significa que ferramentas que poderiam ser usadas no caso de subtração de crianças e adolescentes não são aplicáveis.

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Hoje o nome das crianças está no alerta amarelo da Interpol. Isso significa que, se se movimentarem por países signatários do Tratado de Haia, eu tenho de ser avisada. Mas, como o Líbano não está no tratado, nosso mandado de busca e apreensão termina em Cumbica. Sequestrar filhos é o novo feminicídio. Ele mata a mulher em vida e não acontece nada com quem leva a criança.

Bianca Moreira Carneiro

Maternidade roubada

Dois anos depois de as gêmeas serem levadas do Brasil, sem saber mais a quem recorrer, Bianca criou um perfil no Instagram chamado Maternidade Roubada, hoje com 12,5 mil seguidores. Nele, posta fotos com as meninas, lembra histórias com elas, conta detalhes de seu drama. “A verdade é que, cada vez que faço um vídeo, me sinto totalmente exposta, mas meu objetivo foi fazer um memorial para elas. No aniversário delas, por exemplo, pedi para pessoas que as conhecem gravarem mensagens. Minha esperança é de que quando elas quiserem saber detalhes do que aconteceu encontrem esse perfil. Logo elas serão adolescentes e adolescentes são curiosos.”

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Bianca diz que, ao ir para o Instagram pedir socorro, acabou também descobrindo muitos casos parecidos ao seu. “Para minha surpresa, me deparei com várias pessoas na mesma situação. Muitas mulheres já me procuraram e acabei apoiando gente dentro e fora do Brasil. Mulheres que se relacionam com estrangeiros, árabes por exemplo.”

Outra surpresa ao abrir o perfil no Instagram, conta, foi o ex propor que ela passasse a ligar todos os dias às 13 horas para falar com as meninas. A trégua, no entanto, durou pouco e vira e mexe o contato é cortado. “Quando a guerra no Líbano começou, fiquei novamente duas semanas sem notícias das minhas filhas. Elas não estão indo mais na escola. O ano letivo deveria ter começado em agosto, mas elas não voltaram às aulas. Imagina o que é para uma mãe professora saber disso? Que as meninas poderiam estar aqui em segurança estudando e estão no meio da guerra?”

E como ela tem lidado com isso? “É desesperador. Como o território do Líbano é pequeno, com o avanço de Israel alguns metros de um míssil errado podem ser fatais. Em todo esse tempo em que estou sem elas vivo sempre em alerta, sempre preocupada. A única coisa que me acalma são as vezes em que posso falar com elas por vídeo, ver que não estão doentes. Eu sempre tento me tranquilizar pensando que uma tem a outra, pois elas são muito ligadas. Mas, depois que a guerra começou, passei a não ver mais jornal para não chorar o dia inteiro. Tomo remédio para ansiedade, mesmo assim fico apavorada, sem ar, com taquicardia.”

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A guerra, porém, chegou a dar mais uma esperança a Bianca. Há alguns dias, ao falar para o ex dos voos de repatriação que o Brasil faria, ele disse que toparia voltar, “para proteger as meninas”. A professora então mandou os nome dele e das gêmeas, hoje com 6 anos, para a Embaixada do Brasil no Líbano e eles foram incluídos na lista de pessoas que poderiam embarcar no avião da Força Aérea Brasileira (FAB) enviado em 5 de outubro para repatriar 229 brasileiros. Mas no final o pai acabou não aparecendo com as filhas para o embarque. Bianca diz que pediu então à Embaixada para incluí-los no segundo voo. Novamente conseguiu a inclusão. Mas outra vez não chegaram para o embarque.

“Eu já me decepcionei muitas vezes e a dor de cada decepção é sempre dilacerante”, resume Bianca. “No primeiro ano sem as meninas, eu nem conseguia falar sobre isso. Sentia uma culpa tão imensa de ter sido idiota (por assinar a procuração). Depois, com muita terapia, eu vi que eu fui vítima da história e não podia me culpar por ter confiado no homem que então era meu marido. E hoje eu estou assim: vivendo um dia de cada vez.”

Procurado pelo Estadão, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), explicou que, como o Líbano não é signatário da Convenção da Haia, não há Autoridade Central designada para o tema da Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes no país. “Os esforços da Autoridade Central do Brasil têm se concentrado na tramitação diplomática dos pedidos para o Líbano, na tentativa da resolução dos casos”, informou, sem maiores detalhes. Já o Ministério das Relações Exteriores informou, por meio de sua Assessoria de Imprensa, que não pode comentar casos específicos de assistência consular por questão de proteção de dados pessoais e direito à privacidade.

O Estadão também procurou a Embaixada do Líbano no Brasil, mas não obteve resposta. O ex-marido de Bianca não foi localizado - caso queira se manifestar, o espaço da coluna está aberto.

As cenas de bombardeios no Líbano que chamam a atenção do mundo têm para a professora brasileira Bianca Moreira Carneiro um significado bem mais devastador. Há dois anos e meio, suas filhas gêmeas foram levadas sem seu consentimento para o país árabe pelo ex-marido. Elas tinham então acabado de completar 4 anos de idade. Sua vida virou do avesso.

“Era para o genitor passar o fim de semana de Páscoa com as meninas, mas no domingo recebi uma chamada por vídeo do telefone de uma irmã dele que vivia no Líbano e nem sequer falava português. Estranhei. Quando abri a câmera, ele disse que estava lá com as meninas e mostrou a irmã de hijab (vestimenta muçulmana). Achei que ia desmaiar. Eu gritava, chorava, deitei no chão para não cair. E desde então vivo nessa angústia de não ter as minhas filhas.” O Estadão não conseguiu localizar o pai das meninas.

