Houve um tempo em que muitas paulistanas saíam às ruas com vestimentas longas e rosto coberto. Sabe as burcas de Irã, Afeganistão e outros países do Oriente Médio? Eram parecidas. Mas por aqui essa maneira de se vestir - felizmente - causava controvérsias e reações de autoridades. A tal ponto que ao menos três governantes em três séculos consecutivos - 17, 18 e 19 - se mobilizaram para tentar proibir aberrante modelito.
Na riqueza que são os acervos da Biblioteca Nacional e da Câmara Municipal de São Paulo*, é possível ver mais detalhes sobre essa época em que as mulheres de São Paulo andavam por aí “rebuçadas em baetas”, como se dizia. Por rebuçadas entende-se ocultas, escondidas. Já baeta era um tipo de tecido grosso de lã ou algodão muito usado antigamente.
“Achei nessa cidade o inculto uso de andarem as mulheres rebuçadas em dois côvados de baeta preta (...) e com chapéus desabados na cabeça, e deste modo com as caras todas tapadas, tanto nas ruas como nas igrejas”, escreveu em 1775 o oficial do Exército português Martim Lopes Lôbo de Saldanha, que foi governador e capitão-general da Capitania de São Paulo até 1782.
Em 23 de setembro de 1775, ano de irrupção de uma epidemia de varíola na cidade, um dos primeiros atos de Saldanha como chefão da capitania foi justamente proibir as paulistanas, sob pena de prisão de multa, de esconderem a cabeça e o corpo. Na decisão, ele lembrou que tal indumentária permitia a mulheres entrar até de dia em “casas de homens”, “onde não entrariam se não lhes desse ousadia o rebuço”. E não só: as burcas tupiniquins também serviam para alguns criminosos - homens - aproveitarem “para se encobrir às Justiças” e para “facinorosos” cometerem delitos.
A ordem de Lobo no século 18 se somou a duas outras anteriores, do século 17. Em agosto de 1649, uma lei já proibira o uso de rebuços e chapéus por mulheres e um alvará de outubro do mesmo ano reforçara a proibição, vetando às paulistanas sair às ruas com a cara encoberta total ou parcialmente. E a determinação era independente de classe: valia para pobres ou ricas, livres ou escravas.
Mas onde surgiu esse costume que dava trabalho aos governantes e chamava a atenção de viajantes estrangeiros que passavam pela então provinciana vila de São Paulo, como o artista inglês Charles Landseer, do desenho abaixo?
No artigo Dom João VI e o cotidiano das mulheres em São Paulo: um reflexo na moda, disponível no site do Arquivo Histórico Municipal, Luís Soares de Camargo indica que a “moda” de usar mantilhas para cobrir a cabeça e parte do rosto remontava a um figurino muito comum em Portugal e na Espanha medieval. “Pode-se mesmo dizer que este traje foi um legado deixado pelos árabes naquela parte do continente europeu que, mais tarde, foi transplantado para o Brasil”, escreve. “Mas, nos setecentos, esta moda já fora abolida tanto em Portugal quanto nas cidades litorâneas do Brasil, a exemplo de Salvador e Rio de Janeiro. Entretanto, em São Paulo, as capas e mantilhas permaneciam em uso, como que a desafiar os novos costumes.”
Ele conta em seu texto que a baeta era o tecido mais usado em São Paulo desde o século 16 e continuou sendo utilizado até o fim do século 19. Nos primeiros tempos, servia à classe abastada; depois, passou a vestir principalmente os mais pobres e também escravos.
Para o autor, uma das razões que explicam o sucesso dessa presença medieval nos guarda-roupas paulistanos primitivos era justamente a varíola, doença que, quando não matava, costumava deixar cicatrizes nos braços, nas mãos e, principalmente, no rosto. Se o alvaiade - pigmento branco usado como cosmético no século 19 - não dava conta de esconder as marcas, logo se apelava ao “rebuço de baeta”.
Outra justificativa era disfarçar a pobreza. Com o rosto coberto, moças brancas pobres podiam circular por São Paulo em tarefas comumente atribuídas às escravas negras, como fazer compras ou buscar água.
