Entre bobagens ditas e escritas sobre mulheres e feminismo, destacaram-se dias atrás as de um procurador da República que, entre outras pérolas, associou a luta feminina por direitos a transtorno mental. Seria só mais um problema para a Corregedoria do Ministério Público, não fosse o fato de que teses machistas continuam sendo propagadas por pessoas que atuam em instituições com poder de moldar a sociedade. Várias delas. Em Sobre Ela: Uma História de Violência (Editora Gryphus), o desembargador Wagner Cinelli de Paula Freitas, do Tribunal de Justiça do Rio, lista por exemplo casos de magistrados que desafiaram a Lei Maria da Penha em decisões. Em Sete Lagoas (MG), um juiz chamou a legislação criada para combater a violência contra a mulher de “conjunto de regras diabólicas”. “Desgraças humanas começaram por causa da mulher”, disse. Em Goiânia, um magistrado indeferiu pedido de medidas protetivas com a seguinte sugestão: “Se a representante quer mesmo se valorizar, se respeitar, se proteger, vá às últimas consequências, e então veremos o quanto o couro grosso do metido a valente suporta”. Houve casos também na 2.ª instância. Até que a querela foi parar no STF, que encerrou o assunto e reafirmou o valor da lei.
A sub-representação feminina na formulação de leis, na magistratura e em outros cargos de poder, é uma das chaves para entender esse cenário. Cursos jurídicos já existiam havia décadas no Brasil quando, em 1902, a primeira mulher se bacharelou na área. Aos 23 anos, Maria Augusta Saraiva se formou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. “Não é difícil imaginar que a Justiça Criminal naquele início do século 20, com quadros 100% masculinos, replicasse em alto grau parcialidades e preconceitos da sociedade da época”, diz Freitas. “Nessa ótica, quando chegamos ao início do século 21 no Brasil com aproximadamente 11% de mulheres nos quadros da Polícia Militar, 28% na Polícia Civil, 38% na magistratura e 39% no Ministério Público, o fato positivo é a presença da mulher, mas infelizmente ela segue sub-representada nessas instituições.” Detalhe: Freitas era colega da juíza Viviane Vieira do Amaral, morta pelo ex na frente das três filhas na véspera do Natal de 2020. “Eu conhecia Viviane e o feminicida. Por isso, senti-me ainda mais compelido a mergulhar no tema da violência de gênero.” É pena que, em vez de também estudar e aprender sobre temas que envolvem mulheres, outras figuras com poder de decisão prefiram espalhar desinformação e preconceito.