Bianca, com as filhas gêmeas antes de serem levadas para o Líbano Foto: Arquivo Pessoal de Bianca Moreira Carneiro

Bianca conta que conheceu o ex, um cidadão libanês, numa noite de sexta-feira de 2017. No dia seguinte, ele telefonou dizendo que ela ia se casar com ele. “Ele acabou me ganhando na insistência. No início, me tratava como uma princesinha, mas quando engravidei das meninas as coisas começaram a ficar feias. Durante a gravidez ele já tinha umas explosões. Depois que elas nasceram, foi só piorando. No começo de 2022, avisei que queria o divórcio e aluguei um apartamento para morar com as meninas. Mudei com elas em 5 de fevereiro de 2022 e combinamos que elas ficariam cada dia com um e o ponto de encontro seria sempre na escola. Funcionou assim até abril.”

Seu drama começaria a tomar forma por meio de uma mera assinatura. Em 2021, quando Bianca ainda estava casada, o pai do então marido ficou doente no Líbano e ele queria que a família fosse visitá-lo. Mas, como Bianca tinha de dar aulas, os dois acertaram de fazer uma procuração mútua para que as crianças pudessem tirar documentos e viajar só com um genitor. A ideia era que ele viajaria antes para o Líbano e ela iria depois, com as meninas. A viagem acabou não acontecendo, mas, segundo Bianca, essa procuração foi usada pelo ex depois da separação para incluir no passaporte das meninas - tirado sem seu conhecimento - que elas poderiam viajar desacompanhadas de um dos pais. No sábado de Aleluia antes da Páscoa, 16 de abril de 2022, ele embarcou com as duas sem qualquer restrição.

“Quando eu descobri que ele estava no Líbano, comecei a gritar: ‘Por onde você saiu? Elas não têm passaporte, você saiu sem a minha permissão’. E ele: ‘Não, você deixou’. ‘Como assim eu deixei?’, perguntei. E ele: ‘Você assinou a procuração’. Aí eu quis morrer.”

Como a procuração valia até 21 de junho de 2022, Bianca a princípio cultivou a esperança de que o ex voltaria em algumas semanas com as meninas. E prometeu até retomar o casamento caso ele trouxesse as crianças de volta. “Ele então me obrigou a voltar a usar aliança e a tirar foto de todos os lugares onde eu ia. Tinha de fotografar até quando ia dormir à noite. Aguentei isso até o dia em que ele disse que ia embarcar de volta para o Brasil, na primeira quinzena de maio. Mas, no dia de voltar, inventou que um documento estava vencido.” Na segunda tentativa, ela conta que o ex prometeu embarcar com as meninas em 4 de junho, mas novamente arrumou outra justificativa e acabou permanecendo no Líbano. “Em 21 de junho, quando vi que ele não voltou, entrei na Justiça com processo de guarda e separação à revelia.”

A advogada de Bianca, Patrícia Bozolan, diz que na Justiça brasileira a professora já conseguiu a busca e apreensão das crianças e a guarda unilateral. Também se divorciou por meio de publicação no Diário de Justiça em fevereiro de 2023.

O acirramento da relação levou à alienação parental. Bianca conta que nos primeiros seis meses o ex ainda permitia que ela fizesse videochamadas diárias para as meninas, mas de repente cortou todo o contato dela com as meninas. “O primeiro Natal foi o mais horrível. Ele não me deixou falar com elas. E, no ano seguinte, consegui falar apenas três vezes com as minhas filhas”, conta. A primeira vez foi em maio, a segunda em setembro e a terceira no Natal. “Quando fiquei esse ano todo praticamente sem falar com elas, só ficava pensando: Será que elas me esqueceram? Será que elas pensam que eu as abandonei? Mas, no dia em que me viram, elas ficaram eufóricas e isso me deu esperança para continuar lutando.”

Junto à alegria de ver as filhas no Dia das Mães de 2023, veio também a constatação de que elas já não entendiam mais direito o português. “Perguntei: ‘Tá tudo bem?’. E elas respondiam: ‘Sim’. ‘Foram na escola?’ ‘Não?’ ‘Por quê?’ ‘Sim’.” Desde então, Bianca passou a estudar árabe para conseguir se comunicar com as meninas sem a necessidade de tradução do ex. Mesmo assim, todas as conversas da mãe com as meninas são monitoradas.

Bianca diz que já buscou ajuda em todos os lugares que conhecia para reaver as filhas. Tentou vários ministérios, órgãos de defesa das mulheres, pediu ajuda a parlamentares de direitos humanos e até comprou ingresso para a festa de aniversário do PT para tentar, sem sucesso, contar seu drama para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Janja Lula da Silva. Mas nunca conseguiu ser ouvida. “No final, eu sou uma mera professora de gramática do ensino médio de Brasília. O genitor das minhas filhas sempre me diz: ‘Manda a sua polícia me pegar aqui’. Essa certeza da impunidade é revoltante.”

Legalmente falando, um dos grandes problemas é que, diferentemente do Brasil e de outros países, o Líbano não é signatário da Convenção de Haia. Isso significa que ferramentas que poderiam ser usadas no caso de subtração de crianças e adolescentes não são aplicáveis.

Hoje o nome das crianças está no alerta amarelo da Interpol. Isso significa que, se se movimentarem por países signatários do Tratado de Haia, eu tenho de ser avisada. Mas, como o Líbano não está no tratado, nosso mandado de busca e apreensão termina em Cumbica. Sequestrar filhos é o novo feminicídio. Ele mata a mulher em vida e não acontece nada com quem leva a criança.

Bianca Moreira Carneiro

Maternidade roubada

Dois anos depois de as gêmeas serem levadas do Brasil, sem saber mais a quem recorrer, Bianca criou um perfil no Instagram chamado Maternidade Roubada, hoje com 12,5 mil seguidores. Nele, posta fotos com as meninas, lembra histórias com elas, conta detalhes de seu drama. “A verdade é que, cada vez que faço um vídeo, me sinto totalmente exposta, mas meu objetivo foi fazer um memorial para elas. No aniversário delas, por exemplo, pedi para pessoas que as conhecem gravarem mensagens. Minha esperança é de que quando elas quiserem saber detalhes do que aconteceu encontrem esse perfil. Logo elas serão adolescentes e adolescentes são curiosos.”

