Coluna quinzenal da jornalista Luciana Garbin que traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|Por que sociedades que tratam mal as mulheres são mais pobres e instáveis


Pesquisa mostra relação entre exclusão feminina e menor desempenho econômico e progresso social; medidas contra desigualdade de gênero nas leis e nos costumes, porém, melhoram resultados também para homens

Por Luciana Garbin
Atualização:

Recém-formada em Jornalismo, fui parar num programa humanitário no Quênia. Éramos 24 mulheres - metade jornalistas, metade médicas. O primeiro grupo ajudava numa escola pública, o segundo num hospital. Nos fins de semana, saíamos num velho ônibus escolar para fazer safáris em parques. Num deles, nosso ônibus foi cercado por masais, um grupo étnico nômade que mantém tradições como trocar noivas adolescentes por determinada quantidade de vacas. Entre eles havia uma garota de 14 anos. Com ajuda do motorista do ônibus, que entendia o idioma dos masais, ela contou um pouco de sua história, achou estranho ainda sermos solteiras com vinte e poucos anos e nos perguntou por quantos animais seríamos trocadas no casamento. Quando soube que nossos costumes não incluíam tal negócio, ela se espantou:

- Como assim? Então vocês não valem nada?

Lembrei dessa história ao reler na revista britânica The Economist um artigo de 2021 sobre o custo da misoginia. Relançado em newsletter deste mês, ele mostra que sociedades que tratam mal as mulheres são mais pobres, menos estáveis e o sexismo não prejudica apenas as mulheres, mas também os homens.

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A conclusão se baseia num levantamento feito em 176 países pelas pesquisadoras Valerie Hudson, da Texas A & M University, e Donna Lee Bowen e Perpetua Lynne Nielsen, da Brigham Young University. Autoras do livro The First Political Order: How Sex Shapes Governance and National Security Worldwide (Columbia University Press), elas testaram a relação entre instabilidade política e o que chamam de síndrome patrilinear/fraternal, uma combinação de fatores como tratamento desigual de mulheres nos direitos de família e propriedade, casamento precoce de meninas, casamento patrilocal (em que a esposa muda para a casa da família do marido), poligamia, preço da noiva, preferência por filhos homens e violência contra mulheres - o estupro em alguns locais, por exemplo, é visto não como crime contra a mulher, mas contra a propriedade de homens.

Nas sociedades patrilineares, a linhagem passa de pai para filho, assim como bens e propriedades, e a ordem social é construída sobre grupos de parentesco masculinos. Os líderes são sempre homens e a maior função das mulheres - cuja castidade é mantida sob regras estritas - é dar à luz e obedecer a pai, irmãos e marido.

No passado, esse arranjo patrilinear funcionava como mecanismo de autodefesa: homens aparentados tinham mais chance de se unir contra inimigos externos. Hoje a maior parte do mundo mudou, os Estados modernos criaram regras mais eficientes para manter a ordem e a ideia do grupo de parentesco masculino como alicerce da sociedade naufragou - no Ocidente ajudou, por exemplo, a Igreja Católica ter, há vários séculos, proibido poligamia, casamento forçado entre primos e deserdação de viúvas. Demorou, mas surtiu efeito.

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Sobretudo em partes da Ásia, da África e do Oriente Médio, no entanto, antigos códigos de honra muitas vezes ainda superam leis do país e a lealdade ao clã pode paralisar o estado. “Quando um membro do clã consegue um emprego no ministério da saúde, ele pode sentir um dever mais forte de contratar seus primos não qualificados e encaminhar contratos para seus parentes do que de melhorar a saúde da nação”, exemplifica a reportagem da Economist. “Quando o Estado é visto como fonte de pilhagem, as pessoas lutam por ele.”

Mulheres de burca em caminhão na Afeganistão Foto: Tariq / Adobe Stock

O levantamento das autoras usa uma escala de 0 a 16 para medir a síndrome patrilinear/ fraternal. Democracias ricas, como Austrália, Suécia e Suíça, conseguiram a menor - e melhor - pontuação. Já o Iraque bateu 15 pontos, mesmo nível de Nigéria, Iêmen e Afeganistão (pré-Talibã). E o Sudão do Sul conseguiu ser ainda pior. No geral, as autoras estimam que 120 países ainda são, em certa medida, influenciados pela síndrome, que não se limita a países pobres - Arábia Saudita e Qatar, por exemplo, também tiveram péssimo desempenho. Ao cruzarem resultados com conflitos étnicos e religiosos, história colonial e características culturais, elas encontraram evidências de que patriarcado e pobreza costumam andar juntos.