Independentemente do motivo, no entanto, não foi fácil fazer as paulistanas se desapegarem da “moda burca”. Apesar das ameaças de multa e de prisão dos governadores, mulheres da cidade seguiram circulando por aí com suas baetas. Tanto que no século 18 foi necessária a emissão de uma ordem régia para tentar acabar com o costume.
Coube a outro governador, Antônio José da Franca e Horta, que governou a Capitania de São Paulo de 1802 a 1811, alertar D. João VI sobre os trajes proibidos, porém ainda muito utilizados pelas paulistanas. Em carta ao imperador português, ele citou os problemas causados pelo costume e pediu que ele avalizasse uma ordem mais drástica contra a vestimenta que ele mesmo já havia dado. Só faltava a concordância real para torná-la efetiva. E ela veio: em 30 de agosto de 1810, D. João emitiu uma Ordem Régia novamente proibindo as mulheres de São Paulo de andarem “embuçadas em baetas”.
“Faço saber que tendo eu dado conta ao Príncipe Regente, nosso Senhor, pela sua Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, de haver proibido andarem as mulheres desta capitania embuçadas em baetas de modo que lhes ficam as caras cobertas, e dos prejuízos que daqui se seguia à Polícia Publica, foi o mesmo Augusto Senhor servido aprovar o meu procedimento pelo aviso régio do teor seguinte”, começa Franca e Horta, no anúncio da determinação. Para logo continuar: “O Príncipe Regente, nosso senhor, fica na inteligência de haver Vossa Senhoria proibido solenemente o andarem as mulheres nessa cidade embuçadas em baetas cominando-lhes as penas que se acham impostas pela lei e ordenou o mesmo senhor que o produto das condenações impostas aos transgressores por semelhante delito Vossa Senhoria o aplique no Hospital dos Lázaros dessa cidade. Deus guarde a Vossa Excelência. Palácio do Rio de Janeiro em 30 de agosto de 1810.”
O Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. XIV, 1808-1813, traz também as penalidades que deveriam ser impostas a quem fosse “achada rebuçada por qualquer maneira que traga a cara coberta”: além de ser recolhida por qualquer oficial militar ou de justiça a casa decente, teria de pagar 20 mil réis para o Hospital dos Lázaros da cidade se fosse nobre e 8 mil réis e 8 dias de prisão de fosse “mulher ordinária e mulata ou preta forra”. “As escravas, porém, não poderão trazer baeta pela cabeça, e as que assim forem achadas serão castigadas corporalmente na cadeia”, acrescentava a determinação. Com mais alguns detalhes: todas as infratoras teriam seu nome identificado num livro da administração pública, a pena dobraria em caso de reincidência no delito e quem tentasse de algum modo embaraçar sua execução sofreria a mesma punição imposta pela lei. “E para que chegue à notícia de todos, o senhor coronel secretário deste governo o remeterá por cópia a todos os capitães-mores e este será publicado a toque de caixa nesta cidade e fixado no lugar costumado. São Paulo 21 de setembro de 1810.”
Camargo destaca que a partir daí, ainda que lentamente, o figurino começou a cair em desuso. “Até meados dos oitocentos, ainda se viam, aqui e ali, algumas mulheres embuçadas, como notou o romancista Bernardo Guimarães (autor do romance A escrava Isaura) no período em que foi estudante da Faculdade de Direito de São Paulo, entre 1847 e 1851. Mas, disse ele, esta já era uma vestimenta utilizada apenas pelas escravas e mulheres mais pobres, que ainda costumavam embrulhar a cabeça e os ombros em dois côvados de pano ou de baeta em que não andara nem tesoura nem agulha.”
