Coluna quinzenal da jornalista Luciana Garbin que traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|Medicina tem dívida histórica com as mulheres


Historiadora mostra como ao longo dos séculos a compreensão da mente e do corpo femininos foi influenciada por padrões culturais, sociais e religiosos impostos por um mundo dominado por homens

Por Luciana Garbin
Atualização:

Há algumas semanas, uma reportagem do New York Times tinha o certeiro título de Metade do mundo tem um clitóris, mas a ciência ainda ignora este órgão feminino. No livro Unwell Women – mulheres que não estão bem, em tradução livre –, a historiadora britânica Elinor Cleghorn vai além e mostra que, quando o tema é saúde da mulher, o problema extrapola – e muito – o desconhecimento sobre o clitóris. Segundo ela, o sexismo sustenta a prática médica desde Hipócrates. “Em sua longa história, a Medicina absorveu e reforçou divisões de gênero socialmente construídas num mundo dominado por homens”, resume.

Elinor conta que a capacidade – e “dever” – da mulher de reproduzir historicamente monopolizou conhecimentos sobre a biologia feminina. Não por acaso, “especialistas” do passado costumavam relacionar vários problemas no corpo feminino ao útero - a palavra histeria, por exemplo, largamente usada em diagnósticos de mulheres ao longo dos tempos, vem de histera (útero em grego). “No século 19, dores pélvicas e abdominais femininas, assim como desarranjos menstruais, eram tratadas com cirurgias agressivas, acusações de histeria e internações forçadas”, relata.

A autora escreve ainda que livros tidos como Bíblias do corpo feminino por séculos foram escritos por homens, sem ouvir qualquer testemunho do público-alvo. E “ensinavam” teses de arrepiar. Como a de que o corpo da mulher tinha sangue demais - por isso a menstruação. Na Idade Média, a morte do bebê no parto não raramente era atribuída a parteiras possuídas pelo demônio que usavam seu trabalho para abater inocentes. No século 19, o cirurgião inglês Isaac Brown defendia a remoção do clitóris contra distúrbios nervosos. E um levantamento feito em 1942 apontou que eram mulheres 75% dos pacientes submetidos pelos neurologistas americanos Walter Freeman e James Watts à lobotomia (polêmica cirurgia em que se corta a ligação entre os lobos esquerdo e direito do cérebro).

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“Numa época em que uma mulher mentalmente saudável era esposa e mãe serena, quase qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica poderia ser interpretado como justificativa para a lobotomia”, escreveu Stephanie Merritt, ao falar do livro no jornal britânico The Guardian.

Padrões sociais, culturais e religiosos de um mundo dominado por homens marcam história da Medicina Foto: Foundry Co/Pixabay

Nesse cenário tampouco é de se estranhar que especialistas indicassem para curar patologias “soluções” sociais, como casar - idealmente perto dos 14 anos -, manter relações sexuais regulares com o marido e ter várias gravidezes.

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E, para as mulheres que estão lendo este texto e agradecendo por viverem hoje em dia, Elinor faz um alerta. Apesar de ter evoluído, a Medicina ainda precisa prestar mais atenção aos problemas femininos para poder aperfeiçoar diagnósticos e tratamentos.

Distúrbio que pode causar fortes cólicas e sangramentos, a endometriose, por exemplo, foi descrita mais detalhadamente em 1920, apesar de seus sintomas já frequentarem a literatura médica havia séculos. Eram, porém, tidos por muitos médicos como expressões físicas de sofrimento emocional. Hoje a endometriose atinge, segundo Elinor, uma em cada dez mulheres no mundo, mas ainda leva em média de seis a dez anos para ser corretamente diagnosticada.

A própria autora começou a pesquisar a relação de mulheres, doenças e medicina após ser diagnosticada com lúpus em 2010. Antes, tinha enfrentado sete anos de diagnósticos errados, que relacionavam seus sintomas a hormônios e humores.

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Nem mulheres famosas escapam. A tenista americana Serena Williams, por exemplo, teve problemas no parto em 2017. Com dificuldade para respirar, pediu que fizessem uma tomografia porque tinha tido embolia pulmonar anos antes. Mas acharam que ela estava delirando por causa da medicação e optaram por um ultrassom, que não mostrou nada. Quando finalmente realizaram a tomografia, foi detectado coágulo numa artéria do pulmão.