Bianca diz que, ao ir para o Instagram pedir socorro, acabou também descobrindo muitos casos parecidos ao seu. “Para minha surpresa, me deparei com várias pessoas na mesma situação. Muitas mulheres já me procuraram e acabei apoiando gente dentro e fora do Brasil. Mulheres que se relacionam com estrangeiros, árabes por exemplo.”

Outra surpresa ao abrir o perfil no Instagram, conta, foi o ex propor que ela passasse a ligar todos os dias às 13 horas para falar com as meninas. A trégua, no entanto, durou pouco e vira e mexe o contato é cortado. “Quando a guerra no Líbano começou, fiquei novamente duas semanas sem notícias das minhas filhas. Elas não estão indo mais na escola. O ano letivo deveria ter começado em agosto, mas elas não voltaram às aulas. Imagina o que é para uma mãe professora saber disso? Que as meninas poderiam estar aqui em segurança estudando e estão no meio da guerra?”

E como ela tem lidado com isso? “É desesperador. Como o território do Líbano é pequeno, com o avanço de Israel alguns metros de um míssil errado podem ser fatais. Em todo esse tempo em que estou sem elas vivo sempre em alerta, sempre preocupada. A única coisa que me acalma são as vezes em que posso falar com elas por vídeo, ver que não estão doentes. Eu sempre tento me tranquilizar pensando que uma tem a outra, pois elas são muito ligadas. Mas, depois que a guerra começou, passei a não ver mais jornal para não chorar o dia inteiro. Tomo remédio para ansiedade, mesmo assim fico apavorada, sem ar, com taquicardia.”

A guerra, porém, chegou a dar mais uma esperança a Bianca. Há alguns dias, ao falar para o ex dos voos de repatriação que o Brasil faria, ele disse que toparia voltar, “para proteger as meninas”. A professora então mandou os nome dele e das gêmeas, hoje com 6 anos, para a Embaixada do Brasil no Líbano e eles foram incluídos na lista de pessoas que poderiam embarcar no avião da Força Aérea Brasileira (FAB) enviado em 5 de outubro para repatriar 229 brasileiros. Mas no final o pai acabou não aparecendo com as filhas para o embarque. Bianca diz que pediu então à Embaixada para incluí-los no segundo voo. Novamente conseguiu a inclusão. Mas outra vez não chegaram para o embarque.

“Eu já me decepcionei muitas vezes e a dor de cada decepção é sempre dilacerante”, resume Bianca. “No primeiro ano sem as meninas, eu nem conseguia falar sobre isso. Sentia uma culpa tão imensa de ter sido idiota (por assinar a procuração). Depois, com muita terapia, eu vi que eu fui vítima da história e não podia me culpar por ter confiado no homem que então era meu marido. E hoje eu estou assim: vivendo um dia de cada vez.”

Procurado pelo Estadão, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), explicou que, como o Líbano não é signatário da Convenção da Haia, não há Autoridade Central designada para o tema da Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes no país. “Os esforços da Autoridade Central do Brasil têm se concentrado na tramitação diplomática dos pedidos para o Líbano, na tentativa da resolução dos casos”, informou, sem maiores detalhes. Já o Ministério das Relações Exteriores informou, por meio de sua Assessoria de Imprensa, que não pode comentar casos específicos de assistência consular por questão de proteção de dados pessoais e direito à privacidade.

O Estadão também procurou a Embaixada do Líbano no Brasil, mas não obteve resposta. O ex-marido de Bianca não foi localizado - caso queira se manifestar, o espaço da coluna está aberto.

As cenas de bombardeios no Líbano que chamam a atenção do mundo têm para a professora brasileira Bianca Moreira Carneiro um significado bem mais devastador. Há dois anos e meio, suas filhas gêmeas foram levadas sem seu consentimento para o país árabe pelo ex-marido. Elas tinham então acabado de completar 4 anos de idade. Sua vida virou do avesso.

“Era para o genitor passar o fim de semana de Páscoa com as meninas, mas no domingo recebi uma chamada por vídeo do telefone de uma irmã dele que vivia no Líbano e nem sequer falava português. Estranhei. Quando abri a câmera, ele disse que estava lá com as meninas e mostrou a irmã de hijab (vestimenta muçulmana). Achei que ia desmaiar. Eu gritava, chorava, deitei no chão para não cair. E desde então vivo nessa angústia de não ter as minhas filhas.” O Estadão não conseguiu localizar o pai das meninas.

Bianca, com as filhas gêmeas antes de serem levadas para o Líbano Foto: Arquivo Pessoal de Bianca Moreira Carneiro

Bianca conta que conheceu o ex, um cidadão libanês, numa noite de sexta-feira de 2017. No dia seguinte, ele telefonou dizendo que ela ia se casar com ele. “Ele acabou me ganhando na insistência. No início, me tratava como uma princesinha, mas quando engravidei das meninas as coisas começaram a ficar feias. Durante a gravidez ele já tinha umas explosões. Depois que elas nasceram, foi só piorando. No começo de 2022, avisei que queria o divórcio e aluguei um apartamento para morar com as meninas. Mudei com elas em 5 de fevereiro de 2022 e combinamos que elas ficariam cada dia com um e o ponto de encontro seria sempre na escola. Funcionou assim até abril.”

Seu drama começaria a tomar forma por meio de uma mera assinatura. Em 2021, quando Bianca ainda estava casada, o pai do então marido ficou doente no Líbano e ele queria que a família fosse visitá-lo. Mas, como Bianca tinha de dar aulas, os dois acertaram de fazer uma procuração mútua para que as crianças pudessem tirar documentos e viajar só com um genitor. A ideia era que ele viajaria antes para o Líbano e ela iria depois, com as meninas. A viagem acabou não acontecendo, mas, segundo Bianca, essa procuração foi usada pelo ex depois da separação para incluir no passaporte das meninas - tirado sem seu conhecimento - que elas poderiam viajar desacompanhadas de um dos pais. No sábado de Aleluia antes da Páscoa, 16 de abril de 2022, ele embarcou com as duas sem qualquer restrição.