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Em artigo publicado no blog da Columbia University Press, Valerie resume os resultados. “É quase como se um coletivo humano que escolhe a desigualdade entre homens e mulheres como primeira ordem política estivesse literalmente amaldiçoado”, escreveu. Segundo ela, se um país sofre da síndrome, terá:

  • 2,13 vezes mais chance de ser um estado frágil
  • 3,53 de ter um governo mais autocrático, menos eficaz e mais corrupto
  • 1,5 vez de ser instável e violento
  • 1,28 vez de sofrer com terrorismo
  • 1,4 de ser pobre e estar em declínio econômico
  • 1,5 de ter um PIB per capita baixo
  • 1,55 de ter baixa qualidade ambiental
  • 1,92 vez de ter alta taxa de fertilidade
  • 1,83 de ter maior incidência de mortes evitáveis
  • 1,8 de ter pontuação pior no Índice Global da Fome

Pobreza e violência

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O artigo destaca que os obstáculos para as mulheres começam no útero. Aborto de meninas foi especialmente comum na China, na Índia e no Cáucaso por exemplo. E acabou causando distorções perigosas. Partes da Índia com mais homens por exemplo registram maior violência contra mulheres.

Outro desestabilizador social é o preço da noiva. Como no caso da menina que conheci no Quênia, em muitas culturas patrilineares casamento ainda implica troca de dinheiro ou bens. A prática incentiva o casamento precoce, o abandono dos estudos e casos de violência doméstica. “Alguns homens dirão: ‘você é minha propriedade, por isso tenho o direito de bater em você’”, disse à Economist Mary Asili, líder de um grupo de mulheres. E, se meninos veem o pai intimidando a mãe, aprenderão a intimidar as futuras esposas.

Alguns dos lugares mais instáveis do planeta também têm em comum a poliginia, onde um homem se casa com mais de uma mulher. Apenas cerca de 2% das pessoas do mundo vivem em famílias assim, mas em países como Mali, Burkina Faso e Sudão do Sul, devastados pela guerra, o número ultrapassa um terço. No nordeste da Nigéria, onde atuam jihadistas do Boko Haram, 44% das mulheres de 15 e 49 anos vivem em uniões políginas. “Se os 10% mais ricos dos homens tiverem quatro esposas cada, os 30% mais pobres não terão nenhuma. Isso dá a eles poderoso incentivo para matar outros homens e roubar seus bens. Podem formar grupos de bandidos, como no noroeste da Nigéria, ou juntar-se a exércitos rebeldes, como no Sahel.”

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Desafios e futuro

Mas há razões para otimismo. As autoras mostram que globalmente a cultura patrilinear está em retrocesso. O aborto seletivo de meninas está caindo, assim como o casamento infantil. Desde 2000, mais de 50 países aumentaram a idade mínima legal para casar para 18 anos. A poliginia também é menos comum do que era - e mesmo onde é generalizada tem se tornado mais impopular, pelos danos não só às mulheres como a homens fora da elite que não conseguem bancar as esposas. Urbanização e pensões também ajudam a reduzir desigualdades. Nas cidades, mulheres ganham salários mais elevados e veem sua influência em casa aumentar. Quando o Estado fornece pensões, idosos já não dependem tão completamente dos filhos para se sustentar. Tudo isso enfraquece a patrilinearidade.

Mulheres caminham pelo Myeong Dong, distrito famoso pelas compras em Seul: Coreia do Sul foi um dos países que conseguiram se livrar de amarras da síndrome patrilinear e avançar nas últimas décadas Foto: Mongkol Chuewong / Adobe Stock
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A Coreia do Sul é citada como exemplo de país que mais rapidamente desmantelou o sistema patrilinear nas últimas décadas. Em 1991, Seul igualou direitos de herança masculinos e femininos e acabou com o direito automático do marido à custódia dos filhos após o divórcio. Em 2005, aboliu a noção legal de um único “chefe de família” (geralmente homem). Em 2009, proibiu o estupro conjugal. Ao aumentar pensões estatais, também reduziu drasticamente o porcentual de idosos que dependiam dos filhos. E, em uma geração, a preferência mudou de bebês do sexo masculino para bebês do sexo feminino.