Além de ignorar dores e opiniões femininas, para Elinor o ecossistema médico ainda é muito influenciado por ideias religiosas, culturais e políticas sobre o corpo feminino – particularmente relacionadas a sexualidade e reprodução. E isso pode ser mais um obstáculo à descoberta de soluções. “Num mundo feito por homens, corpos e mentes femininos têm sido o primeiro campo de batalha da opressão de gênero. Para desmantelar esse legado de dor no conhecimento e na prática médica, nós devemos primeiro entender onde estamos e como chegamos até aqui. A Medicina deve ouvir e acreditar nos nossos testemunhos sobre nosso próprio corpo e usar tempo e dinheiro para resolver mistérios médicos.” Só assim essa dívida histórica poderá, enfim, ser amortizada.

Nesse cenário, uma boa notícia nesses últimos anos tem sido o crescimento das femtechs - empresas com ao menos uma cofundadora que oferecem soluções do universo digital para saúde e bem-estar da mulher. São produtos e serviços ligados por exemplo a menstruação, sexualidade, menopausa, contracepção. No País ainda são poucas – pouco mais de 20, de acordo com a associação Femtechs Brasil. Mas, a julgar pelo tamanho do buraco na área – e pelo impressionante material histórico compilado por Elinor –, potencial de expansão é o que não falta.

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Há algumas semanas, uma reportagem do New York Times tinha o certeiro título de Metade do mundo tem um clitóris, mas a ciência ainda ignora este órgão feminino. No livro Unwell Women – mulheres que não estão bem, em tradução livre –, a historiadora britânica Elinor Cleghorn vai além e mostra que, quando o tema é saúde da mulher, o problema extrapola – e muito – o desconhecimento sobre o clitóris. Segundo ela, o sexismo sustenta a prática médica desde Hipócrates. “Em sua longa história, a Medicina absorveu e reforçou divisões de gênero socialmente construídas num mundo dominado por homens”, resume.

Elinor conta que a capacidade – e “dever” – da mulher de reproduzir historicamente monopolizou conhecimentos sobre a biologia feminina. Não por acaso, “especialistas” do passado costumavam relacionar vários problemas no corpo feminino ao útero - a palavra histeria, por exemplo, largamente usada em diagnósticos de mulheres ao longo dos tempos, vem de histera (útero em grego). “No século 19, dores pélvicas e abdominais femininas, assim como desarranjos menstruais, eram tratadas com cirurgias agressivas, acusações de histeria e internações forçadas”, relata.

A autora escreve ainda que livros tidos como Bíblias do corpo feminino por séculos foram escritos por homens, sem ouvir qualquer testemunho do público-alvo. E “ensinavam” teses de arrepiar. Como a de que o corpo da mulher tinha sangue demais - por isso a menstruação. Na Idade Média, a morte do bebê no parto não raramente era atribuída a parteiras possuídas pelo demônio que usavam seu trabalho para abater inocentes. No século 19, o cirurgião inglês Isaac Brown defendia a remoção do clitóris contra distúrbios nervosos. E um levantamento feito em 1942 apontou que eram mulheres 75% dos pacientes submetidos pelos neurologistas americanos Walter Freeman e James Watts à lobotomia (polêmica cirurgia em que se corta a ligação entre os lobos esquerdo e direito do cérebro).

“Numa época em que uma mulher mentalmente saudável era esposa e mãe serena, quase qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica poderia ser interpretado como justificativa para a lobotomia”, escreveu Stephanie Merritt, ao falar do livro no jornal britânico The Guardian.

Padrões sociais, culturais e religiosos de um mundo dominado por homens marcam história da Medicina Foto: Foundry Co/Pixabay

Nesse cenário tampouco é de se estranhar que especialistas indicassem para curar patologias “soluções” sociais, como casar - idealmente perto dos 14 anos -, manter relações sexuais regulares com o marido e ter várias gravidezes.

E, para as mulheres que estão lendo este texto e agradecendo por viverem hoje em dia, Elinor faz um alerta. Apesar de ter evoluído, a Medicina ainda precisa prestar mais atenção aos problemas femininos para poder aperfeiçoar diagnósticos e tratamentos.

Distúrbio que pode causar fortes cólicas e sangramentos, a endometriose, por exemplo, foi descrita mais detalhadamente em 1920, apesar de seus sintomas já frequentarem a literatura médica havia séculos. Eram, porém, tidos por muitos médicos como expressões físicas de sofrimento emocional. Hoje a endometriose atinge, segundo Elinor, uma em cada dez mulheres no mundo, mas ainda leva em média de seis a dez anos para ser corretamente diagnosticada.