“Quando eu descobri que ele estava no Líbano, comecei a gritar: ‘Por onde você saiu? Elas não têm passaporte, você saiu sem a minha permissão’. E ele: ‘Não, você deixou’. ‘Como assim eu deixei?’, perguntei. E ele: ‘Você assinou a procuração’. Aí eu quis morrer.”

Como a procuração valia até 21 de junho de 2022, Bianca a princípio cultivou a esperança de que o ex voltaria em algumas semanas com as meninas. E prometeu até retomar o casamento caso ele trouxesse as crianças de volta. “Ele então me obrigou a voltar a usar aliança e a tirar foto de todos os lugares onde eu ia. Tinha de fotografar até quando ia dormir à noite. Aguentei isso até o dia em que ele disse que ia embarcar de volta para o Brasil, na primeira quinzena de maio. Mas, no dia de voltar, inventou que um documento estava vencido.” Na segunda tentativa, ela conta que o ex prometeu embarcar com as meninas em 4 de junho, mas novamente arrumou outra justificativa e acabou permanecendo no Líbano. “Em 21 de junho, quando vi que ele não voltou, entrei na Justiça com processo de guarda e separação à revelia.”

A advogada de Bianca, Patrícia Bozolan, diz que na Justiça brasileira a professora já conseguiu a busca e apreensão das crianças e a guarda unilateral. Também se divorciou por meio de publicação no Diário de Justiça em fevereiro de 2023.

O acirramento da relação levou à alienação parental. Bianca conta que nos primeiros seis meses o ex ainda permitia que ela fizesse videochamadas diárias para as meninas, mas de repente cortou todo o contato dela com as meninas. “O primeiro Natal foi o mais horrível. Ele não me deixou falar com elas. E, no ano seguinte, consegui falar apenas três vezes com as minhas filhas”, conta. A primeira vez foi em maio, a segunda em setembro e a terceira no Natal. “Quando fiquei esse ano todo praticamente sem falar com elas, só ficava pensando: Será que elas me esqueceram? Será que elas pensam que eu as abandonei? Mas, no dia em que me viram, elas ficaram eufóricas e isso me deu esperança para continuar lutando.”

Junto à alegria de ver as filhas no Dia das Mães de 2023, veio também a constatação de que elas já não entendiam mais direito o português. “Perguntei: ‘Tá tudo bem?’. E elas respondiam: ‘Sim’. ‘Foram na escola?’ ‘Não?’ ‘Por quê?’ ‘Sim’.” Desde então, Bianca passou a estudar árabe para conseguir se comunicar com as meninas sem a necessidade de tradução do ex. Mesmo assim, todas as conversas da mãe com as meninas são monitoradas.

Bianca diz que já buscou ajuda em todos os lugares que conhecia para reaver as filhas. Tentou vários ministérios, órgãos de defesa das mulheres, pediu ajuda a parlamentares de direitos humanos e até comprou ingresso para a festa de aniversário do PT para tentar, sem sucesso, contar seu drama para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Janja Lula da Silva. Mas nunca conseguiu ser ouvida. “No final, eu sou uma mera professora de gramática do ensino médio de Brasília. O genitor das minhas filhas sempre me diz: ‘Manda a sua polícia me pegar aqui’. Essa certeza da impunidade é revoltante.”

Legalmente falando, um dos grandes problemas é que, diferentemente do Brasil e de outros países, o Líbano não é signatário da Convenção de Haia. Isso significa que ferramentas que poderiam ser usadas no caso de subtração de crianças e adolescentes não são aplicáveis.

Hoje o nome das crianças está no alerta amarelo da Interpol. Isso significa que, se se movimentarem por países signatários do Tratado de Haia, eu tenho de ser avisada. Mas, como o Líbano não está no tratado, nosso mandado de busca e apreensão termina em Cumbica. Sequestrar filhos é o novo feminicídio. Ele mata a mulher em vida e não acontece nada com quem leva a criança.

Bianca Moreira Carneiro

Maternidade roubada

Dois anos depois de as gêmeas serem levadas do Brasil, sem saber mais a quem recorrer, Bianca criou um perfil no Instagram chamado Maternidade Roubada, hoje com 12,5 mil seguidores. Nele, posta fotos com as meninas, lembra histórias com elas, conta detalhes de seu drama. “A verdade é que, cada vez que faço um vídeo, me sinto totalmente exposta, mas meu objetivo foi fazer um memorial para elas. No aniversário delas, por exemplo, pedi para pessoas que as conhecem gravarem mensagens. Minha esperança é de que quando elas quiserem saber detalhes do que aconteceu encontrem esse perfil. Logo elas serão adolescentes e adolescentes são curiosos.”

Bianca diz que, ao ir para o Instagram pedir socorro, acabou também descobrindo muitos casos parecidos ao seu. “Para minha surpresa, me deparei com várias pessoas na mesma situação. Muitas mulheres já me procuraram e acabei apoiando gente dentro e fora do Brasil. Mulheres que se relacionam com estrangeiros, árabes por exemplo.”

Outra surpresa ao abrir o perfil no Instagram, conta, foi o ex propor que ela passasse a ligar todos os dias às 13 horas para falar com as meninas. A trégua, no entanto, durou pouco e vira e mexe o contato é cortado. “Quando a guerra no Líbano começou, fiquei novamente duas semanas sem notícias das minhas filhas. Elas não estão indo mais na escola. O ano letivo deveria ter começado em agosto, mas elas não voltaram às aulas. Imagina o que é para uma mãe professora saber disso? Que as meninas poderiam estar aqui em segurança estudando e estão no meio da guerra?”