*Com um agradecimento a Marcia Baumgartner e Mariângela Bernardo de Souza, do Serviço de Documentação da Câmara Municipal de São Paulo, que localizaram a legislação contra ‘rebuços de baeta’
QUATRO PERGUNTAS PARA PEDRO CORRÊA DO LAGO
As imagens de mulheres paulistanas desta reportagem foram garimpadas pelo editor e colecionador Pedro Corrêa do Lago para o livro Iconografia Paulistana no Século XIX junto a instituições e outros colecionadores. Publicada pela Metalivros/ BM&F em 1998, a obra ganhou uma segunda edição pela Capivara Editora em 2004.
Como era a São Paulo daquela época?
Se eu dissesse que ia reunir imagens sobre a cidade do Rio de Janeiro no século 19, daria uns 100 volumes, mas São Paulo era então uma cidade com 50 ruas e cerca de 20 mil habitantes que nada indicava que viraria o que virou. Tinha algumas imagens do (pintor e ilustrador francês Jean-Baptiste) Debret, que se aventurou por São Paulo, e de alguns outros artistas menos conhecidos. Esse foi o primeiro livro que eu publiquei com um levantamento de todas as imagens anteriores à fotografia que representavam São Paulo e seus habitantes.
O que você descobriu sobre as mulheres de São Paulo nessa pesquisa?
Uma das coisas que me chamaram muito a atenção foram informações de que as mulheres andavam “rebuçadas em dois côvados de baeta”, ou seja envoltas em duas medidas de tecido. Eu me lembro também de cartas escritas pelo (poeta) Castro Alves, que na época era um jovem baiano de sangue quente que veio estudar Direito em São Paulo, reclamando do recato das moças de São Paulo, que não podiam ser vistas, andavam super cobertas, escondiam-se atrás dos muxarabis (treliças de inspiração árabe então usadas nas casas) e só saíam para ir à igreja. Entre cronistas, havia essa menção recorrente ao recato das “moças de bem” de São Paulo.
Era uma cidade então muito provinciana, não?
Sim, São Paulo era realmente um buraquinho. Foi um acaso extraordinário (o crescimento que teve). Se se tivesse de apostar naquela época em alguma cidade para se destacar seria talvez Sorocaba ou Santos. Mas dois fatores parecem ter tido um peso nesse destino. Primeiro: apesar de pequena, São Paulo foi escolhida como a capital administrativa do Estado. Segundo: resolveu-se fundar na cidade uma das duas faculdades de Direito do Brasil - a outra foi em Olinda. A criação foi aprovada pelo imperador d. Pedro I, talvez por influência da Marquesa de Santos, que vivia em São Paulo. Com isso, alunos do Brasil inteiro de famílias abastadas passaram a estudar em São Paulo. Muitos ficaram conhecidos, como o próprio Castro Alves ou o Barão do Rio Branco. E um dos grandes divertimentos da Marquesa era receber jovens estudantes de Direito em seu solar. Os estudantes eram a única novidade naquela cidade modorrenta.
Como, mesmo provinciana, São Paulo acabou retratada também em fotos no século 19?
Um mau negócio resultou em São Paulo ter a maior reportagem fotográfica da época. Em 1862, um ator carioca chega a São Paulo e faz dezenas de fotos de uma cidade que então não era nada demais. Era Militão Augusto de Azevedo. Depois de 25 anos, ele faz um álbum comparativo, que mostra que São Paulo já havia tido um progresso notável. Mas a pergunta interessante é: por que ele resolveu fazer as fotos? Ele fez as fotos porque ficou amigo de estudantes da Faculdade de Direito e achou que seria um bom negócio vender álbuns para eles. Eles mesmos comporiam as vistas para mostrar aos parentes a cidade onde tinham passado alguns anos e sido felizes. Tem até anúncios em jornais da época destinados a “quintanistas de Direito”. Mas os meninos tinham outros interesses, viviam de mesada e Militão acabou vendendo poucos álbuns. E, de todos, hoje sobraram apenas três. A ideia do álbum comparativo ele teve numa viagem à Europa, onde isso era moda. Militão ainda tinha os negativos das fotos de 1862 e refez as imagens 25 anos depois. Mas, como não usou bons fixadores, hoje essas imagens estão desbotadas. Já os álbuns de 1862 são fabulosos.