A própria autora começou a pesquisar a relação de mulheres, doenças e medicina após ser diagnosticada com lúpus em 2010. Antes, tinha enfrentado sete anos de diagnósticos errados, que relacionavam seus sintomas a hormônios e humores.

Nem mulheres famosas escapam. A tenista americana Serena Williams, por exemplo, teve problemas no parto em 2017. Com dificuldade para respirar, pediu que fizessem uma tomografia porque tinha tido embolia pulmonar anos antes. Mas acharam que ela estava delirando por causa da medicação e optaram por um ultrassom, que não mostrou nada. Quando finalmente realizaram a tomografia, foi detectado coágulo numa artéria do pulmão.

Além de ignorar dores e opiniões femininas, para Elinor o ecossistema médico ainda é muito influenciado por ideias religiosas, culturais e políticas sobre o corpo feminino – particularmente relacionadas a sexualidade e reprodução. E isso pode ser mais um obstáculo à descoberta de soluções. “Num mundo feito por homens, corpos e mentes femininos têm sido o primeiro campo de batalha da opressão de gênero. Para desmantelar esse legado de dor no conhecimento e na prática médica, nós devemos primeiro entender onde estamos e como chegamos até aqui. A Medicina deve ouvir e acreditar nos nossos testemunhos sobre nosso próprio corpo e usar tempo e dinheiro para resolver mistérios médicos.” Só assim essa dívida histórica poderá, enfim, ser amortizada.

Nesse cenário, uma boa notícia nesses últimos anos tem sido o crescimento das femtechs - empresas com ao menos uma cofundadora que oferecem soluções do universo digital para saúde e bem-estar da mulher. São produtos e serviços ligados por exemplo a menstruação, sexualidade, menopausa, contracepção. No País ainda são poucas – pouco mais de 20, de acordo com a associação Femtechs Brasil. Mas, a julgar pelo tamanho do buraco na área – e pelo impressionante material histórico compilado por Elinor –, potencial de expansão é o que não falta.

Há algumas semanas, uma reportagem do New York Times tinha o certeiro título de Metade do mundo tem um clitóris, mas a ciência ainda ignora este órgão feminino. No livro Unwell Women – mulheres que não estão bem, em tradução livre –, a historiadora britânica Elinor Cleghorn vai além e mostra que, quando o tema é saúde da mulher, o problema extrapola – e muito – o desconhecimento sobre o clitóris. Segundo ela, o sexismo sustenta a prática médica desde Hipócrates. “Em sua longa história, a Medicina absorveu e reforçou divisões de gênero socialmente construídas num mundo dominado por homens”, resume.

Elinor conta que a capacidade – e “dever” – da mulher de reproduzir historicamente monopolizou conhecimentos sobre a biologia feminina. Não por acaso, “especialistas” do passado costumavam relacionar vários problemas no corpo feminino ao útero - a palavra histeria, por exemplo, largamente usada em diagnósticos de mulheres ao longo dos tempos, vem de histera (útero em grego). “No século 19, dores pélvicas e abdominais femininas, assim como desarranjos menstruais, eram tratadas com cirurgias agressivas, acusações de histeria e internações forçadas”, relata.

A autora escreve ainda que livros tidos como Bíblias do corpo feminino por séculos foram escritos por homens, sem ouvir qualquer testemunho do público-alvo. E “ensinavam” teses de arrepiar. Como a de que o corpo da mulher tinha sangue demais - por isso a menstruação. Na Idade Média, a morte do bebê no parto não raramente era atribuída a parteiras possuídas pelo demônio que usavam seu trabalho para abater inocentes. No século 19, o cirurgião inglês Isaac Brown defendia a remoção do clitóris contra distúrbios nervosos. E um levantamento feito em 1942 apontou que eram mulheres 75% dos pacientes submetidos pelos neurologistas americanos Walter Freeman e James Watts à lobotomia (polêmica cirurgia em que se corta a ligação entre os lobos esquerdo e direito do cérebro).

“Numa época em que uma mulher mentalmente saudável era esposa e mãe serena, quase qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica poderia ser interpretado como justificativa para a lobotomia”, escreveu Stephanie Merritt, ao falar do livro no jornal britânico The Guardian.

Padrões sociais, culturais e religiosos de um mundo dominado por homens marcam história da Medicina Foto: Foundry Co/Pixabay

Nesse cenário tampouco é de se estranhar que especialistas indicassem para curar patologias “soluções” sociais, como casar - idealmente perto dos 14 anos -, manter relações sexuais regulares com o marido e ter várias gravidezes.