E como ela tem lidado com isso? “É desesperador. Como o território do Líbano é pequeno, com o avanço de Israel alguns metros de um míssil errado podem ser fatais. Em todo esse tempo em que estou sem elas vivo sempre em alerta, sempre preocupada. A única coisa que me acalma são as vezes em que posso falar com elas por vídeo, ver que não estão doentes. Eu sempre tento me tranquilizar pensando que uma tem a outra, pois elas são muito ligadas. Mas, depois que a guerra começou, passei a não ver mais jornal para não chorar o dia inteiro. Tomo remédio para ansiedade, mesmo assim fico apavorada, sem ar, com taquicardia.”

A guerra, porém, chegou a dar mais uma esperança a Bianca. Há alguns dias, ao falar para o ex dos voos de repatriação que o Brasil faria, ele disse que toparia voltar, “para proteger as meninas”. A professora então mandou os nome dele e das gêmeas, hoje com 6 anos, para a Embaixada do Brasil no Líbano e eles foram incluídos na lista de pessoas que poderiam embarcar no avião da Força Aérea Brasileira (FAB) enviado em 5 de outubro para repatriar 229 brasileiros. Mas no final o pai acabou não aparecendo com as filhas para o embarque. Bianca diz que pediu então à Embaixada para incluí-los no segundo voo. Novamente conseguiu a inclusão. Mas outra vez não chegaram para o embarque.

“Eu já me decepcionei muitas vezes e a dor de cada decepção é sempre dilacerante”, resume Bianca. “No primeiro ano sem as meninas, eu nem conseguia falar sobre isso. Sentia uma culpa tão imensa de ter sido idiota (por assinar a procuração). Depois, com muita terapia, eu vi que eu fui vítima da história e não podia me culpar por ter confiado no homem que então era meu marido. E hoje eu estou assim: vivendo um dia de cada vez.”

Procurado pelo Estadão, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), explicou que, como o Líbano não é signatário da Convenção da Haia, não há Autoridade Central designada para o tema da Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes no país. “Os esforços da Autoridade Central do Brasil têm se concentrado na tramitação diplomática dos pedidos para o Líbano, na tentativa da resolução dos casos”, informou, sem maiores detalhes. Já o Ministério das Relações Exteriores informou, por meio de sua Assessoria de Imprensa, que não pode comentar casos específicos de assistência consular por questão de proteção de dados pessoais e direito à privacidade.

O Estadão também procurou a Embaixada do Líbano no Brasil, mas não obteve resposta. O ex-marido de Bianca não foi localizado - caso queira se manifestar, o espaço da coluna está aberto.

As cenas de bombardeios no Líbano que chamam a atenção do mundo têm para a professora brasileira Bianca Moreira Carneiro um significado bem mais devastador. Há dois anos e meio, suas filhas gêmeas foram levadas sem seu consentimento para o país árabe pelo ex-marido. Elas tinham então acabado de completar 4 anos de idade. Sua vida virou do avesso.

“Era para o genitor passar o fim de semana de Páscoa com as meninas, mas no domingo recebi uma chamada por vídeo do telefone de uma irmã dele que vivia no Líbano e nem sequer falava português. Estranhei. Quando abri a câmera, ele disse que estava lá com as meninas e mostrou a irmã de hijab (vestimenta muçulmana). Achei que ia desmaiar. Eu gritava, chorava, deitei no chão para não cair. E desde então vivo nessa angústia de não ter as minhas filhas.” O Estadão não conseguiu localizar o pai das meninas.

Bianca, com as filhas gêmeas antes de serem levadas para o Líbano Foto: Arquivo Pessoal de Bianca Moreira Carneiro

Bianca conta que conheceu o ex, um cidadão libanês, numa noite de sexta-feira de 2017. No dia seguinte, ele telefonou dizendo que ela ia se casar com ele. “Ele acabou me ganhando na insistência. No início, me tratava como uma princesinha, mas quando engravidei das meninas as coisas começaram a ficar feias. Durante a gravidez ele já tinha umas explosões. Depois que elas nasceram, foi só piorando. No começo de 2022, avisei que queria o divórcio e aluguei um apartamento para morar com as meninas. Mudei com elas em 5 de fevereiro de 2022 e combinamos que elas ficariam cada dia com um e o ponto de encontro seria sempre na escola. Funcionou assim até abril.”

Seu drama começaria a tomar forma por meio de uma mera assinatura. Em 2021, quando Bianca ainda estava casada, o pai do então marido ficou doente no Líbano e ele queria que a família fosse visitá-lo. Mas, como Bianca tinha de dar aulas, os dois acertaram de fazer uma procuração mútua para que as crianças pudessem tirar documentos e viajar só com um genitor. A ideia era que ele viajaria antes para o Líbano e ela iria depois, com as meninas. A viagem acabou não acontecendo, mas, segundo Bianca, essa procuração foi usada pelo ex depois da separação para incluir no passaporte das meninas - tirado sem seu conhecimento - que elas poderiam viajar desacompanhadas de um dos pais. No sábado de Aleluia antes da Páscoa, 16 de abril de 2022, ele embarcou com as duas sem qualquer restrição.

“Quando eu descobri que ele estava no Líbano, comecei a gritar: ‘Por onde você saiu? Elas não têm passaporte, você saiu sem a minha permissão’. E ele: ‘Não, você deixou’. ‘Como assim eu deixei?’, perguntei. E ele: ‘Você assinou a procuração’. Aí eu quis morrer.”

Como a procuração valia até 21 de junho de 2022, Bianca a princípio cultivou a esperança de que o ex voltaria em algumas semanas com as meninas. E prometeu até retomar o casamento caso ele trouxesse as crianças de volta. “Ele então me obrigou a voltar a usar aliança e a tirar foto de todos os lugares onde eu ia. Tinha de fotografar até quando ia dormir à noite. Aguentei isso até o dia em que ele disse que ia embarcar de volta para o Brasil, na primeira quinzena de maio. Mas, no dia de voltar, inventou que um documento estava vencido.” Na segunda tentativa, ela conta que o ex prometeu embarcar com as meninas em 4 de junho, mas novamente arrumou outra justificativa e acabou permanecendo no Líbano. “Em 21 de junho, quando vi que ele não voltou, entrei na Justiça com processo de guarda e separação à revelia.”