Com todos esses dados na cabeça me perguntava há alguns dias que destino terá tido a garota masai que encontrei no Quênia. Mas uma conversa com uma jornalista do país eliminou maiores esperanças: segundo ela, a troca de meninas-noivas masais por animais ainda é um desafio a ser abolido por lá.

Recém-formada em Jornalismo, fui parar num programa humanitário no Quênia. Éramos 24 mulheres - metade jornalistas, metade médicas. O primeiro grupo ajudava numa escola pública, o segundo num hospital. Nos fins de semana, saíamos num velho ônibus escolar para fazer safáris em parques. Num deles, nosso ônibus foi cercado por masais, um grupo étnico nômade que mantém tradições como trocar noivas adolescentes por determinada quantidade de vacas. Entre eles havia uma garota de 14 anos. Com ajuda do motorista do ônibus, que entendia o idioma dos masais, ela contou um pouco de sua história, achou estranho ainda sermos solteiras com vinte e poucos anos e nos perguntou por quantos animais seríamos trocadas no casamento. Quando soube que nossos costumes não incluíam tal negócio, ela se espantou:

- Como assim? Então vocês não valem nada?

Lembrei dessa história ao reler na revista britânica The Economist um artigo de 2021 sobre o custo da misoginia. Relançado em newsletter deste mês, ele mostra que sociedades que tratam mal as mulheres são mais pobres, menos estáveis e o sexismo não prejudica apenas as mulheres, mas também os homens.

A conclusão se baseia num levantamento feito em 176 países pelas pesquisadoras Valerie Hudson, da Texas A & M University, e Donna Lee Bowen e Perpetua Lynne Nielsen, da Brigham Young University. Autoras do livro The First Political Order: How Sex Shapes Governance and National Security Worldwide (Columbia University Press), elas testaram a relação entre instabilidade política e o que chamam de síndrome patrilinear/fraternal, uma combinação de fatores como tratamento desigual de mulheres nos direitos de família e propriedade, casamento precoce de meninas, casamento patrilocal (em que a esposa muda para a casa da família do marido), poligamia, preço da noiva, preferência por filhos homens e violência contra mulheres - o estupro em alguns locais, por exemplo, é visto não como crime contra a mulher, mas contra a propriedade de homens.

Nas sociedades patrilineares, a linhagem passa de pai para filho, assim como bens e propriedades, e a ordem social é construída sobre grupos de parentesco masculinos. Os líderes são sempre homens e a maior função das mulheres - cuja castidade é mantida sob regras estritas - é dar à luz e obedecer a pai, irmãos e marido.

No passado, esse arranjo patrilinear funcionava como mecanismo de autodefesa: homens aparentados tinham mais chance de se unir contra inimigos externos. Hoje a maior parte do mundo mudou, os Estados modernos criaram regras mais eficientes para manter a ordem e a ideia do grupo de parentesco masculino como alicerce da sociedade naufragou - no Ocidente ajudou, por exemplo, a Igreja Católica ter, há vários séculos, proibido poligamia, casamento forçado entre primos e deserdação de viúvas. Demorou, mas surtiu efeito.

Sobretudo em partes da Ásia, da África e do Oriente Médio, no entanto, antigos códigos de honra muitas vezes ainda superam leis do país e a lealdade ao clã pode paralisar o estado. “Quando um membro do clã consegue um emprego no ministério da saúde, ele pode sentir um dever mais forte de contratar seus primos não qualificados e encaminhar contratos para seus parentes do que de melhorar a saúde da nação”, exemplifica a reportagem da Economist. “Quando o Estado é visto como fonte de pilhagem, as pessoas lutam por ele.”

Mulheres de burca em caminhão na Afeganistão Foto: Tariq / Adobe Stock

O levantamento das autoras usa uma escala de 0 a 16 para medir a síndrome patrilinear/ fraternal. Democracias ricas, como Austrália, Suécia e Suíça, conseguiram a menor - e melhor - pontuação. Já o Iraque bateu 15 pontos, mesmo nível de Nigéria, Iêmen e Afeganistão (pré-Talibã). E o Sudão do Sul conseguiu ser ainda pior. No geral, as autoras estimam que 120 países ainda são, em certa medida, influenciados pela síndrome, que não se limita a países pobres - Arábia Saudita e Qatar, por exemplo, também tiveram péssimo desempenho. Ao cruzarem resultados com conflitos étnicos e religiosos, história colonial e características culturais, elas encontraram evidências de que patriarcado e pobreza costumam andar juntos.