E, para as mulheres que estão lendo este texto e agradecendo por viverem hoje em dia, Elinor faz um alerta. Apesar de ter evoluído, a Medicina ainda precisa prestar mais atenção aos problemas femininos para poder aperfeiçoar diagnósticos e tratamentos.

Distúrbio que pode causar fortes cólicas e sangramentos, a endometriose, por exemplo, foi descrita mais detalhadamente em 1920, apesar de seus sintomas já frequentarem a literatura médica havia séculos. Eram, porém, tidos por muitos médicos como expressões físicas de sofrimento emocional. Hoje a endometriose atinge, segundo Elinor, uma em cada dez mulheres no mundo, mas ainda leva em média de seis a dez anos para ser corretamente diagnosticada.

A própria autora começou a pesquisar a relação de mulheres, doenças e medicina após ser diagnosticada com lúpus em 2010. Antes, tinha enfrentado sete anos de diagnósticos errados, que relacionavam seus sintomas a hormônios e humores.

Nem mulheres famosas escapam. A tenista americana Serena Williams, por exemplo, teve problemas no parto em 2017. Com dificuldade para respirar, pediu que fizessem uma tomografia porque tinha tido embolia pulmonar anos antes. Mas acharam que ela estava delirando por causa da medicação e optaram por um ultrassom, que não mostrou nada. Quando finalmente realizaram a tomografia, foi detectado coágulo numa artéria do pulmão.

Além de ignorar dores e opiniões femininas, para Elinor o ecossistema médico ainda é muito influenciado por ideias religiosas, culturais e políticas sobre o corpo feminino – particularmente relacionadas a sexualidade e reprodução. E isso pode ser mais um obstáculo à descoberta de soluções. “Num mundo feito por homens, corpos e mentes femininos têm sido o primeiro campo de batalha da opressão de gênero. Para desmantelar esse legado de dor no conhecimento e na prática médica, nós devemos primeiro entender onde estamos e como chegamos até aqui. A Medicina deve ouvir e acreditar nos nossos testemunhos sobre nosso próprio corpo e usar tempo e dinheiro para resolver mistérios médicos.” Só assim essa dívida histórica poderá, enfim, ser amortizada.

Nesse cenário, uma boa notícia nesses últimos anos tem sido o crescimento das femtechs - empresas com ao menos uma cofundadora que oferecem soluções do universo digital para saúde e bem-estar da mulher. São produtos e serviços ligados por exemplo a menstruação, sexualidade, menopausa, contracepção. No País ainda são poucas – pouco mais de 20, de acordo com a associação Femtechs Brasil. Mas, a julgar pelo tamanho do buraco na área – e pelo impressionante material histórico compilado por Elinor –, potencial de expansão é o que não falta.

Há algumas semanas, uma reportagem do New York Times tinha o certeiro título de Metade do mundo tem um clitóris, mas a ciência ainda ignora este órgão feminino. No livro Unwell Women – mulheres que não estão bem, em tradução livre –, a historiadora britânica Elinor Cleghorn vai além e mostra que, quando o tema é saúde da mulher, o problema extrapola – e muito – o desconhecimento sobre o clitóris. Segundo ela, o sexismo sustenta a prática médica desde Hipócrates. “Em sua longa história, a Medicina absorveu e reforçou divisões de gênero socialmente construídas num mundo dominado por homens”, resume.

Elinor conta que a capacidade – e “dever” – da mulher de reproduzir historicamente monopolizou conhecimentos sobre a biologia feminina. Não por acaso, “especialistas” do passado costumavam relacionar vários problemas no corpo feminino ao útero - a palavra histeria, por exemplo, largamente usada em diagnósticos de mulheres ao longo dos tempos, vem de histera (útero em grego). “No século 19, dores pélvicas e abdominais femininas, assim como desarranjos menstruais, eram tratadas com cirurgias agressivas, acusações de histeria e internações forçadas”, relata.

A autora escreve ainda que livros tidos como Bíblias do corpo feminino por séculos foram escritos por homens, sem ouvir qualquer testemunho do público-alvo. E “ensinavam” teses de arrepiar. Como a de que o corpo da mulher tinha sangue demais - por isso a menstruação. Na Idade Média, a morte do bebê no parto não raramente era atribuída a parteiras possuídas pelo demônio que usavam seu trabalho para abater inocentes. No século 19, o cirurgião inglês Isaac Brown defendia a remoção do clitóris contra distúrbios nervosos. E um levantamento feito em 1942 apontou que eram mulheres 75% dos pacientes submetidos pelos neurologistas americanos Walter Freeman e James Watts à lobotomia (polêmica cirurgia em que se corta a ligação entre os lobos esquerdo e direito do cérebro).