A advogada de Bianca, Patrícia Bozolan, diz que na Justiça brasileira a professora já conseguiu a busca e apreensão das crianças e a guarda unilateral. Também se divorciou por meio de publicação no Diário de Justiça em fevereiro de 2023.

O acirramento da relação levou à alienação parental. Bianca conta que nos primeiros seis meses o ex ainda permitia que ela fizesse videochamadas diárias para as meninas, mas de repente cortou todo o contato dela com as meninas. “O primeiro Natal foi o mais horrível. Ele não me deixou falar com elas. E, no ano seguinte, consegui falar apenas três vezes com as minhas filhas”, conta. A primeira vez foi em maio, a segunda em setembro e a terceira no Natal. “Quando fiquei esse ano todo praticamente sem falar com elas, só ficava pensando: Será que elas me esqueceram? Será que elas pensam que eu as abandonei? Mas, no dia em que me viram, elas ficaram eufóricas e isso me deu esperança para continuar lutando.”

Junto à alegria de ver as filhas no Dia das Mães de 2023, veio também a constatação de que elas já não entendiam mais direito o português. “Perguntei: ‘Tá tudo bem?’. E elas respondiam: ‘Sim’. ‘Foram na escola?’ ‘Não?’ ‘Por quê?’ ‘Sim’.” Desde então, Bianca passou a estudar árabe para conseguir se comunicar com as meninas sem a necessidade de tradução do ex. Mesmo assim, todas as conversas da mãe com as meninas são monitoradas.

Bianca diz que já buscou ajuda em todos os lugares que conhecia para reaver as filhas. Tentou vários ministérios, órgãos de defesa das mulheres, pediu ajuda a parlamentares de direitos humanos e até comprou ingresso para a festa de aniversário do PT para tentar, sem sucesso, contar seu drama para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Janja Lula da Silva. Mas nunca conseguiu ser ouvida. “No final, eu sou uma mera professora de gramática do ensino médio de Brasília. O genitor das minhas filhas sempre me diz: ‘Manda a sua polícia me pegar aqui’. Essa certeza da impunidade é revoltante.”

Legalmente falando, um dos grandes problemas é que, diferentemente do Brasil e de outros países, o Líbano não é signatário da Convenção de Haia. Isso significa que ferramentas que poderiam ser usadas no caso de subtração de crianças e adolescentes não são aplicáveis.

Hoje o nome das crianças está no alerta amarelo da Interpol. Isso significa que, se se movimentarem por países signatários do Tratado de Haia, eu tenho de ser avisada. Mas, como o Líbano não está no tratado, nosso mandado de busca e apreensão termina em Cumbica. Sequestrar filhos é o novo feminicídio. Ele mata a mulher em vida e não acontece nada com quem leva a criança.

Bianca Moreira Carneiro

Maternidade roubada

Dois anos depois de as gêmeas serem levadas do Brasil, sem saber mais a quem recorrer, Bianca criou um perfil no Instagram chamado Maternidade Roubada, hoje com 12,5 mil seguidores. Nele, posta fotos com as meninas, lembra histórias com elas, conta detalhes de seu drama. “A verdade é que, cada vez que faço um vídeo, me sinto totalmente exposta, mas meu objetivo foi fazer um memorial para elas. No aniversário delas, por exemplo, pedi para pessoas que as conhecem gravarem mensagens. Minha esperança é de que quando elas quiserem saber detalhes do que aconteceu encontrem esse perfil. Logo elas serão adolescentes e adolescentes são curiosos.”

Bianca diz que, ao ir para o Instagram pedir socorro, acabou também descobrindo muitos casos parecidos ao seu. “Para minha surpresa, me deparei com várias pessoas na mesma situação. Muitas mulheres já me procuraram e acabei apoiando gente dentro e fora do Brasil. Mulheres que se relacionam com estrangeiros, árabes por exemplo.”

Outra surpresa ao abrir o perfil no Instagram, conta, foi o ex propor que ela passasse a ligar todos os dias às 13 horas para falar com as meninas. A trégua, no entanto, durou pouco e vira e mexe o contato é cortado. “Quando a guerra no Líbano começou, fiquei novamente duas semanas sem notícias das minhas filhas. Elas não estão indo mais na escola. O ano letivo deveria ter começado em agosto, mas elas não voltaram às aulas. Imagina o que é para uma mãe professora saber disso? Que as meninas poderiam estar aqui em segurança estudando e estão no meio da guerra?”

E como ela tem lidado com isso? “É desesperador. Como o território do Líbano é pequeno, com o avanço de Israel alguns metros de um míssil errado podem ser fatais. Em todo esse tempo em que estou sem elas vivo sempre em alerta, sempre preocupada. A única coisa que me acalma são as vezes em que posso falar com elas por vídeo, ver que não estão doentes. Eu sempre tento me tranquilizar pensando que uma tem a outra, pois elas são muito ligadas. Mas, depois que a guerra começou, passei a não ver mais jornal para não chorar o dia inteiro. Tomo remédio para ansiedade, mesmo assim fico apavorada, sem ar, com taquicardia.”

A guerra, porém, chegou a dar mais uma esperança a Bianca. Há alguns dias, ao falar para o ex dos voos de repatriação que o Brasil faria, ele disse que toparia voltar, “para proteger as meninas”. A professora então mandou os nome dele e das gêmeas, hoje com 6 anos, para a Embaixada do Brasil no Líbano e eles foram incluídos na lista de pessoas que poderiam embarcar no avião da Força Aérea Brasileira (FAB) enviado em 5 de outubro para repatriar 229 brasileiros. Mas no final o pai acabou não aparecendo com as filhas para o embarque. Bianca diz que pediu então à Embaixada para incluí-los no segundo voo. Novamente conseguiu a inclusão. Mas outra vez não chegaram para o embarque.