Em artigo publicado no blog da Columbia University Press, Valerie resume os resultados. “É quase como se um coletivo humano que escolhe a desigualdade entre homens e mulheres como primeira ordem política estivesse literalmente amaldiçoado”, escreveu. Segundo ela, se um país sofre da síndrome, terá:

  • 2,13 vezes mais chance de ser um estado frágil
  • 3,53 de ter um governo mais autocrático, menos eficaz e mais corrupto
  • 1,5 vez de ser instável e violento
  • 1,28 vez de sofrer com terrorismo
  • 1,4 de ser pobre e estar em declínio econômico
  • 1,5 de ter um PIB per capita baixo
  • 1,55 de ter baixa qualidade ambiental
  • 1,92 vez de ter alta taxa de fertilidade
  • 1,83 de ter maior incidência de mortes evitáveis
  • 1,8 de ter pontuação pior no Índice Global da Fome

Pobreza e violência

O artigo destaca que os obstáculos para as mulheres começam no útero. Aborto de meninas foi especialmente comum na China, na Índia e no Cáucaso por exemplo. E acabou causando distorções perigosas. Partes da Índia com mais homens por exemplo registram maior violência contra mulheres.

Outro desestabilizador social é o preço da noiva. Como no caso da menina que conheci no Quênia, em muitas culturas patrilineares casamento ainda implica troca de dinheiro ou bens. A prática incentiva o casamento precoce, o abandono dos estudos e casos de violência doméstica. “Alguns homens dirão: ‘você é minha propriedade, por isso tenho o direito de bater em você’”, disse à Economist Mary Asili, líder de um grupo de mulheres. E, se meninos veem o pai intimidando a mãe, aprenderão a intimidar as futuras esposas.

Alguns dos lugares mais instáveis do planeta também têm em comum a poliginia, onde um homem se casa com mais de uma mulher. Apenas cerca de 2% das pessoas do mundo vivem em famílias assim, mas em países como Mali, Burkina Faso e Sudão do Sul, devastados pela guerra, o número ultrapassa um terço. No nordeste da Nigéria, onde atuam jihadistas do Boko Haram, 44% das mulheres de 15 e 49 anos vivem em uniões políginas. “Se os 10% mais ricos dos homens tiverem quatro esposas cada, os 30% mais pobres não terão nenhuma. Isso dá a eles poderoso incentivo para matar outros homens e roubar seus bens. Podem formar grupos de bandidos, como no noroeste da Nigéria, ou juntar-se a exércitos rebeldes, como no Sahel.”

Desafios e futuro

Mas há razões para otimismo. As autoras mostram que globalmente a cultura patrilinear está em retrocesso. O aborto seletivo de meninas está caindo, assim como o casamento infantil. Desde 2000, mais de 50 países aumentaram a idade mínima legal para casar para 18 anos. A poliginia também é menos comum do que era - e mesmo onde é generalizada tem se tornado mais impopular, pelos danos não só às mulheres como a homens fora da elite que não conseguem bancar as esposas. Urbanização e pensões também ajudam a reduzir desigualdades. Nas cidades, mulheres ganham salários mais elevados e veem sua influência em casa aumentar. Quando o Estado fornece pensões, idosos já não dependem tão completamente dos filhos para se sustentar. Tudo isso enfraquece a patrilinearidade.

Mulheres caminham pelo Myeong Dong, distrito famoso pelas compras em Seul: Coreia do Sul foi um dos países que conseguiram se livrar de amarras da síndrome patrilinear e avançar nas últimas décadas Foto: Mongkol Chuewong / Adobe Stock

A Coreia do Sul é citada como exemplo de país que mais rapidamente desmantelou o sistema patrilinear nas últimas décadas. Em 1991, Seul igualou direitos de herança masculinos e femininos e acabou com o direito automático do marido à custódia dos filhos após o divórcio. Em 2005, aboliu a noção legal de um único “chefe de família” (geralmente homem). Em 2009, proibiu o estupro conjugal. Ao aumentar pensões estatais, também reduziu drasticamente o porcentual de idosos que dependiam dos filhos. E, em uma geração, a preferência mudou de bebês do sexo masculino para bebês do sexo feminino.

Com todos esses dados na cabeça me perguntava há alguns dias que destino terá tido a garota masai que encontrei no Quênia. Mas uma conversa com uma jornalista do país eliminou maiores esperanças: segundo ela, a troca de meninas-noivas masais por animais ainda é um desafio a ser abolido por lá.

