Se atualmente as mulheres ainda têm de escutar várias bobagens sobre o que são ou não capazes de fazer e sobre o próprio corpo feminino, imaginem como era no século 15.
Um livro de mais de 600 anos atrás, recém-lançado no Brasil pela Editora 34, dá algumas pistas sobre isso.
Concluída por Christine de Pizan (1364-1431) em 1405, A Cidade das Mulheres é tida como a primeira obra feminista da história da literatura ocidental. E, pasmem, tem passagens que ainda hoje fazem sentido.
Filha de Tommaso di Benvenuto da Pizzano, médico e astrólogo da corte do rei francês Carlos V, Christine nasceu em 1364 em Veneza e aos quatro anos se mudou para Paris, onde foi educada por tutores e teve acesso à Biblioteca Real da França, uma das grandes coleções do saber da época. Em 1380, Christine se casou com o secretário do rei e com ele teve dois filhos e uma filha. E, como ela mesma contaria mais tarde, teria vivido para a vida doméstica própria de esposas abastadas da época não fossem duas mortes consecutivas - primeiro a do pai e depois a do marido. Viúva aos 25 anos, Christine acabou desfrutando do máximo de liberdade que uma mulher podia então dispor - decidir não se casar de novo e manter a família com o próprio trabalho.
No caso dela, isso significou se dedicar a algo pouquíssimo comum às mulheres da época: escrever livros. Começou escrevendo poesias a partir de 1390 e logo passou a outros formatos.
No blog Mulheres na Filosofia, a professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ana Rieger Schmidt explica que Christine foi uma escritora prolífica e produziu em francês mais de 40 obras de diferentes gêneros literários e para públicos diversos. “Destacam-se os livros de instrução moral para o cultivo das virtudes, guias políticos para membros da corte e a defesa do sexo feminino”, explica. “De modo geral, era muito incomum que mulheres desenvolvessem a prática da escrita na Idade Média fora dos contextos monásticos, onde a educação religiosa vinha acompanhada de certa instrução. Cabe notar que esse fato se reflete na iconografia da época, onde são raras as representações de mulheres autoras ou como autoridades intelectuais.”
Não por acaso, Christine é considerada a primeira escritora profissional no Ocidente. “Autora, editora e publicadora, ela também se envolvia diretamente na confecção de seus livros: orientava copistas e artistas para ilustrar seus manuscritos, agia como própria copista e, muito astutamente, presenteava compilações dedicadas a potenciais mecenas, buscando com isso segurança financeira e renome.”
Uma coisa que incomodava muito Christine era a maneira com que as mulheres eram tratadas nas obras da época. Escritas quase que totalmente por homens. E justamente isso parece ter inspirado a criação de A Cidade das Mulheres, como ela mesmo conta em seu livro:
“Interrogava-me sobre que motivos inspiravam tantos homens, clérigos e laicos, a vituperar as mulheres, a criticá-las tanto em escritos e tratados”, afirma Christine. “Filósofos, poetas, moralistas, todos - a lista é demasiado longa - parecem falar em coro para concluir que a mulher é fundamentalmente má e dada ao vício.”
Supercristã, Christine também evoca razões teológicas para derrubar teses usadas por autores da época para depreciar as mulheres e considerá-las malvadas, inferiores, avarentas, infiéis e burras, entre outros adjetivos pouco lisonjeiros: “Como Deus que é bom poderia ter criado algo que não fosse bom? Como poderia Deus errar em Sua criação?”
O livro começa com Christine recebendo a visita de três Damas - a Razão, a Retidão e a Justiça - e o anúncio da construção de um local destinado a acolher mulheres, com virtudes inexistentes na sociedade patriarcal. Daí o nome do livro. Inspirada na Cidade de Deus, de Santo Agostinho, seria uma cidade utópica, blindada contra a misoginia e as injustiças de gênero.
Ao longo dos capítulos, a autora resgata várias histórias de figuras femininas que se sobressaíram em diferentes épocas, mas acabaram ignoradas pelos livros. São rainhas, poetisas, guerreiras, filósofas, santas e artistas, apresentadas como símbolos de sabedoria e “amadas por suas virtudes mais que por seus encantos”. Recorrendo à história, às mitologias grega e romana e a trechos da Bíblia, entre outras fontes, Christine também aborda questões que parecem bem atuais. Como o estupro - um dos capítulos por exemplo mostra exemplos para refutar quem diz que “as mulheres gostam de ser violadas” -, os relacionamentos e o acesso à ciência e à cultura.
“Se fosse o costume mandar jovens meninas para a escola e ali ensiná-las toda sorte de diferentes matérias, assim como se faz com jovens meninos, elas entenderiam e aprenderiam as dificuldades de todas as artes e ciências com tanta facilidade quanto os meninos”, afirma. “Sabes por que mulheres conhecem menos que homens? (…) É porque elas são menos expostas a uma larga variedade de experiências já que precisam ficar em casa o dia inteiro em nome do lar. Não há nada como uma gama completa de diferentes experiências e atividades para expandir a mente de qualquer criatura racional.”
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