“Eu já me decepcionei muitas vezes e a dor de cada decepção é sempre dilacerante”, resume Bianca. “No primeiro ano sem as meninas, eu nem conseguia falar sobre isso. Sentia uma culpa tão imensa de ter sido idiota (por assinar a procuração). Depois, com muita terapia, eu vi que eu fui vítima da história e não podia me culpar por ter confiado no homem que então era meu marido. E hoje eu estou assim: vivendo um dia de cada vez.”

Procurado pelo Estadão, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), explicou que, como o Líbano não é signatário da Convenção da Haia, não há Autoridade Central designada para o tema da Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes no país. “Os esforços da Autoridade Central do Brasil têm se concentrado na tramitação diplomática dos pedidos para o Líbano, na tentativa da resolução dos casos”, informou, sem maiores detalhes. Já o Ministério das Relações Exteriores informou, por meio de sua Assessoria de Imprensa, que não pode comentar casos específicos de assistência consular por questão de proteção de dados pessoais e direito à privacidade.

O Estadão também procurou a Embaixada do Líbano no Brasil, mas não obteve resposta. O ex-marido de Bianca não foi localizado - caso queira se manifestar, o espaço da coluna está aberto.

As cenas de bombardeios no Líbano que chamam a atenção do mundo têm para a professora brasileira Bianca Moreira Carneiro um significado bem mais devastador. Há dois anos e meio, suas filhas gêmeas foram levadas sem seu consentimento para o país árabe pelo ex-marido. Elas tinham então acabado de completar 4 anos de idade. Sua vida virou do avesso.

“Era para o genitor passar o fim de semana de Páscoa com as meninas, mas no domingo recebi uma chamada por vídeo do telefone de uma irmã dele que vivia no Líbano e nem sequer falava português. Estranhei. Quando abri a câmera, ele disse que estava lá com as meninas e mostrou a irmã de hijab (vestimenta muçulmana). Achei que ia desmaiar. Eu gritava, chorava, deitei no chão para não cair. E desde então vivo nessa angústia de não ter as minhas filhas.” O Estadão não conseguiu localizar o pai das meninas.

Bianca, com as filhas gêmeas antes de serem levadas para o Líbano Foto: Arquivo Pessoal de Bianca Moreira Carneiro

Bianca conta que conheceu o ex, um cidadão libanês, numa noite de sexta-feira de 2017. No dia seguinte, ele telefonou dizendo que ela ia se casar com ele. “Ele acabou me ganhando na insistência. No início, me tratava como uma princesinha, mas quando engravidei das meninas as coisas começaram a ficar feias. Durante a gravidez ele já tinha umas explosões. Depois que elas nasceram, foi só piorando. No começo de 2022, avisei que queria o divórcio e aluguei um apartamento para morar com as meninas. Mudei com elas em 5 de fevereiro de 2022 e combinamos que elas ficariam cada dia com um e o ponto de encontro seria sempre na escola. Funcionou assim até abril.”

Seu drama começaria a tomar forma por meio de uma mera assinatura. Em 2021, quando Bianca ainda estava casada, o pai do então marido ficou doente no Líbano e ele queria que a família fosse visitá-lo. Mas, como Bianca tinha de dar aulas, os dois acertaram de fazer uma procuração mútua para que as crianças pudessem tirar documentos e viajar só com um genitor. A ideia era que ele viajaria antes para o Líbano e ela iria depois, com as meninas. A viagem acabou não acontecendo, mas, segundo Bianca, essa procuração foi usada pelo ex depois da separação para incluir no passaporte das meninas - tirado sem seu conhecimento - que elas poderiam viajar desacompanhadas de um dos pais. No sábado de Aleluia antes da Páscoa, 16 de abril de 2022, ele embarcou com as duas sem qualquer restrição.

“Quando eu descobri que ele estava no Líbano, comecei a gritar: ‘Por onde você saiu? Elas não têm passaporte, você saiu sem a minha permissão’. E ele: ‘Não, você deixou’. ‘Como assim eu deixei?’, perguntei. E ele: ‘Você assinou a procuração’. Aí eu quis morrer.”

Como a procuração valia até 21 de junho de 2022, Bianca a princípio cultivou a esperança de que o ex voltaria em algumas semanas com as meninas. E prometeu até retomar o casamento caso ele trouxesse as crianças de volta. “Ele então me obrigou a voltar a usar aliança e a tirar foto de todos os lugares onde eu ia. Tinha de fotografar até quando ia dormir à noite. Aguentei isso até o dia em que ele disse que ia embarcar de volta para o Brasil, na primeira quinzena de maio. Mas, no dia de voltar, inventou que um documento estava vencido.” Na segunda tentativa, ela conta que o ex prometeu embarcar com as meninas em 4 de junho, mas novamente arrumou outra justificativa e acabou permanecendo no Líbano. “Em 21 de junho, quando vi que ele não voltou, entrei na Justiça com processo de guarda e separação à revelia.”

A advogada de Bianca, Patrícia Bozolan, diz que na Justiça brasileira a professora já conseguiu a busca e apreensão das crianças e a guarda unilateral. Também se divorciou por meio de publicação no Diário de Justiça em fevereiro de 2023.

O acirramento da relação levou à alienação parental. Bianca conta que nos primeiros seis meses o ex ainda permitia que ela fizesse videochamadas diárias para as meninas, mas de repente cortou todo o contato dela com as meninas. “O primeiro Natal foi o mais horrível. Ele não me deixou falar com elas. E, no ano seguinte, consegui falar apenas três vezes com as minhas filhas”, conta. A primeira vez foi em maio, a segunda em setembro e a terceira no Natal. “Quando fiquei esse ano todo praticamente sem falar com elas, só ficava pensando: Será que elas me esqueceram? Será que elas pensam que eu as abandonei? Mas, no dia em que me viram, elas ficaram eufóricas e isso me deu esperança para continuar lutando.”