Recém-formada em Jornalismo, fui parar num programa humanitário no Quênia. Éramos 24 mulheres - metade jornalistas, metade médicas. O primeiro grupo ajudava numa escola pública, o segundo num hospital. Nos fins de semana, saíamos num velho ônibus escolar para fazer safáris em parques. Num deles, nosso ônibus foi cercado por masais, um grupo étnico nômade que mantém tradições como trocar noivas adolescentes por determinada quantidade de vacas. Entre eles havia uma garota de 14 anos. Com ajuda do motorista do ônibus, que entendia o idioma dos masais, ela contou um pouco de sua história, achou estranho ainda sermos solteiras com vinte e poucos anos e nos perguntou por quantos animais seríamos trocadas no casamento. Quando soube que nossos costumes não incluíam tal negócio, ela se espantou:

- Como assim? Então vocês não valem nada?

Lembrei dessa história ao reler na revista britânica The Economist um artigo de 2021 sobre o custo da misoginia. Relançado em newsletter deste mês, ele mostra que sociedades que tratam mal as mulheres são mais pobres, menos estáveis e o sexismo não prejudica apenas as mulheres, mas também os homens.

A conclusão se baseia num levantamento feito em 176 países pelas pesquisadoras Valerie Hudson, da Texas A & M University, e Donna Lee Bowen e Perpetua Lynne Nielsen, da Brigham Young University. Autoras do livro The First Political Order: How Sex Shapes Governance and National Security Worldwide (Columbia University Press), elas testaram a relação entre instabilidade política e o que chamam de síndrome patrilinear/fraternal, uma combinação de fatores como tratamento desigual de mulheres nos direitos de família e propriedade, casamento precoce de meninas, casamento patrilocal (em que a esposa muda para a casa da família do marido), poligamia, preço da noiva, preferência por filhos homens e violência contra mulheres - o estupro em alguns locais, por exemplo, é visto não como crime contra a mulher, mas contra a propriedade de homens.

Nas sociedades patrilineares, a linhagem passa de pai para filho, assim como bens e propriedades, e a ordem social é construída sobre grupos de parentesco masculinos. Os líderes são sempre homens e a maior função das mulheres - cuja castidade é mantida sob regras estritas - é dar à luz e obedecer a pai, irmãos e marido.

No passado, esse arranjo patrilinear funcionava como mecanismo de autodefesa: homens aparentados tinham mais chance de se unir contra inimigos externos. Hoje a maior parte do mundo mudou, os Estados modernos criaram regras mais eficientes para manter a ordem e a ideia do grupo de parentesco masculino como alicerce da sociedade naufragou - no Ocidente ajudou, por exemplo, a Igreja Católica ter, há vários séculos, proibido poligamia, casamento forçado entre primos e deserdação de viúvas. Demorou, mas surtiu efeito.

Sobretudo em partes da Ásia, da África e do Oriente Médio, no entanto, antigos códigos de honra muitas vezes ainda superam leis do país e a lealdade ao clã pode paralisar o estado. “Quando um membro do clã consegue um emprego no ministério da saúde, ele pode sentir um dever mais forte de contratar seus primos não qualificados e encaminhar contratos para seus parentes do que de melhorar a saúde da nação”, exemplifica a reportagem da Economist. “Quando o Estado é visto como fonte de pilhagem, as pessoas lutam por ele.”

Mulheres de burca em caminhão na Afeganistão Foto: Tariq / Adobe Stock

O levantamento das autoras usa uma escala de 0 a 16 para medir a síndrome patrilinear/ fraternal. Democracias ricas, como Austrália, Suécia e Suíça, conseguiram a menor - e melhor - pontuação. Já o Iraque bateu 15 pontos, mesmo nível de Nigéria, Iêmen e Afeganistão (pré-Talibã). E o Sudão do Sul conseguiu ser ainda pior. No geral, as autoras estimam que 120 países ainda são, em certa medida, influenciados pela síndrome, que não se limita a países pobres - Arábia Saudita e Qatar, por exemplo, também tiveram péssimo desempenho. Ao cruzarem resultados com conflitos étnicos e religiosos, história colonial e características culturais, elas encontraram evidências de que patriarcado e pobreza costumam andar juntos.