“Numa época em que uma mulher mentalmente saudável era esposa e mãe serena, quase qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica poderia ser interpretado como justificativa para a lobotomia”, escreveu Stephanie Merritt, ao falar do livro no jornal britânico The Guardian.

Padrões sociais, culturais e religiosos de um mundo dominado por homens marcam história da Medicina Foto: Foundry Co/Pixabay

Nesse cenário tampouco é de se estranhar que especialistas indicassem para curar patologias “soluções” sociais, como casar - idealmente perto dos 14 anos -, manter relações sexuais regulares com o marido e ter várias gravidezes.

E, para as mulheres que estão lendo este texto e agradecendo por viverem hoje em dia, Elinor faz um alerta. Apesar de ter evoluído, a Medicina ainda precisa prestar mais atenção aos problemas femininos para poder aperfeiçoar diagnósticos e tratamentos.

Distúrbio que pode causar fortes cólicas e sangramentos, a endometriose, por exemplo, foi descrita mais detalhadamente em 1920, apesar de seus sintomas já frequentarem a literatura médica havia séculos. Eram, porém, tidos por muitos médicos como expressões físicas de sofrimento emocional. Hoje a endometriose atinge, segundo Elinor, uma em cada dez mulheres no mundo, mas ainda leva em média de seis a dez anos para ser corretamente diagnosticada.

A própria autora começou a pesquisar a relação de mulheres, doenças e medicina após ser diagnosticada com lúpus em 2010. Antes, tinha enfrentado sete anos de diagnósticos errados, que relacionavam seus sintomas a hormônios e humores.

Nem mulheres famosas escapam. A tenista americana Serena Williams, por exemplo, teve problemas no parto em 2017. Com dificuldade para respirar, pediu que fizessem uma tomografia porque tinha tido embolia pulmonar anos antes. Mas acharam que ela estava delirando por causa da medicação e optaram por um ultrassom, que não mostrou nada. Quando finalmente realizaram a tomografia, foi detectado coágulo numa artéria do pulmão.

Além de ignorar dores e opiniões femininas, para Elinor o ecossistema médico ainda é muito influenciado por ideias religiosas, culturais e políticas sobre o corpo feminino – particularmente relacionadas a sexualidade e reprodução. E isso pode ser mais um obstáculo à descoberta de soluções. “Num mundo feito por homens, corpos e mentes femininos têm sido o primeiro campo de batalha da opressão de gênero. Para desmantelar esse legado de dor no conhecimento e na prática médica, nós devemos primeiro entender onde estamos e como chegamos até aqui. A Medicina deve ouvir e acreditar nos nossos testemunhos sobre nosso próprio corpo e usar tempo e dinheiro para resolver mistérios médicos.” Só assim essa dívida histórica poderá, enfim, ser amortizada.

Nesse cenário, uma boa notícia nesses últimos anos tem sido o crescimento das femtechs - empresas com ao menos uma cofundadora que oferecem soluções do universo digital para saúde e bem-estar da mulher. São produtos e serviços ligados por exemplo a menstruação, sexualidade, menopausa, contracepção. No País ainda são poucas – pouco mais de 20, de acordo com a associação Femtechs Brasil. Mas, a julgar pelo tamanho do buraco na área – e pelo impressionante material histórico compilado por Elinor –, potencial de expansão é o que não falta.

Há algumas semanas, uma reportagem do New York Times tinha o certeiro título de Metade do mundo tem um clitóris, mas a ciência ainda ignora este órgão feminino. No livro Unwell Women – mulheres que não estão bem, em tradução livre –, a historiadora britânica Elinor Cleghorn vai além e mostra que, quando o tema é saúde da mulher, o problema extrapola – e muito – o desconhecimento sobre o clitóris. Segundo ela, o sexismo sustenta a prática médica desde Hipócrates. “Em sua longa história, a Medicina absorveu e reforçou divisões de gênero socialmente construídas num mundo dominado por homens”, resume.