Junto à alegria de ver as filhas no Dia das Mães de 2023, veio também a constatação de que elas já não entendiam mais direito o português. “Perguntei: ‘Tá tudo bem?’. E elas respondiam: ‘Sim’. ‘Foram na escola?’ ‘Não?’ ‘Por quê?’ ‘Sim’.” Desde então, Bianca passou a estudar árabe para conseguir se comunicar com as meninas sem a necessidade de tradução do ex. Mesmo assim, todas as conversas da mãe com as meninas são monitoradas.

Bianca diz que já buscou ajuda em todos os lugares que conhecia para reaver as filhas. Tentou vários ministérios, órgãos de defesa das mulheres, pediu ajuda a parlamentares de direitos humanos e até comprou ingresso para a festa de aniversário do PT para tentar, sem sucesso, contar seu drama para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Janja Lula da Silva. Mas nunca conseguiu ser ouvida. “No final, eu sou uma mera professora de gramática do ensino médio de Brasília. O genitor das minhas filhas sempre me diz: ‘Manda a sua polícia me pegar aqui’. Essa certeza da impunidade é revoltante.”

Legalmente falando, um dos grandes problemas é que, diferentemente do Brasil e de outros países, o Líbano não é signatário da Convenção de Haia. Isso significa que ferramentas que poderiam ser usadas no caso de subtração de crianças e adolescentes não são aplicáveis.

Hoje o nome das crianças está no alerta amarelo da Interpol. Isso significa que, se se movimentarem por países signatários do Tratado de Haia, eu tenho de ser avisada. Mas, como o Líbano não está no tratado, nosso mandado de busca e apreensão termina em Cumbica. Sequestrar filhos é o novo feminicídio. Ele mata a mulher em vida e não acontece nada com quem leva a criança.

Bianca Moreira Carneiro

Maternidade roubada

Dois anos depois de as gêmeas serem levadas do Brasil, sem saber mais a quem recorrer, Bianca criou um perfil no Instagram chamado Maternidade Roubada, hoje com 12,5 mil seguidores. Nele, posta fotos com as meninas, lembra histórias com elas, conta detalhes de seu drama. “A verdade é que, cada vez que faço um vídeo, me sinto totalmente exposta, mas meu objetivo foi fazer um memorial para elas. No aniversário delas, por exemplo, pedi para pessoas que as conhecem gravarem mensagens. Minha esperança é de que quando elas quiserem saber detalhes do que aconteceu encontrem esse perfil. Logo elas serão adolescentes e adolescentes são curiosos.”

Bianca diz que, ao ir para o Instagram pedir socorro, acabou também descobrindo muitos casos parecidos ao seu. “Para minha surpresa, me deparei com várias pessoas na mesma situação. Muitas mulheres já me procuraram e acabei apoiando gente dentro e fora do Brasil. Mulheres que se relacionam com estrangeiros, árabes por exemplo.”

Outra surpresa ao abrir o perfil no Instagram, conta, foi o ex propor que ela passasse a ligar todos os dias às 13 horas para falar com as meninas. A trégua, no entanto, durou pouco e vira e mexe o contato é cortado. “Quando a guerra no Líbano começou, fiquei novamente duas semanas sem notícias das minhas filhas. Elas não estão indo mais na escola. O ano letivo deveria ter começado em agosto, mas elas não voltaram às aulas. Imagina o que é para uma mãe professora saber disso? Que as meninas poderiam estar aqui em segurança estudando e estão no meio da guerra?”

E como ela tem lidado com isso? “É desesperador. Como o território do Líbano é pequeno, com o avanço de Israel alguns metros de um míssil errado podem ser fatais. Em todo esse tempo em que estou sem elas vivo sempre em alerta, sempre preocupada. A única coisa que me acalma são as vezes em que posso falar com elas por vídeo, ver que não estão doentes. Eu sempre tento me tranquilizar pensando que uma tem a outra, pois elas são muito ligadas. Mas, depois que a guerra começou, passei a não ver mais jornal para não chorar o dia inteiro. Tomo remédio para ansiedade, mesmo assim fico apavorada, sem ar, com taquicardia.”

A guerra, porém, chegou a dar mais uma esperança a Bianca. Há alguns dias, ao falar para o ex dos voos de repatriação que o Brasil faria, ele disse que toparia voltar, “para proteger as meninas”. A professora então mandou os nome dele e das gêmeas, hoje com 6 anos, para a Embaixada do Brasil no Líbano e eles foram incluídos na lista de pessoas que poderiam embarcar no avião da Força Aérea Brasileira (FAB) enviado em 5 de outubro para repatriar 229 brasileiros. Mas no final o pai acabou não aparecendo com as filhas para o embarque. Bianca diz que pediu então à Embaixada para incluí-los no segundo voo. Novamente conseguiu a inclusão. Mas outra vez não chegaram para o embarque.

“Eu já me decepcionei muitas vezes e a dor de cada decepção é sempre dilacerante”, resume Bianca. “No primeiro ano sem as meninas, eu nem conseguia falar sobre isso. Sentia uma culpa tão imensa de ter sido idiota (por assinar a procuração). Depois, com muita terapia, eu vi que eu fui vítima da história e não podia me culpar por ter confiado no homem que então era meu marido. E hoje eu estou assim: vivendo um dia de cada vez.”

Procurado pelo Estadão, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), explicou que, como o Líbano não é signatário da Convenção da Haia, não há Autoridade Central designada para o tema da Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes no país. “Os esforços da Autoridade Central do Brasil têm se concentrado na tramitação diplomática dos pedidos para o Líbano, na tentativa da resolução dos casos”, informou, sem maiores detalhes. Já o Ministério das Relações Exteriores informou, por meio de sua Assessoria de Imprensa, que não pode comentar casos específicos de assistência consular por questão de proteção de dados pessoais e direito à privacidade.

O Estadão também procurou a Embaixada do Líbano no Brasil, mas não obteve resposta. O ex-marido de Bianca não foi localizado - caso queira se manifestar, o espaço da coluna está aberto.

Opinião por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

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