Em artigo publicado no blog da Columbia University Press, Valerie resume os resultados. “É quase como se um coletivo humano que escolhe a desigualdade entre homens e mulheres como primeira ordem política estivesse literalmente amaldiçoado”, escreveu. Segundo ela, se um país sofre da síndrome, terá:

  • 2,13 vezes mais chance de ser um estado frágil
  • 3,53 de ter um governo mais autocrático, menos eficaz e mais corrupto
  • 1,5 vez de ser instável e violento
  • 1,28 vez de sofrer com terrorismo
  • 1,4 de ser pobre e estar em declínio econômico
  • 1,5 de ter um PIB per capita baixo
  • 1,55 de ter baixa qualidade ambiental
  • 1,92 vez de ter alta taxa de fertilidade
  • 1,83 de ter maior incidência de mortes evitáveis
  • 1,8 de ter pontuação pior no Índice Global da Fome

Pobreza e violência

O artigo destaca que os obstáculos para as mulheres começam no útero. Aborto de meninas foi especialmente comum na China, na Índia e no Cáucaso por exemplo. E acabou causando distorções perigosas. Partes da Índia com mais homens por exemplo registram maior violência contra mulheres.

Outro desestabilizador social é o preço da noiva. Como no caso da menina que conheci no Quênia, em muitas culturas patrilineares casamento ainda implica troca de dinheiro ou bens. A prática incentiva o casamento precoce, o abandono dos estudos e casos de violência doméstica. “Alguns homens dirão: ‘você é minha propriedade, por isso tenho o direito de bater em você’”, disse à Economist Mary Asili, líder de um grupo de mulheres. E, se meninos veem o pai intimidando a mãe, aprenderão a intimidar as futuras esposas.

Alguns dos lugares mais instáveis do planeta também têm em comum a poliginia, onde um homem se casa com mais de uma mulher. Apenas cerca de 2% das pessoas do mundo vivem em famílias assim, mas em países como Mali, Burkina Faso e Sudão do Sul, devastados pela guerra, o número ultrapassa um terço. No nordeste da Nigéria, onde atuam jihadistas do Boko Haram, 44% das mulheres de 15 e 49 anos vivem em uniões políginas. “Se os 10% mais ricos dos homens tiverem quatro esposas cada, os 30% mais pobres não terão nenhuma. Isso dá a eles poderoso incentivo para matar outros homens e roubar seus bens. Podem formar grupos de bandidos, como no noroeste da Nigéria, ou juntar-se a exércitos rebeldes, como no Sahel.”

Desafios e futuro

Mas há razões para otimismo. As autoras mostram que globalmente a cultura patrilinear está em retrocesso. O aborto seletivo de meninas está caindo, assim como o casamento infantil. Desde 2000, mais de 50 países aumentaram a idade mínima legal para casar para 18 anos. A poliginia também é menos comum do que era - e mesmo onde é generalizada tem se tornado mais impopular, pelos danos não só às mulheres como a homens fora da elite que não conseguem bancar as esposas. Urbanização e pensões também ajudam a reduzir desigualdades. Nas cidades, mulheres ganham salários mais elevados e veem sua influência em casa aumentar. Quando o Estado fornece pensões, idosos já não dependem tão completamente dos filhos para se sustentar. Tudo isso enfraquece a patrilinearidade.

Mulheres caminham pelo Myeong Dong, distrito famoso pelas compras em Seul: Coreia do Sul foi um dos países que conseguiram se livrar de amarras da síndrome patrilinear e avançar nas últimas décadas Foto: Mongkol Chuewong / Adobe Stock

A Coreia do Sul é citada como exemplo de país que mais rapidamente desmantelou o sistema patrilinear nas últimas décadas. Em 1991, Seul igualou direitos de herança masculinos e femininos e acabou com o direito automático do marido à custódia dos filhos após o divórcio. Em 2005, aboliu a noção legal de um único “chefe de família” (geralmente homem). Em 2009, proibiu o estupro conjugal. Ao aumentar pensões estatais, também reduziu drasticamente o porcentual de idosos que dependiam dos filhos. E, em uma geração, a preferência mudou de bebês do sexo masculino para bebês do sexo feminino.

Com todos esses dados na cabeça me perguntava há alguns dias que destino terá tido a garota masai que encontrei no Quênia. Mas uma conversa com uma jornalista do país eliminou maiores esperanças: segundo ela, a troca de meninas-noivas masais por animais ainda é um desafio a ser abolido por lá.

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Opinião por Luciana Garbin

Editora executiva no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos

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