Elinor conta que a capacidade – e “dever” – da mulher de reproduzir historicamente monopolizou conhecimentos sobre a biologia feminina. Não por acaso, “especialistas” do passado costumavam relacionar vários problemas no corpo feminino ao útero - a palavra histeria, por exemplo, largamente usada em diagnósticos de mulheres ao longo dos tempos, vem de histera (útero em grego). “No século 19, dores pélvicas e abdominais femininas, assim como desarranjos menstruais, eram tratadas com cirurgias agressivas, acusações de histeria e internações forçadas”, relata.

A autora escreve ainda que livros tidos como Bíblias do corpo feminino por séculos foram escritos por homens, sem ouvir qualquer testemunho do público-alvo. E “ensinavam” teses de arrepiar. Como a de que o corpo da mulher tinha sangue demais - por isso a menstruação. Na Idade Média, a morte do bebê no parto não raramente era atribuída a parteiras possuídas pelo demônio que usavam seu trabalho para abater inocentes. No século 19, o cirurgião inglês Isaac Brown defendia a remoção do clitóris contra distúrbios nervosos. E um levantamento feito em 1942 apontou que eram mulheres 75% dos pacientes submetidos pelos neurologistas americanos Walter Freeman e James Watts à lobotomia (polêmica cirurgia em que se corta a ligação entre os lobos esquerdo e direito do cérebro).

“Numa época em que uma mulher mentalmente saudável era esposa e mãe serena, quase qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica poderia ser interpretado como justificativa para a lobotomia”, escreveu Stephanie Merritt, ao falar do livro no jornal britânico The Guardian.

Padrões sociais, culturais e religiosos de um mundo dominado por homens marcam história da Medicina Foto: Foundry Co/Pixabay

Nesse cenário tampouco é de se estranhar que especialistas indicassem para curar patologias “soluções” sociais, como casar - idealmente perto dos 14 anos -, manter relações sexuais regulares com o marido e ter várias gravidezes.

E, para as mulheres que estão lendo este texto e agradecendo por viverem hoje em dia, Elinor faz um alerta. Apesar de ter evoluído, a Medicina ainda precisa prestar mais atenção aos problemas femininos para poder aperfeiçoar diagnósticos e tratamentos.

Distúrbio que pode causar fortes cólicas e sangramentos, a endometriose, por exemplo, foi descrita mais detalhadamente em 1920, apesar de seus sintomas já frequentarem a literatura médica havia séculos. Eram, porém, tidos por muitos médicos como expressões físicas de sofrimento emocional. Hoje a endometriose atinge, segundo Elinor, uma em cada dez mulheres no mundo, mas ainda leva em média de seis a dez anos para ser corretamente diagnosticada.

A própria autora começou a pesquisar a relação de mulheres, doenças e medicina após ser diagnosticada com lúpus em 2010. Antes, tinha enfrentado sete anos de diagnósticos errados, que relacionavam seus sintomas a hormônios e humores.

Nem mulheres famosas escapam. A tenista americana Serena Williams, por exemplo, teve problemas no parto em 2017. Com dificuldade para respirar, pediu que fizessem uma tomografia porque tinha tido embolia pulmonar anos antes. Mas acharam que ela estava delirando por causa da medicação e optaram por um ultrassom, que não mostrou nada. Quando finalmente realizaram a tomografia, foi detectado coágulo numa artéria do pulmão.

Além de ignorar dores e opiniões femininas, para Elinor o ecossistema médico ainda é muito influenciado por ideias religiosas, culturais e políticas sobre o corpo feminino – particularmente relacionadas a sexualidade e reprodução. E isso pode ser mais um obstáculo à descoberta de soluções. “Num mundo feito por homens, corpos e mentes femininos têm sido o primeiro campo de batalha da opressão de gênero. Para desmantelar esse legado de dor no conhecimento e na prática médica, nós devemos primeiro entender onde estamos e como chegamos até aqui. A Medicina deve ouvir e acreditar nos nossos testemunhos sobre nosso próprio corpo e usar tempo e dinheiro para resolver mistérios médicos.” Só assim essa dívida histórica poderá, enfim, ser amortizada.

Nesse cenário, uma boa notícia nesses últimos anos tem sido o crescimento das femtechs - empresas com ao menos uma cofundadora que oferecem soluções do universo digital para saúde e bem-estar da mulher. São produtos e serviços ligados por exemplo a menstruação, sexualidade, menopausa, contracepção. No País ainda são poucas – pouco mais de 20, de acordo com a associação Femtechs Brasil. Mas, a julgar pelo tamanho do buraco na área – e pelo impressionante material histórico compilado por Elinor –, potencial de expansão é o que não falta.

Opinião por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

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